3. O SURGIMENTO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO E SEUS FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS.
A expressão “Direito Penal do Inimigo” foi apresentada pela sua primeira vez por Günther Jakobs numa palestra em Frankfurt em 1985, na qual ele assumiu uma posição crítica acerca de tal teoria, alertando dos riscos da adoção da mesma. Em 1999, Jakobs já tratou da Teoria do “Direito Penal do Inimigo, de uma maneira mais flexível no sentido de aceitá-la (PRITTWITZ apud BONHO, 2006, p. 05).
Jakobs apresenta um estudo sobre o Direito Penal do Inimigo, defendendo a adoção de tal modelo, de modo ávido, no contexto de guerra entre as nações civilizadas e as nações terroristas.
Frise-se que em 1985, a temática não ganhou muita repercussão. Somente a partir de 1999, é que a Teoria do Direito Penal do Inimigo ganhou força e adeptos, refletindo na legislação de vários países os seus principais contornos. Isso ocorreu, devido à mudança de pensamento social, que passou a buscar meios de combate para os efeitos gerados desde a queda do comunismo (1989) até os recentes atentados terroristas ocorridos no plano internacional na presente década (JESUS, 2005, p. 01), mormente o de 11 de setembro de 2001 (Nova Iorque), sem dúvida, o mais marcante e decisivo.
Carvalho (p. 01) diz que, para fazer frente a esse novo tipo de criminalidade, o terrorismo que vitima em maior escala a Europa e os EUA, começou a surgir manifestações de um novo paradigma penal com a formulação de teorias, na tentativa de legitimar a “perseguição e a punição implacável dos protagonistas”, merecedores de uma punição bem mais severa.
Jesus (2005, p. 02) aduz que Jakobs, ao propor a Teoria do Inimigo no Direito Penal, ele coloca duas tendências em lados opostos, mas que partilham de um mesmo plano: o Direito Penal do Inimigo e o do Cidadão, cabendo a este a função de eliminar perigos, e àquele a “tarefa de garantir a vigência da norma como expressão de uma determinada sociedade”.
Os estudos sobre a inserção da figura do inimigo no Direito Penal encontram fundamentos na teoria do “contratualista” do Estado de Hobbes[8] e Kant[9] , que há muito tempo elaboraram seus conceitos de inimigos, proclamando que o indivíduo transgressor do contrato social (delinquente) deveria ter a sua condição de cidadão suprimida, passando então, a figurar como inimigo (BONHO, 2006, p. 04).
Impende trazer a lume, a lição de Jesus (2005, p. 02-03), no que tange à diferenciação nas proposições de Hobbes e Kant sobre a categoria do inimigo:
Para Hobbes, o delinqüente deve ser mantido em seu status de pessoa (ou de cidadão), a não ser que cometa delitos de "alta traição", os quais representariam uma negação absoluta à submissão estatal, então resultando que esse indivíduo não deveria ser tratado como "súdito", mas como "inimigo".
Kant admitia reações "hostis" contra seres humanos que, de modo persistente, se recusassem a participar da vida "comunitário-legal", pois não pode ser considerada uma "pessoa" o indivíduo que ameaça alguém constantemente.
Malgrado a doutrina de Jakobs encontra arrimo na filosofia de Kant, é em Hobbes que ela se identifica com maior força. Hobbes via o inimigo como aquele que rompe com a sociedade civil e volta a viver em “estado de natureza”, que para o filósofo é o estado de guerra, que, como é sabido tem o condão de visualizar ou criar figuras inimigas e legitimar uma série de atentados aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana (BONHO, 2006, p. 06). Basta pensar de modo analógico que, a Constituição da República legitima a pena capital em casos de guerra declarada. Nas palavras do próprio Hobbes, citado por Bonho (2006, p. 06) tem-se que o estado de natureza “é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, de maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida".
Bonho (2006, p. 08) ao citar Hobbes conclui que se os homens resolveram se reunir em sociedade e abandonar o estado natural ou de guerra, criaram o Estado e o pacto social e tornaram-se cidadãos, “renunciando de parte de seus direitos uns aos outros e ao Estado”. Desse modo, inimigos são aqueles que “renegam o poder do Estado”, razão pela qual deverão ser punidos pela lei natural e não pela lei civil.
Hobbes apud Bonho (2006, p. 09) ainda vai mais longe quando diz que não importa a situação de inocente ou culpado do indivíduo, bastando a condição de inimigo para justificar os danos causados a esse indivíduo, em benefício do Estado constituído.
