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Comunidades carentes, ausência do Estado e vassalagem: o medieval no século XXI

20/01/2020 às 13:55
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Visão crítica mediante uma comparação entre a vassalagem do feudalismo medieval e a criação de centros de poder de fato em "comunidades carentes" no Brasil contemporâneo, gerando promiscuidade entre política e crime organizado.

1-INTRODUÇÃO

Antes de dizer o que se pretende expor no presente texto, é bom deixar claro, com muita exatidão, o que não se pretende afirmar.

Quando se aponta para a Medievalidade no século XXI, pode parecer ao leitor que este trabalho será mais um informado pela absoluta ignorância trevosa daqueles que repetem asneiras como papagaios e utilizam tudo quanto diga respeito à época conhecida como “Medieval” em um sentido pejorativo, valendo-se reiteradamente da nefasta e equivocada expressão “Idade das Trevas”.

A própria expressão “Idade Média” já vem carregada de preconceito histórico, gerado, como todo preconceito injustificado, pela mais profunda ignorância. A chamada “Idade Média” surge como um período supostamente nefasto e estéril incrustrado entre as glórias da Antiguidade e do Renascimento. Por isso, é comum a referência a expressões como “retrocesso aos tempos medievais” para desvalorizar tudo quanto se pretenda criticar negativamente em nossa época.

Dentre muitos estudiosos, Pernoud é quem, de forma mais transparente e com base em fontes primárias, desmente aquilo que denomina de “Mito da Idade Média”. [1] A historiadora se surpreende com o fato de que, ainda hoje, uma série de absurdos e estreitezas de visão sejam capazes de “fazer lei”, uma espécie de “dogma” supostamente científico entre indivíduos absolutamente néscios sob o ponto de vista científico-histórico. [2]

O que realmente se tenciona com este texto é apresentar em breves linhas as características (especialmente das relações sociais e intersubjetivas) do regime feudal e da vassalagem, para demonstrar algumas similaridades que ocorrem com a organização social e política das chamadas “comunidades carentes”, bem como a promiscuidade entre a política e os políticos e essa organização social, no que diz respeito às relações de poder e favores diretos e indiretos, especialmente com aqueles que exercem uma liderança local por meio da força. Fato é que se o regime feudal e a vassalagem tiveram motivações e justificativas em dada época histórica, hoje as relações semelhantes encontráveis são tipicamente uma espécie de cabresto eleitoral, curral de almas dóceis, totalmente dissociado de um pretenso regime vigente em um Estado Democrático de Direito.  


2-SENHORES E VASSALOS: COMPROMISSOS DE HONRA E PROTEÇÃO

O período histórico conhecido como “Idade Média” é marcado por muita “agitação e instabilidade”. Não há propriamente uma “lei” a regular as relações entre fortes e fracos, um mediador para evitar a simples imposição da força bruta. Aquilo que conhecemos hoje por “Estado” é algo de conformação absolutamente “distante e impotente, senão inexistente”. Nesse quadro somente os grandes proprietários de terras representam uma “base sólida” em que ancora-se a população desprovida de meios para a própria defesa. Por isso os menos afortunados recorrem a estes, lhes confiando “sua terra e sua pessoa”. O que o vassalo busca é proteção contra invasões estrangeiras, hordas de criminosos e abusos fiscais de dominadores. A verdade é que à medida em que um poder central não se consolida crescem os poderes locais dos grandes proprietários. [3]

Carlos Magno já encontra no território de seu domínio o poder instituído de muitos “senhores” a cujo entorno convergiam muitos homens fiéis, de forma que “o poder central tinha dado lugar ao poder local”. Conforme ensina Pernoud,

“a hierarquia medieval, resultado dos fatos econômicos e sociais, tinha-se formado a partir de si própria, e os seus usos, nascidos sob pressão das circunstâncias, manter-se – iam pela tradição”. [4]

No período Carolíngio o poder central somente se sustentou com a força de representantes que estavam dentre “os mais fortes proprietários da época”. Longe de tentar combater esses poderios locais, sua força foi simplesmente canalizada para que se pudesse tirar a vantagem possível, aceitando a “hierarquia feudal”. [5] Eis, “in verbis”, o que nos ensina Pernoud:

“A autoridade, em lugar de estar concentrada num só ponto – indivíduo ou organismo -, encontra-se repartida pelo conjunto do território. Foi essa a grande sabedoria dos Carolíngios, não tentarem ter nas mãos toda a máquina administrativa, mantendo a organização empírica que tinham encontrado. A sua autoridade imediata não se estendia senão a um pequeno número de personagens, que possuíam elas próprias autoridade sobre outros, e assim de seguida até às camadas sociais mais humildes; mas, degrau a degrau, uma ordem do poder central podia assim transmitir-se ao conjunto do país; aquilo que não controlavam diretamente podia, todavia ser atingido indiretamente”. [6]

Não se pode, porém, perder de vista o fato de que essa conformação político – social não é obra deliberada de um indivíduo ou de um grupo, mas fruto de um natural ajuste a condições e circunstâncias históricas específicas muito objetivas que se impunham naquela oportunidade.


