Firma individual x EIRELI: análise jurídica sob o ângulo da responsabilidade

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25/12/2017 às 15:32
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6.        DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

6.1 Suma Histórica

O primeiro caso a contextualizar a possibilidade de confusão patrimonial e a ocorrência da desconsideração da personalidade jurídica foi em 1896, o caso de Salomon v. Salomon & Co. Ltd. O Sr. Aaron Salomon era comerciante individual, explorando a atividade de fabricação de sapatos. Em 1892, decidiu realizar uma transformação de natureza jurídica, ou seja, transformando o comerciante individual em sociedade limitada. Diante disso, foram admitidos na sociedade a esposa do Sr. Aaron Salomon e cinco filhos do casal (CHAGAS, 2015).

A empresa experimentou diversas perdas consideráveis e ao mesmo tempo o Sr. Aaron transferia patrimônio da sociedade para sua pessoa natural, motivo que trouxe a mesma a encerrar suas atividades, liquidando ativo para pagamento do passivo. Percebeu-se então, que o passivo era maior que o ativo. O credor prejudicado entrou com ação para anulação da transformação de tipo jurídico de comerciante individual para sociedade, alegando diversas peculiaridades (CHAGAS, 2015).

Em primeira e segunda instancia, entendeu-se, que realmente houve fraude contra os credores, permitindo avançar no patrimônio do sócio, em virtude da confusão patrimonial, fraude e pela perpetuação da firma individual, pois Salomon, de fato, seria o único sócio do empreendimento, sendo que os demais sócios eram sócios meramente figurativos.

Contudo, a Corte Inglesa reformou a decisão, em razão que o princípio da autonomia era absoluta, não existindo hipótese para a referida desconsideração. Mesmo assim, esse acontecimento foi marcado pela história, proporcionando um avanço para o estudo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Tal decisão “incendiou” todo o sistema jurídico à respeito da matéria, nascendo assim, o princípio da autonomia patrimonial. Doutrinadores, não mediram esforços para se aprofundar no assunto. No Brasil, Rubens Requião, realizou notório trabalho publicado na revista dos tribunais em 1969, sendo, sem dúvida, o elemento deflagrador da discussão da personalidade jurídica aqui no país.

O segundo caso, foi no Poder Judiciário Inglês, no julgado entre 1915 e 1916, entre Daimler Co. Ltd v. Continental Tyre & Rubber Co., onde se relatou que as ações da demandada foram adquiridas por alemães e, em virtude da deflagração da Primeira Guerra Mundial o crédito destinado a tal empresa referente ao contrato de fornecimento foi retido (CHAGAS, 2015).

Posteriormente, o julgamento da corte “Câmara dos Lordes” entendeu que o seu controle de ações ultimou por favorecer a sociedade inimiga, desprezando a nacionalidade societária e a autonomia da pessoa jurídica, tendo em vista a gestão da sociedade demandada poderia favorecer os interesses de nação inimiga, tendo em vista a nacionalidade dos sócios.

Outro caso emblemático é do Bank of United States v. Deveaux, em 1809, no qual os sócios da Deveaux eram de naturalidades de diferentes Estados (dentro dos Estado Unidos da América). Dessa forma, firmou-se competência para julgar na Justiça Federal, hipótese que preponderou não o domicilio da empresa e sim o dos sócios (CHAGAS, 2015).

Nesse sentido, a Suprema Corte dos Estados Unidos interpretou que em face dos sócios terem domicílios em mais de um Estado (estados autônomos) a responsabilidade patrimonial deveria ser deles e não da pessoa jurídica, aplicando-se hipótese objetiva da desconsideração da personalidade jurídica. Inaugurou-se, a partir de então, a doutrina da disregard of the legal entity (CHAGAS, 2015).

6.2 A Personalidade Jurídica

A personalidade jurídica é algo que “da existência” a pessoa, garantindo a mesma, direitos e obrigações. Com o arquivamento de seus atos constitutivos na Junta Comercial do Estado a Eireli passa a ter personalidade jurídica.

