Seguindo as diretrizes do programa “Gás para Crescer” lançado pelo Governo Federal, o Ministério de Minas e Energia, a Agência Nacional do Petróleo e outros agentes da indústria gasífera têm direcionados esforços no sentido da substituição do atual modelo de prestação de serviços de transporte de gás natural por tarifa postal (‘Modelo Postal’) pelo modelo de contratação independente de capacidades de entrada e de saída (‘Modelo de Entrada e Saída’).
No Modelo Postal, um único carregador (o agente que utiliza ou pretende utilizar o serviço de movimentação de gás natural em gasoduto de transporte) contrata uma transportadora (empresa autorizada ou concessionária da atividade de transporte de gás natural por meio de duto) para a realização do transporte de gás desde determinado ponto de recebimento até o de entrega conforme acordado. O preço desses serviços corresponde ao volume de gás transportado multiplicado pelo valor das tarifas previstas no contrato, independentemente da distância percorrida durante o transporte.
No Modelo de Entrada e Saída, os carregadores poderão contratar com a transportadora, de forma independente, a reserva das capacidades de recebimento (entrada) e/ou de entrega (saída) de gás natural nas instalações do gasoduto. Quando determinada operação comercial com o gás for acordada entre os carregadores, a prestação do respectivo serviço de transporte das quantidades contratadas será acionada por meio de um procedimento de nominação/programação logística.
Ao que tudo indica, no novo Modelo de Entrada e Saída, a contratação dos serviços da transportadora passará a ser feita de forma independente pelos diversos agentes estabelecidos nos pontos de recebimento (entrada) e de entrega (saída) ao longo do gasoduto, com a emissão de faturas distintas para cada um desses agentes.
A ser confirmado este novo marco regulatório, uma série de questões tributárias precisará ser revista, inclusive a própria caracterização do fato gerador do ICMS sobre os serviços de transporte de gás.
Em regra, a prestação de serviços de transporte interestadual ou intermunicipal de gás é sujeita a incidência do ICMS, na forma do art. 155, II, da Constituição Federal e do art. 2º, II, da Lei Complementar n. 87/96. Isto porque, a despeito das peculiaridades inerentes ao transporte de gás (o gás é fungível, de modo que o bem recebido para transporte no ponto de recebimento não é o efetivamente entregue ao seu destinatário), esse tipo de operação vem sendo entendido como um típico serviço de transporte, decorrente de contrato pelo qual “alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas” (Código Civil, art. 730).
Esse entendimento foi consolidado no âmbito do atual Modelo Postal, em que a prestação de serviço se materializa a partir da celebração de um único contrato de transporte entre o carregador e o transportador, cabendo ao primeiro a programação dos pontos de entrega e recebimento, nos limites acordados.
Já no proposto Modelo de Entrada e Saída, parece que a lógica contratual se afastará, num primeiro momento, do tradicional conceito de transporte, eis que a prestação desse serviço decorrerá não de um, mas de dois ou mais contratos. Por meio dos contratos denominados de ‘entrada’, a transportadora assumirá a obrigação de receber em favor de um carregador determinado volume diário de gás natural em certos pontos de seu gasoduto. Ao mesmo tempo, por meio da celebração de contratos de ‘saída’, a transportadora terá o dever de, quando solicitada, entregar para determinado carregador determinado volume de gás em outro ponto de seu gasoduto.
À luz desse novo modelo de pluralidade de contratos, a aproximação dos serviços prestados pelas transportadoras com a hipótese de incidência do ICMS em operações intermunicipais e interestaduais passará, necessariamente, pelo procedimento de nominação/programação logística, que deverá ser exigido dos carregadores.
Com efeito, de acordo com o projeto de lei em curso para a implantação do novo marco regulatório do gás, o conceito de ‘programação logística’ se refere à “programação operativa realizada pelo transportador, em atendimento às solicitações dos carregadores, com base nos contratos de serviço de transporte, considerando, para todos os efeitos, o gás natural como bem fungível”.
