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A Lei n.º 13.608, de 10 de Janeiro de 2018, prevê o instituto do whistleblower?

04/02/2018 às 17:49
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O whistleblower, embora não regulamentado no Brasil como afora, começa a ser vislumbrado na legislação para permitir que o cidadão com posse de informações úteis auxiliasse na elucidação de atos ilícitos de corrupção e lavagem de dinheiro.

 

O Whistleblower (ou “soprador do apito”) refere-se à hipótese, por meio da qual o cidadão, não envolvido na atividade criminosa, resolve auxiliar e “denunciar” irregularidades administrativas e ilícitos criminais às autoridades públicas, recebendo, em contrapartida, uma retribuição financeira intitulada “recompensa” ou “prêmio”.

Por intermédio de minucioso estudo sobre o tema no famigerado “caso HSBC Suíço”, prelecionou DE GRANDIS :

 ‘O whistleblower – ou, simplesmente, denunciante ou informante – é aquele que, ao tomar conhecimento de uma irregularidade ou de um crime concretizado no âmbito de sua atividade profissional, “toca o apito”, ou seja, comunica a ocorrência às autoridades competentes, como a polícia ou o Ministério Público, embora não tenha nenhuma obrigação legal nesse sentido. No caso do HSBC suíço, quem “tocou o apito” e entregou uma imensidão de dados bancários de diversas pessoas físicas e jurídicas em situação aparentemente criminosa foi o cidadão franco italiano Hervé Falciani, funcionário da área de informática do HSBC de Genebra. Falciani é uma figura controvertida. A Suíça o acusa de agir em interesse próprio e na busca de lucro, argumentando que ele extraiu dados bancários ilegalmente para tentar vendê-los posteriormente a instituições financeiras libanesas. Outros, contudo, consideram Falciani um herói inspirado por sentimentos nobres e altruístas. Seja como for, ao denunciar o esquema existente no HSBC de Genebra, Hervé Falciani gerou investigações criminais relacionadas a lavagem de dinheiro e a sonegação fiscal na Inglaterra, Espanha, Itália, Bélgica e na Grécia (...)‘ (grifos acrescidos).

É uma figura jurídica utilizada nos Estados Unidos da América (EUA) e Europa, tendo sido recomendada pela ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro) como uma das formas de combate à corrupção.

Vale destacar que o Programa de Proteção e Incentivo ao Whistleblower foi fruto de debates na Ação 4/2016 da ENCCLA, cujo entendimento ficou consignado na seguinte forma:

“Whistleblower, em tradução literal, é o assoprador de apito. Na comunidade jurídica internacional, o termo refere-se a toda pessoa que espontaneamente leva ao conhecimento de uma autoridade informações relevantes sobre um ilícito civil ou criminal. As irregularidades relatadas podem ser atos de corrupção, fraudes públicas, grosseiro desperdício de recursos público, atos que coloquem em risco a saúde pública, os direitos dos consumidores etc. Por ostentar conhecimento privilegiado sobre os fatos, decorrente ou não do ambiente onde trabalha, o instituto jurídico do whistleblower, ou reportante, trata-se de auxílio indispensável às autoridades públicas para deter atos ilícitos. Na grande maioria dos casos, o reportante é apenas um cidadão honesto que, não tendo participado dos fatos que relata, deseja que a autoridade pública tenha conhecimento e apure as irregularidades. Com base nesse conceito, a Enccla, por meio da Ação 4, cuja meta é “elaborar diagnóstico e proposição de aprimoramento do sistema brasileiro de proteção e incentivo ao denunciante e whistleblower”, tem realizado vários encontros com o propósito de alcançar o melhor entendimento sobre a matéria por meio de apresentações, de estudos comparados e aplicados à realidade jurídica nacional, ao tempo em que tem elaborado um anteprojeto de lei (APL) que incentive a proteção do cidadão que reportar a uma autoridade pública a ocorrência de atos ilícitos, ainda que omissivos, a exemplo daqueles que violem dever legal expresso, ou que de qualquer forma atentem contra o patrimônio público, criando proteção e incentivos à participação da sociedade na apuração de fraudes públicas e ofensa a normas legais.”.

Com efeito, o instituto representa, mutatis mutandis, importante inovação e modernização no sistema jurídico brasileiro, malgrado já tivesse sido previsto no artigo 33 da Convenção da Nações Unidas para o Combate à Corrupção, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2003in verbis:

"Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.".

Ademais, a figura jurídica é denominada “reportante do bem”, porquanto traz informações benéficas e necessárias à elucidação de ilícitos administrativos e criminais, distinguindo-se, contudo, do “colaborador” na “colaboração premiada”, porquanto nesta o colaborador encontra-se envolvido na atividade criminosa, e, ao tempo em que admite sua participação nos fatos, decide “delatar” os outros envolvidos (partícipes e coautores) até então desconhecidos da organização ou atividade criminosa.

