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CF/88 – A constituição balzaquiana:

a negação constitucional do Banquete dos Deuses

20/09/2019 às 15:50
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A CF/88 nasceu programática, com um programa civilizatório a cumprir, mas falece pragmática, ao sabor do “mercado” e do capital financeiro: a agiotagem oficial.

No dia 05 de outubro de 1988 o país conheceu uma porta nunca antes divisada. Uma porta de aço, uma “jaula de ferro”, de racionalidade incontornável, diria o sociólogo Max Weber. Chamada de Constituição-Cidadã, por Ulysses Guimarães, somente ao completar 30 anos de existência – e ao entrar na fase madura e jovial, de que tratou Balzac – entendemos esse significado. No ditado popular: “só valorizamos o que perdemos”. Como veremos, a CF/88 é um blindex fosco, giratório. Uma biruta ao léu.

Em 30 anos perdemos muitos direitos, de modo direto e indireto, a partir da “nova” hermenêutica estacionada nos juízes de primeira instância e nos tribunais superiores. Já no correr da década de 1990, Paulo Bonavides, possivelmente o maior constitucionalista que tivemos, alertava para o “golpe constitucional” interpelado pelo governo do neoliberalismo: negando-se ao cumprimento da Constituição Programática.

Após-2016, aqueles direitos fundamentais sociais (enjaulados na boa-fé) foram subtraídos e demos outro passo rumo à “nova” hermenêutica constitucional: agora de aporte neocolonialista e plutocrata. Quer dizer que as hostes do poder julgam que o melhor para o povo é, (in)justamente, o direito mais antipopular. Isto ainda quer dizer que a “nova” hermenêutica (in)constitucional é puramente ideológica, ou seja, falsa. Pois, ao manipular a Constituição, a viola em seus preceitos básicos.

A CF/88 nasceu programática, com um programa civilizatório a cumprir, mas falece pragmática, ao sabor do “mercado” e do capital financeiro: a agiotagem oficial. A Constituição Federal de 1988, no que restou, é um “gogo”, um semitom, nem lá nem cá, entre o marco jurídico em que estava e a negação de onde deveria ter-nos aportado. A CF/88 restou vítima do antidireito, na lição do jurista Roberto Lyra Filho.

Neste falsete, de uma “reserva do possível-impossível” (cumpra-se quando der), a Constituição vem desafinar, onde deveria desafiar. Se a crítica radical dizia que a Constituição era mero adjetivo, hoje, não é certamente um bom substantivo: desprovida de apelidos, a CF/88 não tem mais substância. De vasto aporte inicial, hoje é inercial.

Com aquela envergadura ideal de direitos da cidadania – além dos mecanismos constitucionais de descentralização e de desconcentração do poder –, a Constituição, pode-se dizer, alongou, tornou prática (ao menos em parte) a ideia de “Sociedade Aberta”: modelo societal em que o cidadão comum é um intérprete legitimado da Constituição. E não só o juiz de direito ou o constituinte revisor. Na CF/88, o homem médio em sua vida comum teve a Lei Maior na defesa de seus direitos; como requereu Peter Häberle, em 1975, na Alemanha do constitucionalismo democrático.

De certo modo, e este é o dado mais curioso da história e da epistemologia jurídica revisitada pelo método “realista” (que advém de Vico e de Maquiavel), esta compreensão preexistia na Itália dos anos 1930. Assim se referiu o dirigente do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci (Cadernos do Cárcere, Notas sobre Maquiavel): “O conceito de ‘legislador’ não pode deixar de identificar-se com o conceito de ‘político’. Como todos são ‘políticos’, todos são também ‘legisladores’.”.

Entre Gramsci e Häberle, uma judia-alemã (Hannah Arendt) alertou, contra o Nazismo, que o homem sem “fazer-política” é um ser abjeto, pouco mais do que um objeto do poder. Como decoração, não é capaz de iluminar a si-mesmo. Como apêndice é despersonalizado, porque sem ser político não será sociável. Os gregos denominavam de “aneu logou”. Escravizados pela ausência de lógica social os homens eram expulsos do Banquete dos Deuses (da Política), como nos contou o filósofo Francis Bacon. Certamente, Hannah Arendt antevia os outsiders da política, oportunistas que se dizem “apolíticos” e praticam exatamente a pior política de exclusão dos outros. Aliás, Mussolini e Hitler são os melhores exemplos de fascistas “apolíticos”.

Portanto, o sentido maior que estabelecemos em 1988 assegurava que o povo é o legítimo intérprete do que é melhor para si. Afinal, quem interpreta, também escolhe e decide. E é o que requerermos que se restabeleça enquanto Carta Política: libertária, emancipadora, civilizadora. Dotada de nomologia adequada, a Carta Política traz a lógica dos meios, das normas, que enlevam os fins sociais do direito e da justiça.

Mas, quem se lembra disso hoje em dia, nas ruas, no trabalho, nas redes sociais, nas aulas de direito? É preciso ver se os próprios manuais ainda falam disso...

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. CF/88 – A constituição balzaquiana:: a negação constitucional do Banquete dos Deuses. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5924, 20 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64522. Acesso em: 23 abr. 2024.

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