Fora toda a fundamentação na filosofia de Kant e Hobbes, Cancio Meliá e Jakobs (2003, p. 57-65) aduzem que o Direito Penal do Inimigo como é hoje o defendido por Jakobs, resulta, outrossim, da soma de fatores como a expansão do Direito Penal, do surgimento do Direito Penal Simbólico e do ressurgir do punitivismo[10] e da neutralização[11], aliado aos fatores circunstanciais que atingem o atual estágio de expansão do Direito Penal da pós-modernidade, já elencados no início deste trabalho.
No dizer de Damásio Evangelista de Jesus (2005, p. 04), o Direito Penal do Inimigo, segundo o próprio Jakobs, funda-se filosoficamente em três alicerces, que também lhe conferem legitimidade, quais sejam:
1) o Estado tem direito a procurar segurança em face de indivíduos que reincidam persistentemente por meio da aplicação de institutos juridicamente válidos (exemplo: medidas de segurança); 2) os cidadãos têm direito de exigir que o Estado tome medidas adequadas e eficazes para preservar sua segurança diante de tais criminosos; 3) é melhor delimitar o campo do Direito Penal do Inimigo do que permitir que ele contamine indiscriminadamente todo o Direito Penal.
3.1. O Direito Penal do Inimigo segundo Jakobs
Como já foi dito no item anterior, Jakobs advoga a existência de dois tipos de Direito, um voltado para o cidadão e outro voltado para o inimigo. Embora haja a separação do Direito Penal, os dois convivem no mesmo plano, não podendo ficar isolados. Segundo Jakobs (2005, p. 21) "não se trata de contrapor duas esferas isoladas do Direito penal, mas de descrever dois pólos de um só contexto jurídico-penal".
O Direito Penal do Cidadão coloca o cumprimento da pena, ainda que coativo, como a forma de restabelecimento da ordem jurídica violada pelo cidadão quando da prática do fato delituoso, impondo ao Estado o respeito à dignidade da pessoa do cidadão dentro do Estado de Direitos, mesmo tendo este cometido um ato ilícito – fato considerado normal pelo Direito Penal do cidadão (JAKOBS, 2005, p. 32-33).
Por outro lado, o Direito Penal do Inimigo foi construído para tratar de pessoas que manifestam comportamentos delituosos mais graves, tais como: os crimes sexuais, a criminalidade econômica, o tráfico de drogas, a criminalidade organizada e o terrorismo. O sujeito ativo desses tipos penais, no dizer de Jakobs (2005, p. 31) "se afastou, de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do Direito, isto é, que não proporciona a garantia cognitiva mínima necessária a um tratamento como pessoa", e por este motivo deverão ser considerado como inimigo, isto é, uma não-pessoa, pois para Jakobs é um “indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa”.
Segundo a Teoria do Inimigo no Direito Penal, indivíduo e pessoa são entes diferentes, já que aquela é natural, enquanto esta está envolvida com a sociedade e com a cultura, tornando-se um sujeito de direito e obrigações juntamente com a coletividade, o propicia a manutenção da ordem. Jakobs (2005, p. 22-24) leciona que quando do cometimento de um delito, ao cidadão é previsto o devido processo legal que resultará numa pena como forma de sanção pelo ato ilícito cometido. Ao inimigo o tratamento é diverso, a ele o Estado atua pela coação, a ele não é aplicada pena e sim medida de segurança, já que representa um perigo a ser vorazmente combatido.
Aliás, é no grau de periculosidade do agente que reside a caracterização do indivíduo como inimigo, contrapondo-o ao cidadão que, apesar da conduta delitiva, não representa risco à efetiva aplicação da lei penal e à ordem jurídica como um todo. No Direito Penal do Inimigo a punibilidade avança para o âmbito interno do agente e da preparação, e a pena se dirige à segurança frente a atos futuros, perfazendo-se, segundo Cancio Meliá (2005, p. 80), um direito do autor e não fato.
Essa penalização dos atos preparatórios da conduta penal não executada é reflexo da Teoria do Direito Penal na Sociedade dos Riscos, amplamente caracterizada alhures. Prittwitz por Binato Júnior (2004, p. 112) proclama que “o Direito Penal do Inimigo nada mais representa que a conseqüência fatal de um Direito Penal do Risco que desenvolveu-se na direção errada”. Jakobs apud Bonho (2006, p. 11) afirma que “o lugar do dano atual à vigência da norma é ocupado pelo perigo de danos futuros: uma regulação própria do Direito penal do inimigo”.