3-SENHORES E VASSALOS NO BRASIL DO SÉCULO XXI: CORRUPÇÃO E JOGO DE PODER

Na atualidade, essa busca de uma base protetiva necessária à própria concreção de necessidades de sobrevivência de uma população carente e abandonada à própria sorte, é mais que visível nas chamadas “comunidades” por todo o Brasil.

O Estado distante ou ausente deixa uma enorme fresta por onde adentram indivíduos ou grupos de exercício de poder de fato, especialmente pelo crime organizado que capta colaboradores e apadrinhados, os quais são massa de manobra para quaisquer fins desejados. Há uma relação semelhante de vassalagem e de fidelidade de honra.

Acontece que esse fenômeno se dá não por força de circunstâncias histórico-sociais, nem mesmo econômicas. O Estado organizado, dotado de aparato para conferir proteção aos cidadãos, simplesmente se retrai por obra deliberada de políticos. Com essa retração, a espoliação tributária resulta num bolo de recursos que propicia uma maior fatia para corrupção e desvios, para a nomeação de “assessores” e outros chamados “cargos de confiança” ou “em comissão”, em detrimento de funcionários públicos concursados. Também para gastos exorbitantes totalmente dispensáveis (carros oficiais, mordomias, passagens de avião, hospedagens, cartões funcionais etc.). E os dividendos políticos estão garantidos pela promiscuidade e proximidade, senão intimidade entre esse novos “senhores” do crime organizado e seus “feudos” e os poderes centrais dos Estados e da União.

A classe política não se importa com o funcionalismo público de carreira, nem com a população em geral porque tem seu curral eleitoral e suas almas dóceis, desde que possa manter uma relação equilibrada com os pequenos centros de poder capazes de articulação. Por isso, eleição atrás de eleição, vemos os mesmos inúteis e deletérios indivíduos galgando os postos mais altos na Política Nacional. Por isso vemos um indivíduo encarcerado por crime contra a dignidade sexual, parente de um ex-governador preso por corrupção, se reeleger. E vemos a destruição da Polícia Judiciária em todo o Brasil, bem como da Polícia Ostensivo – Preventiva (essa em menor grau, pois que ainda pode se constituir em força bruta a serviço do Estado).

Pela mesma razão a propalada “crise” é jogada nas costas dos funcionários públicos e é desculpa para toda espécie de encolhimento do Estado e criação de mais e mais áreas para surgimento de subsistemas de poder, de diluição da coesão social e de Estados dentro do Estado. Por isso a mesma crise serve para que governantes venham a público e digam que é uma grande façanha de gestão simplesmente pagar o funcionalismo em dia, como se isso fosse uma espécie de “esmola” ou “caridade”! Falo do funcionalismo real, do funcionário que trabalha, não de nomeados, apadrinhados e cabideiros de emprego.

Eis a razão por que Policiais são ameaçados de prisão quando exercem seu direito de greve, não para lutarem por melhorias salariais, mas para simplesmente exigir o pagamento que lhes é devido como a qualquer trabalhador que não seja escravo (e a escravidão foi abolida no Brasil desde 1888 pela chamada “Lei Áurea”). E mais, para exigir condições mínimas de trabalho, justamente para servir a contento a população e não terem de colocar suas próprias vidas e integridades físicas em risco acima do que possa ser inerente à função policial. No entanto, uma greve que visa justamente possibilitar a prestação decente de um serviço de segurança à população, é considerada ilegal, sob o falso pretexto de que se trata de uma atividade de caráter essencial. Pois é justamente por ser essencial que o Estado tem o dever de manter tal atividade a contento e os funcionários também têm o mesmo dever de lutar por essa manutenção e denunciar o descaso governamental. No entanto, a escolha é por um posicionamento que jamais seria pensável nem mesmo no regime ditatorial mais ferrenho de que já se teve notícia.