Essa personalidade, se apresenta de tal forma que, imaginamos um ente apenas, pessoa natural, que levou sua constituição de empresa na Jucesp. Até este momento, mesmo que a atividade econômica desta já estava sendo desenvolvida há alguns meses, não há o que se falar em personalidade jurídica.

Com o referido registro ou arquivamento, cria-se mais um ente, a pessoa jurídica, que é garantidora de direitos e obrigações tão quanto a pessoa natural, porém, agora cada qual com sua autonomia patrimonial.

Existem três teorias que conceituam a personalidade jurídica. A primeira é a teoria da fixação, onde entende que a pessoa jurídica não tem existência social é um ente abstrato da pessoa natural. Sendo assim, apenas um ente artificial, criado pela pessoa natural, sem vontade ou personalidade autônoma.

Para a teoria realidade objetiva ou orgânica, discordando da ideia anterior (teoria da fixação), a pessoa jurídica tem existência social e consiste em uma realidade viva, análoga a pessoa física. Para Silvio Rodrigues, “a ideia básica dessa teoria é que as pessoas jurídicas, longe de serem mera ficção, são uma realidade sociológica, seres com vida própria, que nascem por imposição das forças sociais” (RODRIGUES, 2007).

Já a terceira, a teoria da realidade técnica, equilibra as duas teorias anteriores, ou seja, reconhece a atuação social da pessoa jurídica (não mera fixação abstrata). Todavia, entende que a personalidade jurídica conferida é técnica, consistindo em um ente existencial, autônomo, mas que visa a satisfação do interesse do titular (Eireli) ou seus sócios (sociedade), pessoas naturais. Preceitua ainda, Silvio Rodrigues: “um expediente de ordem técnica, útil para alcançar diretamente alguns interesses humanos (RODRIGUES, 2007).

A melhor doutrina entende que a teoria da realidade técnica explica melhor o tratamento dado a pessoa jurídica por nosso ordenamento, conforme disposto no art. 45, do Código Civil,

Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro (Lei n.º 10.406, de 10/01/2002).

O princípio da autonomia patrimonial é relativo, não podendo ser utilizado de forma indevida, ou seja, dando margem a realização de abusos ou fraudes, pois dessa forma, será afastada a personalidade jurídica, ocasionado a confusão patrimonial.

Cerca do assunto, Rubens Requião disserta:

A sociedade transforma-se em novo ser, estranho à individualidade das pessoas que participam de sua constituição, dominando um patrimônio próprio, possuidor de órgãos de deliberação e execução que ditam e fazem cumprir a sua vontade (REQUIÃO, 2009).

Requião conceituou acima a personalidade jurídica em si, e não tão somente a modalidade societária. No caso, para o afastamento da personalidade, terá que haver requerimento do prejudicado ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir.

6.3 Teorias da Desconsideração da Personalidade Jurídica

6.3.1 Teoria Maior

Essa forma de desconsideração é a técnica chamada de cláusulas abertas ou gerais. São cláusulas que não determinam exatamente a ação que exige para o seu descumprimento, ou seja, um exemplo são os arts. 113 “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” e 422 “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”, do Código Civil. O legislador não definiu o conceito exato de agir de boa-fé. Nesse sentido, para averiguar uma condição de desvio de finalidade, o magistrado terá que ter o enfrentamento nos casos concretos.

O artigo que determina essa teoria é o art. 50, do Código Civil,

Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica (Lei n.º 10.406, de 10/01/2002).

Portanto, essa teoria possui como regra desconsiderar a personalidade jurídica de duas formas, objetivamente e subjetivamente. A primeira trata-se da confusão patrimonial (titular ou sócio que utiliza determinado bem da “empresa” em seu proveito próprio ou de seus familiares). A segunda, quando houver desvio de personalidade (abuso praticado pelo sócio/titular no ato de desviar bens ou direitos da sociedade/Eireli para o patrimônio pessoal ou alienar a terceiro com a finalidade de fraudar credores).