Nas palavras de Silva Sánchez (2002, p. 149) o inimigo seria aquele que abandona o Direito de um “modo supostamente duradouro e não somente de maneira incidental”, isto é, “alguém que não garante mínima segurança cognitiva de seu comportamento pessoal e manifesta esse déficit por meio da sua conduta”. Nesse compasso, Bonho parafraseando Silva Sánchez (2006, p. 12) afirma que o trânsito do cidadão ao inimigo se dá pela integração em organizações criminosas bem estruturadas, mas, além disso, se dá também, pela importância de cada ato ilícito cometido, da habitualidade e da profissionalização criminosa, de forma a manifestar concretamente a periculosidade do agente.
O atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 (Nova Iorque) é usado por Jakobs para ilustrar sua tese, como exemplo típico de um ato terrorista. Dessa forma, o autor afirma que o delinqüente por tendência não pode ser tratado como um cidadão que age erroneamente, pois o mesmo está intrincado numa organização criminosa colocando em perigo a legitimidade do ordenamento jurídico pelo fato de rechaçá-lo e não se adaptar a ele, razão pela qual não mais merecem as garantias individuais de um Processo Penal (pois as garantias são apenas para os cidadãos). Assim, "quem inclui o inimigo no conceito de delinqüente-cidadão não deve assombrar-se quando se misturarem os conceitos de guerra e processo penal”. Com estas afirmações, Jakobs sustenta que a separação entre Direito Penal do cidadão e Direto Penal do inimigo visa proteger a legitimidade do Estado de Direito, certamente voltado para o cidadão (JAKOBS, 2005, p. 30-37).
Nas palavras de Damásio Evangelista de Jesus (2005, p. 09), reafirmando tudo o que já foi dito até aqui, tem-se que o inimigo é todo aquele “que reincide persistentemente na prática de delitos ou que comete crimes que ponham em risco a própria existência do Estado, apontando como exemplo maior a figura do terrorista”. Isto é:
aquele que se recusa a entrar num estado de cidadania não pode usufruir das prerrogativas inerentes ao conceito de pessoa. Se um indivíduo age dessa forma, não pode ser visto como alguém que cometeu um "erro", mas como aquele que deve ser impedido de destruir o ordenamento jurídico, mediante coação.
Jakobs apud Bonho (2006, p. 07) defende o Direito Penal do Inimigo afirmado que:
O Estado tem o direito de procurar a segurança frente aos inimigos, sustentando que a custódia da segurança é uma instituição jurídica. E argumenta que os cidadãos têm o direito de exigir do Estado as medidas adequadas a fim de fornecer esta segurança. Portanto, o Estado não deve tratar o inimigo como pessoa, pois do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.
Sob essa perspectiva do parâmetro de “não pessoa” atribuído ao inimigo, Prittwitz apud Binato Júnior (2004, p. 112) bem sistematiza o pensamento do pai da Teoria do Direito Penal do Inimigo, Jakobs:
Considera ainda, cada vez mais difícil fazer-se a distinção do Direito Penal do Inimigo, da guerra civil, ou mesmo da guerra em si, pois o inimigo estatal, como em uma autêntica guerra, já é dado de antemão, e é exatamente para ele, que se voltam todas as baterias do sistema penal. Temos, pois, um Direito que o Estado utiliza-se, não para confrontar seus cidadãos, mas seus “ex-cidadãos”, agora na condição de inimigos. Para o referido autor as conseqüências penais, não são difíceis de se prever, pune-se antes, e mais rigidamente (pois assim se punem os inimigos), além da liberdade de expressão, bem como as garantias processuais são sumariamente descartadas. Prittwitz deixa bem claro que Jakobs assevera que, todo aquele que comporte-se como inimigo, também merece ser tratado como inimigo, portanto, não como pessoa.
Silva Sánchez (2005, p. 150) ao expor sobre a legitimidade do Direito Penal cita Dencker, aduzindo que ela somente pode “se basear em considerações de absoluta necessidade, subsidiariedade e eficácia, em um contexto de emergência”, apesar de crer que o do círculo do Direito Penal dos inimigos “tenderá, ilegitimamente, a estabilizar-se e a crescer”.