Anular o Direito de Greve do servidor, com a pretensão de obrigar as pessoas a trabalharem sem contraprestação, o que é, no mínimo, algo que se pode qualificar como o crime de “Redução à Condição Análoga à de Escravo”. Rasga-se a Constituição como talvez nem mesmo um ditador teria a coragem de fazê-lo, porque se a rasga sob o manto de uma pretensa legalidade e legitimidade. E com base nestas são invertidos os valores, pois quem não dá condições para a prestação de um serviço público essencial exsurge cheio de razão, enquanto os servidores que lutam por um serviço público decente, são tratados como criminosos! [7]Isso não é uma interpretação pessoal, é fato, é o que vem ocorrendo em nosso país. E como diz com propriedade Eco, “os fatos são aquelas coisas que resistem às minhas interpretações”. [8]

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Mas, todo esse desmonte tem perfeito encaixe na deliberada construção de espaços vazios de Estado e de Direito, preenchidos por pequenos senhores com os quais se pode negociar e, indiretamente, atingir a perenização no poder independentemente de toda a inépcia.

Este texto, obviamente, dados seus limites e, especialmente, em razão das limitações do autor, não tem a pretensão de esgotar a temática, mas apenas e tão somente de deixar em aberto essa visão crítica do “status quo” de nosso país. Talvez alguém com maior capacidade de aprofundamento histórico, político e sociológico possa partir dessa mera constatação e desenvolver uma pesquisa muito mais profunda e profícua, denunciando a catástrofe que vivemos.


4-CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho procurou-se expor o sistema feudal, marcado por uma relação de proteção e submissão entre senhores e vassalos. Foi demonstrado que esse sistema derivou de uma série de condições e circunstâncias históricas.

Em seguida foi demonstrada a prática deliberada de abertura de espaços vazios de Estado e de Direito em nosso país, especialmente em grande “comunidades carentes”, gerando descentralização de poder de fato e relações promíscuas entre Estado, Política e Crime Organizado. A situação se assemelha à da vassalagem e ao aproveitamento, na época, pelo poder central, dessa organização social espontânea. Com o diferencial de que atualmente o Estado vem se afastando de forma deliberada e criando, por si mesmo, esse retorno a um sistema de poder diluído que possibilita uma capilaridade de relações promíscuas capazes de assegurar o poder a uma casta central e a pequenos pontos de exercício de poder de fato.

O encolhimento deliberado do Estado, especialmente na área da Segurança Pública, é visível e insofismável, restando à população, principalmente a mais carente, o recurso aos que lhe podem ofertar alguma proteção e organização e, assim, caindo na malha da perpetuação do poder de fato e daquele que ao menos se diz de Direito.

O único caminho é o estudo desse fenômeno altamente degradante e sua denúncia.


5-REFERÊNCIAS

ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe. Trad. Eliana Aguiar. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.

PERNOUD, Régine. Luz Sobre a Idade Média. Trad. António Manuel de Almeida Gonçalves. Lisboa: Europa – América, 1997.

__________. O Mito da Idade Média. Trad. Maria do Carmo Santos. Lisboa: Europa  - América, 1978.

SENTENÇA de desembargador diz que Policial não é trabalhador, é escravo do Estado. Disponível em https://www.asstbm.com.br/asstbm/sentenca-de-desembargador-diz-que-policial-nao-e-trabalhador-e-escravo-do-estado/ . Acesso em 04.01.2018.


Notas     

[1] PERNOUD, Régine. O Mito da Idade Média. Trad. Maria do Carmo Santos. Lisboa: Europa  - América, 1978, “passim”.

[2] Op. Cit., p. 21.

[3] PERNOUD, Régine. Luz Sobre a Idade Média. Trad. António Manuel de Almeida Gonçalves. Lisboa: Europa – América, 1997, p. 28.

[4] Op. Cit., p. 28.

[5] Op. Cit., p. 28 – 29.

[6] Op. Cit., p. 29.

[7] SENTENÇA de desembargador diz que Policial não é trabalhador, é escravo do Estado. Disponível em https://www.asstbm.com.br/asstbm/sentenca-de-desembargador-diz-que-policial-nao-e-trabalhador-e-escravo-do-estado/ . Acesso em 04.01.2018.

[8] ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe. Trad. Eliana Aguiar. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017, p. 251.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comunidades carentes, ausência do Estado e vassalagem: o medieval no século XXI. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6046, 20 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63226. Acesso em: 24 nov. 2024.

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