Ou seja, segundo o novo modelo proposto, a celebração de contratos de entrada e saída não basta para o início da prestação dos serviços de transporte. Os carregadores terão o dever de definir, em procedimento de nominação que vier a ser estabelecido, o par “origem-destino” e o volume correspondente. Assim, a prestação do serviço de transporte pela transportadora somente ocorrerá após o momento em que efetivamente estiverem completamente definidos todos os elementos inerentes a esse tipo de atividade (ponto de recebimento, ponto de entrega, volume de gás, etc.). Por sua vez, quando do faturamento — que no transporte dutoviário de gás, por suas características únicas, dá-se de forma consolidada no mês seguinte ao da prestação dos serviços, já estarão clara e perfeitamente fixados todos os elementos caracterizadores do serviço de transporte que não houverem, aprioristicamente, sido definidos nos contratos de entrada e saída.
Nota-se que, nesse aspecto, o modelo de contrato atual guarda certa semelhança com o proposto, porque em ambos os elementos que caracterizam a efetiva prestação do serviço de transporte (definição de volumes, trajetos e destinatários) apenas se aperfeiçoam após a programação diária e a alocação dos recebimentos e entregas de gás. Isso muito embora, no modelo atual, o contrato já preveja, em relação a um mesmo e único carregador, pontos de recebimento, de entrega e um volume máximo para a capacidade de transporte.
Já no novo modelo, a nominação/programação assumirá papel de destaque, pois apenas com ela serão identificados todos os elementos inerentes à execução de um contrato de transporte e a execução do serviço pela transportadora. É sobre esse serviço de transporte, agora qualificado pela nominação/programação, que incidirá o ICMS (ou o ISS, se de natureza municipal).
Vale notar também que o fato de o transporte ser executado por meio da celebração de contratos com carregadores distintos não descaracteriza a ocorrência de um serviço tributado pelo ICMS, vez que (i) o deslocamento do gás entre os pontos de origem e destino (transporte) continua a ser a essência do serviço contratado e realizado; (ii) um contrato de entrada ou de saída somente dá ensejo à execução de um serviço de transporte na medida em que seja identificado outro contrato que viabilize a nominação e a definição do par “origem-destino”; e (iii) as concessões e autorizações concedidas a transportadoras são destinadas, especialmente, à realização da atividade de transporte de gás natural.
Ainda, o fato de o par “origem-destino”, porventura definido por dois agentes diferentes, envolver pontos de recebimento e de entrega situados no mesmo município ou em municípios próximos também não afasta o reconhecimento de um serviço de transporte. A quantidade da distância percorrida pelo gás natural não afeta a natureza do contrato de transporte. Havendo alguma distância, mínima que seja, entre as correspondentes válvulas/falanges dos pontos de recebimento e de entrega previstos na nominação, a execução de um serviço de transporte deverá ser reconhecida. Ressalva-se, aqui, a possibilidade de alteração do tributo devido, vez que, nos casos em que o par de nominação vier a ser definido dentro da extensão de um mesmo município, a incidência do ISS poderá ser invocada (Lei Complementar 116/2003, art. 1º, item 16 da Lista Anexa).
Registre-se, adicionalmente, que, como reiteradamente afirmado pela doutrina e na jurisprudência, o fato gerador do ICMS em hipóteses de transporte apenas ocorrerá quando da efetiva prestação do serviço. Ou seja, não ocorrerá o fato gerador do ICMS em hipóteses de transporte em decorrência da mera existência de um vínculo contratual que contemple a reserva de capacidade do duto e a possibilidade de futuras realizações de transporte.
Igualmente, a nominação de transporte de gás não poderá servir de base para a imediata exigência do ICMS, eis que apenas mediante o efetivo deslocamento do gás, em transporte, permitirá a incidência desse tributo e a definição de sua base de cálculo — até porque diversas situações de desequilíbrio podem contribuir para um descompasso entre o volume de gás nominado e efetivamente transportado.
Em síntese, o novo Modelo de Entrada e Saída vislumbrado pelo Governo Federal certamente demandará harmonização das regras de tributação dos serviços de transporte com o novo marco regulatório. Porém, em um primeiro exame, desde já se pode afirmar que, mesmo diante de um novo regime contratual, os transportadores permanecerão desempenhando atividades sujeitas a incidência do ICMS (ou do ISS).