O raciocínio é bem simples: para os inimigos que põem em risco a ordem jurídica e afrontam as regras do Estado, será reservada um complexo de normas penais, postergadoras dos direitos fundamentais da pessoa humana. Em resumo, nas palavras de Inácio Belina Filho (2005, p. 02) infere-se que:
O que denota que o inimigo do Estado deveria ser condenado, sumariamente, sem contraditório, ampla defesa, devido processo legal, ou quaisquer outros preceitos ínsitos a dignidade humana. Aliás, os difusores dessa vertente do Penal e Processual, liderados pelo alemão Gunther Jakobs, chegam ao absurdo ao afirmarem que os inimigos não merecem a incidência dos direitos e garantias fundamentais, pois, não são serem humanos. Esse discurso simplista, esta se irradiando pelo mundo afora, provocando polemica e infelizmente ganhando adeptos.
Por derradeiro, cabe trazer as principais premissas do Direito Penal do Inimigo, extraídas da doutrina de Jakobs: relatividade do princípio da legalidade; aumento desproporcional de penas; endurecimento da execução penal; abolição de direitos e garantias processuais fundamentais; infiltração de agentes policiais; abuso de medidas preventivas ou cautelares; reprovação da periculosidade do agente em detrimento da culpabilidade; seu objetivo não é a garantia da vigência da norma, mas a eliminação de um perigo; a punibilidade avança em boa parte para a incriminação de atos preparatórios; a sanção penal, baseada numa reação a um fato passado, projeta-se também no sentido da segurança contra fatos futuros, o que importa aumento de penas e utilização de medidas de segurança.
3.2. Direito Penal do Inimigo: uma terceira velocidade do Direito Penal?
Antes de se adentrar, plenamente, no estudo do Direito Penal do Inimigo como sendo uma terceira velocidade do Direito Penal, procurar-se-á fazer uma esboço da Teoria das Duas Velocidades do Direito Penal, aceita por uma gama de penalistas, dentre eles Figueiredo Dias e Silva Sánchez, que também criticam Teoria do Direito Penal do Inimigo e o enquadram como uma terceira velocidade de Direito Penal.
Jorge de Figueiredo Dias apud Binato Júnior (2004, p. 110) aduz que a divisão do Direito Penal em dois ramos ou velocidades deve ser vista como uma corrente intermediária, na medida em que aceita a flexibilização dos direitos e garantias fundamentais em casos excepcionais.
Silva Sánchez (2002, p. 141-143), ao advogar a tese do Direito Penal de Duas Velocidades diz que “não haveria nenhuma dificuldade em admitir esse modelo de menor intensidade garantística centro do Direito Penal sempre e quando – isso sim – as sanções previstas não fossem de prisão”, fazendo a seguinte conclusão, a título de verificação fundamental, sobre as razões de admissibilidade da flexibilização dos direitos e garantias fundamentais, sem significar ataque ao Estado Democrático de Direitos:
Por um lado, como foi sendo demonstrado, que será difícil frear uma certa expansão do Direito Penal, dadas a configurações e aspirações das sociedades atuais. Por outro lado, que a teoria clássica de delito e as instituições processuais, que por sua vez refletem a correspondente vocação político-criminal de garantia próprias do Direito Nuclear da pena de prisão, não teriam que expressar idêntica medida de exigência em um Direito Penal moderno com vocação intervencionista e “regulamentadora” baseado, por exemplo, nas penas pecuniárias e privativas de direitos, assim como para um eventual Direito Penal da reparação”.
Mas como seriam essas tais duas velocidades do Direito Penal? Quem nos responde é o Jorge Figueiredo Dias, nas palavras de Binato Júnior (2004, p. 110):
A velocidade “clássica” seria o Direito Penal como o conhecemos hoje, com todas as suas garantias e protetor dos bens jurídicos individuais (vida, patrimônio, etc...). Já a outra velocidade seria voltada ao combate dos riscos, sendo dotada de algumas das características dos funcionalistas, mas em uma versão mais “mitigada” do mesmo. Esta velocidade do risco, de acordo com Figueiredo Dias (ele próprio defensor desta teoria) dever-se-ía reger por princípios autônomos, muito embora devessem estes manter uma certa relação com o Direito Penal.