Nesse ponto, lecionam Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues da Silva:

“É pressuposto da colaboração premiada a confissão do agente, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça. Aquele que simplesmente aponta a responsabilidade de terceiros é um informante ou testemunha, mas não um investigado ou réu colaborador. Nisso reside a figura do whistleblower (delator externo e externo porque não participou do crime)” (grifos acrescidos, p.240)”

A Lei n.º 13.608/2018 expressamente previu, em prol do “denunciante” que revelar ilícitos administrativos e criminais, o recebimento de “recompensa” ou “prêmio”, como forma de estimular a efetivação de  notícias de fatos (fornecimento de dados, documentos e informações relevantes) benéficas ao desbaratamento de atividades ilícitas.

Saliente-se o fato de que a legislação estabeleceu o sigilo do denunciante, com o intuito de resguardar sua integridade física e livrá-lo de represálias, in verbis:

“(...) Art. 3º O informante que se identificar terá assegurado, pelo órgão que receber a denúncia, o sigilo dos seus dados. 

Art. 4o  A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas competências, poderão estabelecer formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos.

Parágrafo único. Entre as recompensas a serem estabelecidas, poderá ser instituído o pagamento de valores em espécie.

Ressalte-se, ainda, que a providência legislativa alterou a  Lei n.º  10.201, de 14 de fevereiro de 2001, a qual instituiu o Fundo Nacional de Segurança Pública - FNSP, nos seguintes termos :

 “Art. 4o O FNSP apoiará projetos na área de segurança pública destinados, dentre outros, a: (Redação dada pela Lei nº 10.746, de 10.10.2003)

I - reequipamento, treinamento e qualificação das polícias civis e militares, corpos de bombeiros militares e guardas municipais; (Redação dada pela Lei nº 10.746, de 10.10.2003)

II - sistemas de informações, de inteligência e investigação, bem como de estatísticas policiais; (Redação dada pela Lei nº 10.746, de 10.10.2003)

III - estruturação e modernização da polícia técnica e científica; (Redação dada pela Lei nº 10.746, de 10.10.2003)

IV - programas de polícia comunitária; e (Redação dada pela Lei nº 10.746, de 10.10.2003)

V - programas de prevenção ao delito e à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.746, de 10.10.2003)

VI - serviço telefônico para recebimento de denúncias, com garantia de sigilo para o usuário; (Incluído pela Lei nº 13.608, de 2018)

VII - premiação, em dinheiro, para informações que levem à resolução de crimes. (Incluído pela Lei nº 13.608, de 2018)”.

Por outro lado, em que pesem eventuais críticas no sentido de que a Lei de regência tenha previsto apenas premiações e recompensas no famigerado programa “disque denúncia”, vale registrar que foram introduzidas inovações relevantes ao instituto do “whistleblower”, ainda que com hipóteses distintas das previstas nas legislações Norte-Americanas e Europeias.

Indaga-se, porém, como ficaria a tutela de direitos dos investigados, quando incidentes os crimes de calúnia ou denunciação caluniosa, diante do sigilo imposto legalmente? Ora, ao mesmo tempo que foi determinado o “aspecto sigiloso” das informações, a vítima (ou ofendido) poderá requerer o “levantamento” deste, mediante pedido formulado à autoridade administrativa, no legítimo exercício do direito de petição (artigo 5º, XXXIV, da CF/88), podendo, ainda, acionar o Poder Judiciário, na hipótese de negativa administrativa (art. 5, XXV, da CF/88).

Desta forma, diante das informações relativas à qualificação do “denunciante”, a vítima de eventuais abusos poderá intentar ações de indenização por danos morais, sem prejuízo das ações penais cabíveis por crimes contra a honra e à administração da justiça.

Observe-se que a inovação poderá estimular relatos de atividades criminosas ou ilícitos administrativos, que jamais seriam desvendados, se não houvesse o aludido estímulo por parte do Estado, possuindo, por conseguinte, o aspecto de fomento ao exercício da cidadania.

Nos EUA, a medida possui eficácia comprovada, conforme leciona Claudio de Abreu:

‘ O Código Tributário Federal dos Estados Unidos da América (“EUA”) no Título 26 (“U.S. Code: Title 26 - Internal Revenue Code ”), “Subtítulo F – Procedimento e Administração (§§ 6001 a 7884) ”, “Capítulo 78 – Descoberta de Responsabilidade e Execução de Título (§§ 7601 a 7655) ”, “Subcapítulo B – Poderes e Deveres Geais (§§ 7621 a 7624)” , “Seção § 7623 – Despesas de detecção de pagamentos a menor e fraude, etc.” , “Subseção (b) Premiações para os denunciantes” , prevê a possibilidade de premiação ao denunciante cujas informações resultarem em tributação adicional, penalidades e outros montantes que deveriam ter sido recolhidos pelo sujeito passivo tributário. Tal premiação corresponderá a um percentual que pode variar de 15% (quinze por cento) a 30% (trinta por cento) do total arrecadado com a denúncia. É o denominado “Whistleblower – Informant Award Program” (“Programa de Premiação ao Denunciante”) sob responsabilidade da “Internal Revenue Service”, a Receita Federal dos EUA. ‘.

De outro lado, a legislação brasileira difere da legislação na Inglaterra, a qual prevê medidas de proteção contra demissões arbitrárias relativamente aos intitulados reportantes do bem, que fornecerem informações acerca de ilícitos perpetrados pelas empresas ou agentes públicos.