Haverá também, a presente teoria no código de defesa do consumidor, em seu art. 28,

O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração (Lei n.º 8.078, de 11/09/1990)

Importante enaltecer que, em seu §5º (art. 28), descreve-se o entendimento da teoria menor, utiliza no CDC. Como no Direito Trabalhista não há previsão legal para a desconsideração da personalidade jurídica, os juízes se utilizam do parágrafo acima para desconsiderarem a personalidade da empresa e avançarem no patrimônio do titular ou sócio. Existem o chamado “diálogo das fontes”, entre o direito do trabalho e o direito do consumidor.                       

6.3.2 Teoria Menor           

O entendimento dessa teoria prioriza o terceiro que faz negócio ou acordo com a pessoa jurídica, aquele na qualidade de credor, não pode ser frustrado. É necessário um simples inadimplemento, não analisando o motivo que deixou empresa (Eireli/sociedade) de cumprir com suas obrigações perante terceiros.

Diante o exposto, o Supremo Tribunal Federal entende:

Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica

Pode ser aplicada também no caso de insolvência ou falência da pessoa jurídica. Existem algumas polemicas sobre esse assunto, pois, nem sempre a falência ou insolvência é em decorrência da má administração do titular/sócio.

Um exemplo em que essa teoria (menor) foi adotada, foi na explosão do Osasco Plaza Shopping, em 11 de junho de 1996, em virtude do vazamento de gás. Não houve a intenção dos sócios admiradores causarem dano aos consumidores, mas, no entanto, houve 300 (trezentos) feridos e 40 (quarenta) mortes, que eram garantidos pelos direitos de serem ressarcidos por danos morais e materiais. Como o patrimônio do shopping (pessoa jurídica) era inferior ao grande número de indenizações, foi desconsiderada a personalidade jurídica, com fulcro no §5°, do art. 28, do CDC.

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A presente teoria é utilizada também no direito ambiental, além do direito do consumidor, salvo o citado diálogo das fontes, utilizado nas reger as relações de empregador (pessoa jurídica) e empregado.

No direito ambiental está amparada no art. 4 “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”, da Lei n.º 9.605/1998.

Nesse sentido, não importa se houve dolo ou culpa da pessoa jurídica, interessa-se, nesse caso, reconstituir o meio ambiente degradado.

6.4 Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica

A desconsideração da personalidade jurídica surgiu para permitir adentar no patrimônio do titular (Eireli) ou seus sócios (sociedade) por dividas da sociedade. Contudo, a doutrina e jurisprudência sustentam também o caminho inverso, ou seja, a quebra da autonomia patrimonial da pessoa natural, a fim de executar bens da empresa (Eireli/sociedade) por dividas pessoais do titular/sócio.

A ideia é responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações titular/sócio não cumpridas integralmente. Essa situação é muito comum no direito de família, sobre esse tema, entende Fábio U. Coelho:

Se um dos cônjuges ou companheiros, ao adquirir bens de maior valor, registra-os em nome de pessoa jurídica sob seu controle, eles não integram, sob o ponto de vista formal, a massa a partilhar. Ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo devido ao ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio, associado ou instituidor (COELHO, 2010).

Nesse contexto, Starling afirma que a desconsideração inversa:

É larga e precedente a sua aplicação no processo familiar, principalmente frente à constatação nas disputas matrimoniais, do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, se não todo, o rol mais significativo de seus bens [...]quando o marido transfere para a sua empresa o rol significativo de seus bens matrimoniais, sentença final de cunho declaratório haverá de desconsiderar esse negócio específico, flagrada a fraude ou o abuso, havendo, em consequência, como matrimoniais esses bens, para ordenar a sua partilha no ventre da separação judicial, na fase destinada a sua divisão, já considerados comuns e comunicáveis (STARLING, 2015).

Não podemos olvidar que, para a desconsideração inversa, a pessoa natural (titular/sócio) tem que agir de forma fraudulenta, configurando o abuso ou a confusão patrimonial. A doutrina não aceita a teoria menor com relação a desconsideração inversa.

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Julio Cesar Bariani Pavini

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