O professor Damásio Evangelista de Jesus (2005, p. 01), bem sintetiza idéia do que vem a ser a segunda velocidade do Direito Penal, indicando, ademais, exemplos na legislação brasileira. Senão vejamos:
[...] cuida-se do modelo que incorpora duas tendências (aparentemente antagônicas), a saber, a flexibilização proporcional de determinadas garantias penais e processuais aliada à adoção das medidas alternativas à prisão (penas restritivas de direito, pecuniárias etc.). No Brasil, começou a ser introduzido com a Reforma Penal de 1984 e se consolidou com a edição da Lei dos Juizados Especiais (Lei n. 9.099, de 1995).
Expostos os delineamentos principais do Direito Penal de Duas Velocidades, importa saber por que Silva Sánchez considera a Teoria do Direito Penal do Inimigo, estudada no item anterior, como uma terceira velocidade do Direito Penal.
Na visão Silva Sánchez (2002, p. 148-150), seria aquela “na qual o Direito Penal da pena de prisão concorra com uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais”, características essas típicas do Direito Penal do Inimigo de Jakobs. Não se pode olvidar que a diminuição das garantias penais e processuais do Direito Penal de primeira velocidade, em alguns âmbitos e diante de casos excepcionais, é inevitável, mormente quando se leva em conta o atual estágio da política criminal nas sociedades pós-industriais, ressaltando que a terceira velocidade somente poderá ser aplicada na “abordagem de fatos emergenciais”, já que se trata de um “‘Direito de Guerra’ com o qual a sociedade diante da gravidade da situação excepcional de conflito, renuncia de modo qualificado a suportar os custos da liberdade de ação”.
Em resumo, deduz-se da preleção de Silva Sánchez apud Damásio Evangelista de Jesus (2005, p. 01-02), a existência de três velocidades de Direito Penal, sendo:
a) Direito Penal de primeira velocidade: trata-se do modelo de Direito Penal liberal-clássico, que se utiliza preferencialmente da pena privativa de liberdade, mas se funda em garantias individuais inarredáveis. b) Direito Penal de segunda velocidade: cuida-se do modelo que incorpora duas tendências (aparentemente antagônicas), a saber, a flexibilização proporcional de determinadas garantias penais e processuais aliada à adoção das medidas alternativas à prisão (penas restritivas de direito, pecuniárias etc.). c) Direito Penal de terceira velocidade: refere-se a uma mescla entre as características acima, vale dizer, utiliza-se da pena privativa de liberdade (como o faz o Direito Penal de primeira velocidade), mas permite a flexibilização de garantias materiais e processuais (o que ocorre no âmbito do Direito Penal de segunda velocidade).
O Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht), o qual prega a total exclusão dos direitos e garantias processuais dos indivíduos classificados como “inimigos” – conforme visto acima –, nas palavras de Binato Júnior surge como uma terceira velocidade, ou um terceiro gênero, “já que combina a relativização das garantias da velocidade do risco, com a cominação de penas privativas de liberdade (reservadas à velocidade “clássica”)”.
3.3. Críticas à Teoria do Direito Penal do Inimigo
Malgrado, a excelente fundamentação teórica e filosófica da doutrina do Direito Penal do Inimigo, não são poucas as críticas que incidem sobre ela, todas calcadas, basicamente, na sua incompatibilidade com a vigência do Estado Democrático de Direito constituído nas democracias ocidentais pós-industriais. Passemos a analisar cada uma das críticas mais célebres à Teoria do Inimigo no Direito Penal.
Logo de início, verifica-se que a própria denominação da teoria é falha, pois já que a Carta Política outorga todos os direito fundamental à cidadania, seria uma “pleonasmo” se falar em Direito Penal do Cidadão e uma “contradição em seus termos” a terminologia Direito Penal do Inimigo (CANCIO MELIÁ, 2005, p. 54).
Sobre o conceito de Direito Penal do Inimigo usado por Jakobs, Cancio Meliá (2005, p. 70-72) destaca que, o mesmo constitui tão só a reação do ordenamento jurídico contra indivíduos perigosos, e que para tanto a reação é desproporcional e não condiz com a realidade, nem com os postulados de psicologia social e direitos humanos. Em efeito, a identificação de um infrator como inimigo, por parte do ordenamento penal, supõe um reconhecimento de função normativa do agente mediante a atribuição de perversidade, mediante sua “demonização”.