Além disso, distingue-se da previsão Norte- Americana, a qual expressamente trouxe parâmetros para o recebimento de recompensa até o limite de 30% (trinta por cento) da multa decorrente do ilícito resultante do fornecimento das informações reportadas pelo cidadão.


Distinção da denúncia anônima :

Na “denúncia anônima”, o denunciante não apresenta seus dados, mantendo o anonimato, seja em relação ao banco de dados, seja em relação à autoridade a cargo da investigação.

Por seu turno, o  whistleblower  é um instituto, por meio do qual o denunciante poderá se identificar perante o respectivo banco de dados público (v.g disque denúncia), mantendo, todavia, o sigilo dos dados de qualificação para o público externo, exceto para as respectivas autoridades responsáveis pela investigação (v.g: Delegado de Polícia, Membro do Ministério Público).

Com efeito, é o que dispõe o artigo 3º da Lei, verbis:  “O informante que se identificar terá assegurado, pelo órgão que receber a denúncia, o sigilo dos seus dados”.

Demais disso, no intuito de viabilizar o recebimento da recompensa, faz-se mister a identificação do denunciante para a respectiva autoridade pública, no intuito de que receba o “prêmio” em espécie ou mediante depósito devidamente identificado.

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Para fins de instauração de inquérito e procedimentos administrativos investigatórios, os dados fornecidos pelo  whistleblower  devem ser revestidos de um mínimo de informações  concretas acerca dos fatos e autoria dos ilícitos reportados, não sendo suficientes, por si sós, para a deflagração de inquérito policial ou investigações antes da adoção de providências investigativas preliminares para fins de corroboração dos supostos indícios dos atos ilícitos, de forma análoga aos requisitos das “denúncias anônimas”, consoante já decidido pelo STJ, in verbis:

‘( ...) Esta Corte Superior de Justiça e o Supremo Tribunal Federal firmaram o entendimento de que a notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigativos preliminares em busca de indícios que corroborem as informações, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal. Precedentes’(...) (STJ, 6ª Turma, HC 413160/PE, Rel. Sebastião Reis Júnior, DJe 28/11/2017).

Por outro lado, caso o cidadão (reportante do bem ou de boa-fé)  forneça elementos comprobatórios dos atos ilícitos (documentos, vídeos, fotos, entre outros), e sendo estes suficientes para a deflagração de uma investigação direta, nada obstará que a autoridade policial proceda à instauração de inquérito policial para apurar os fatos reportados, ante o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, e por ser uma situação   distinta da intitulada ‘denúncia anônima’.

A Lei não estipulou o valor do prêmio ou recompensa em favor do “whistleblower”, que forneça informações essenciais ao desbaratamento de ilícitos administrativos ou criminais. Todavia, devem ser utilizados parâmetros de recompensas proporcionais à eficácia das informações fornecidas em prol da elucidação dos ilícitos, com fundamento no princípio da proporcionalidade.


Conclusão :

O whistleblower, embora não previsto no Brasil de forma semelhante à legislação estrangeira, teve o ‘start’ providenciado pelo  legislador nacional, o qual teve a intenção de propiciar que o cidadão participasse na elucidação da  efetiva persecução criminal (além de auxiliar no esclarecimento de ilícitos administrativos), resultando na concretização do exercício da cidadania ativa, embora ainda careça de ulterior regulamentação (por intermédio de atos normativos a serem editados), no intuito de viabilizar a eficácia solidificada nos EUA e na Europa.

 


REFERÊNCIAS :

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais.São Paulo : malheiros, 2017.

ABREU,Claudio.http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI239483,71043Whistleblower+no+Direito+Tributario+NorteAmericano+Possibilidade de . Acesso em 14 de jan/2018.

ENCCLA. O que é o whistleblower? http://enccla.camara.leg.br/noticias/o-que-e-o-whistleblower. Acesso em 15 de jan/2018

GOMES, Luiz Flávio; DA SILVA, Marcelo Rodrigues. Organizações Criminosas e Técnicas Especiais de Investigação. Salvador: Juspodivm.

GRANDIS, Rodrigo de. Whistleblowing e Direito Penal. Disponível em https://www.jota.info/artigos/coluna-rodrigo-de-grandis-12022015. Acesso em 14 de jan/ 2018.

MARTINS, Jomar. https://www.conjur.com.br/2016-set-20/whistleblower-aliado-estado-combate-corrupcaoAcesso em 14 de jan/2018.

 

 

 

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Sobre o autor
Leandro Bastos Nunes

Procurador da República. Ex-Advogado da União. Especialista em direito penal e processo penal. Articulista. Autor da obra "Evasão de divisas" (Editora JusPodivm). Professor da pós-graduação em direito penal econômico da FTC (Faculdade de Tecnologia e Ciências), e em cursos do Ministério Público da União. Palestrante em crimes financeiros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Leandro Bastos. A Lei n.º 13.608, de 10 de Janeiro de 2018, prevê o instituto do whistleblower?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5331, 4 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63486. Acesso em: 7 out. 2024.

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