Seguindo na análise do conceito de inimigo, Martín apud Bonho (2006, p. 11) argumenta que o inimigo é:
aquele indivíduo que abandonou de forma permanente e duradoura o Direito, e partindo da afirmação de que o Direito em questão é o dos cidadãos, e que este Direito somente possa ser infringindo por quem seja destinatário de suas norma”. Então, para que se comprove que este indivíduo, que cometeu o ato ilícito, em questão tenha infringido realmente o Direito dos cidadãos ele terá que ser submetido necessariamente a um processo penal que por certo deverá ser o dos cidadãos, pois foi o Direito do Cidadão que o mesmo infringiu e pelo qual deverá ser julgado, quando entrar no processo como cidadão, protegido pelas garantias desse Direito.
É sabido e ressabido que o Direito Penal do Inimigo ofende às Cartas Constitucionais, já que esta não admite que alguém seja tratado pelo Direito como mero objeto de coação, despido de sua condição de pessoa (ou de sujeito de direitos) (JESUS, 2005, p. 03).
Esse aspecto será melhor sistematizado em capítulo próprio mais à frente, quando se propor uma análise da referida teoria à luz da Constituição Federal de 1988. Conde apud Bonho (2006, p. 11) constata a impossibilidade de classificação de um indivíduo como pessoa ou não-pessoa, dentro de um Estado de Direito.
Damásio E. de Jesus (2005, p. 05) diz que “o modelo decorrente do Direito Penal do Inimigo não cumpre sua promessa de eficácia, uma vez que as leis que incorporam suas características não têm reduzido a criminalidade”, razão pela qual Cancio Meliá (2005, p. 73) declara a não efetividade da teoria do Direito Penal do Inimigo na prevenção de crimes e na garantia da segurança nacional, além de inconstitucional.
Nesse sentido, é que Bonho (2006, p. 12) ao estabelecer diferenças estruturais (intimamente relacionadas entre si) entre Direito Penal do Inimigo e Direito Penal clássico, deduz que aquele, ao contrário deste, não estabiliza normas (prevenção geral positiva), mas, apenas e tão somente, denomina determinados grupos de infratores.
Cancio Meliá apud Jesus (2005, p. 04), ao tecer críticas, ainda preceitua que “o fato de haver leis penais que adotam princípios do Direito Penal do Inimigo não significa que ele possa existir conceitualmente, i.e., como uma categoria válida dentro de um sistema jurídico”.
Segundo a lição de Cancio Meliá apud Damásio Evangelista de Jesus (2005, p. 06), “a melhor forma de reagir contra o ‘inimigo’ e confirmar a vigência do ordenamento jurídico” argumentando que, independente da gravidade do delito cometido, “jamais se abandonarão os princípios e as regras jurídicas, inclusive em face do autor, que continuará sendo tratado como pessoa (cidadão)”.
Ainda arrolando críticas a tese de Jakobs, bastante esclarecedoras são as palavras de Luís Flávio Gomes (2005, p. 01-02) ao dizer que o Direito Penal do Inimigo:
Não se segue o processo democrático (devido processo legal), sim, um verdadeiro procedimento de guerra; mas essa lógica “de guerra” (de intolerância, de “vale tudo” contra o inimigo) não se coaduna com o Estado de Direito; perdem lugar as garantias penais e processuais. Tratar o criminoso comum como “criminoso de guerra” é tudo que ele necessita, de outro lado, para questionar a legitimidade do sistema (desproporcionalidade, flexibilização de garantias, processo antidemocrático etc.); temos que afirmar que seu crime é uma manifestação delitiva a mais, não um ato de guerra. A lógica da guerra (da intolerância excessiva, do “vale tudo”) conduz a excessos. Destrói a razoabilidade e coloca em risco o Estado Democrático. Não é boa companheira da racionalidade.
Outra crítica feita à teoria do Direito Penal do Inimigo, se deve ao fato de se enquadrar como um direito do autor e não um direito do fato, burlando um dos princípios basilares do Direito Penal, que é, justamente, o princípio de direito penal do fato, que prega a impossibilidade de incriminar alguém baseado em simples pensamentos (“ou atitude interna do autor”) (JESUS, 2005, p. 07).
Sobre o Direito Penal do Inimigo como exemplo de Direito Penal do autor, Cancio Meliá apud Luís Flávio Gomes afirma:
O que Jakobs denomina de Direito penal do inimigo [...], é nada mais que um exemplo de Direito penal de autor, que pune o sujeito pelo que ele “é’ e faz oposição ao Direito penal do fato, que pune o agente pelo que ele “fez”. A máxima expressão do Direito penal de autor deu-se durante o nazismo, desse modo, o Direito penal do inimigo relembra esse trágico período; é uma nova “demonização” de alguns grupos de delinqüentes, perfazendo-se em um “não Direito”, que lamentavelmente está presente em muitas legislações penais. Não se reprovaria (segundo o Direito penal do inimigo) a culpabilidade do agente, sim, sua periculosidade.
Outrossim, pode-se alegar que o Direito Penal do Inimigo é uma reação do sistema jurídico, frente aos problemas sociais como os riscos do mundo pós-modernos, internamente disfuncional. Pois, "os fenômenos, frente aos quais reage o Direito penal do inimigo, não tem esta periculosidade terminal pra a sociedade como se apregoa deles". A importância dada a estes fenômenos está em que tratam-se de comportamentos delitivos que afetam elementos essenciais e vulneráveis da identidade das sociedades, principalmente num plano simbólico. Assim, uma resposta juridicamente-funcional deveria estar na afirmação do Direito Penal da normalidade, e não na afirmação de um Direito Penal para o inimigo. Portanto, "a resposta idônea no plano simbólico, ao questionamento de uma norma essencial, deve estar na manifestação de normalidade, na negação da excepcionalidade” (CANCIO MELIÁ, 2005, p. 76-78).
Luís Flávio Gomes (2005, p. 02), ao impugnar os pressupostos da teoria do Direito Penal do Inimigo aduz que este “não repele a idéia de que as penas sejam desproporcionais, ao contrário, como se pune a periculosidade, não entra em jogo a questão da proporcionalidade (em relação aos danos causados)”.
Outro ponto questionado no Direito Penal do Inimigo é o seu caráter simbólico e populista, conferido pelo Poder Legislativo ao editar leis eivadas com as características de tal teoria. Nas palavras de Luís Flávio Gomes (..., p....):
É fruto, ademais, do Direito penal simbólico somado ao Direito penal punitivista (Cancio Meliá). Esse Direito penal “do legislador” é abertamente punitivista (antecipação exagerada da tutela penal, bens jurídicos indeterminados, desproporcionalidade das penas etc.) e muitas vezes puramente simbólico (é promulgado somente para aplacar a ira da população); a soma dos dois está gerando como “produto” o tal de Direito penal do inimigo.
Um dos fundamentos utilizados por aqueles que defendem a adoção da Teoria do Direito Penal do Inimigo, é o de que os inimigos podem colocar em risco a estruturas do Estado constituído, o que é uma inverdade, já que, como diz Damásio E. de Jesus (2005, p 06) “o risco que esses inimigos produzem dá-se mais no plano simbólico do que no real”.
Luís Flávio Gomes (2005, p. 02) diz que a criminalidade “inimiga” tem o condão, apenas de “afetar bens jurídicos relevantes, causar grande clamor midiático e às vezes popular, não chegando a colocar em risco a própria existência do Estado” e de suas instituições.
Neste compasso, é de bom alvitre frisar a lição de Prittwitz apud Bonho (2006, p. 12) que:
Reconhece o sucesso incrível do Estado de Direito nos últimos dois séculos, ainda que considerando muitos retrocessos, como o nazismo, por exemplo, e as variadas velocidades desse processo em diversas partes do mundo. O autor reafirma este sucesso mesmo frente às políticas dos EUA que defendem a liberdade por meio da violação do direito à liberdade. Este sucesso, afirma o autor, deve ser observado na busca por uma reposta aos riscos da sociedade atual, não devendo dar espaço para outro que não seja o Direito compatível com um Estado Democrático de Direito.
Para concluir, bastante elucidativa é a crítica de Inácio Belina Filho (2005, p. 03), o qual ressalta que:
[...] o Direito Penal do Inimigo nada mais é que uma nova roupagem do Direito Penal do Terror, da idade média, e mais recentemente do Direito Penal do Autor, da Segunda Guerra Mundial. Querem combater o crime com Direito Penal. Ledo engano! Combate-se a pratica delituosa com a Criminologia e a Política Criminal, no entanto, se ambos não forem eficazes ai sim, aplica-se o Direito Penal Sancionador, como ultima ratio. Indubitavelmente, a adoção de um direito autoritário ou antidemocrático, nos levará ao retrocesso; a humanidade pagará caro pelas injustiças: que Deus nos tome as contas!