O ordenamento jurídico brasileiro busca previsões de condutas humanas a fim de preveni-las para a manutenção da ordem social e bem-estar geral. O arcabouço da legislação penal possui especial preocupação no que se refere aos crimes contra a pessoa humana. Dentre tais previsões, há o homicídio. O homicídio consiste na ação de matar alguém. Entretanto, tal enunciado possui caráter complexo e atribui a cada caso concreto suas devidas especificações como, por exemplo, o homicídio qualificado que abarca a característica hedionda e recebe tal tipificação em casos de feminicídio.
Feminicídio é o homicídio doloso praticado contra a mulher por “razões da condição de sexo feminino”, ou seja, desprezando, menosprezando, desconsiderando a dignidade da vítima enquanto mulher, como se as pessoas do sexo feminino tivessem menos direitos do que as do sexo masculino. A partir desta perspectiva, pode-se diferenciar o conceito de femicídio, o qual consiste no ato cometer homicídio meramente contra uma mulher.
Atendendo a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, o Brasil editou lei, criando a qualificadora de feminicídio. Antes da Lei n.° 13.104/2015, não havia nenhuma punição especial pelo fato de o homicídio ser praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Em outras palavras, o feminicídio era punido, de forma genérica, como sendo homicídio (art. 121 do CP).
A depender do caso concreto, o feminicídio (mesmo sem ter ainda este nome) poderia ser enquadrado como sendo homicídio qualificado por motivo torpe (inciso I, do § 2º, do art. 121) ou fútil (inciso II) ou, ainda, em virtude de dificuldade da vítima de se defender (inciso IV). No entanto, o certo é que não existia a previsão de uma pena maior para o fato de o crime ser cometido contra a mulher por razões de gênero. A Lei n.° 13.104/2015 veio alterar esse panorama e previu, expressamente, que o feminicídio, deve agora ser punido como homicídio qualificado.
Vale ressaltar que a Lei Maria da Penha não traz um rol de crimes em seu texto. Esse não foi seu objetivo. A Lei n.° 11.340/2006 trouxe regras processuais instituídas para proteger a mulher vítima de violência doméstica, mas sem tipificar novas condutas, salvo uma pequena alteração feita no art. 129 do CP. Desse modo, o chamado feminicídio não era previsto na Lei n.° 11.340/2006, por mais que a Sra. Maria da Penha Maia Fernandes, que deu nome à Lei, tenha sido vítima de feminicídio duas vezes (tentado).
A fim de se evitar e buscar justiça, tais atos contra a mulher devem ser alvo da tutela estatal e o legislador deve ter a sabedoria para melhor tipificar a violência contra a mulher, visto que é um delito com alta incidência na sociedade brasileira (cerca de 5.664 mortes a cada ano de 2001 a 2011 ) e caracteriza-se como crime hediondo por haver a noção de extermínio, a qual é bem observada por Cézar Roberto Bitencourt, como se segue:“Extermínio é a matança generalizada, é a chacina que elimina a vítima pelo simples fato de pertencer a determinado grupo ou determinada classe social ou racial, como, por exemplo, mendigos, prostitutas, homossexuais, presidiários etc. A impessoalidade da ação genocida é uma de suas características fundamentais, sendo irrelevante a unidade ou pluralidade de vítimas. Caracteriza-se a ação de extermínio mesmo que seja morta uma única pessoa, desde que se apresente a impessoalidade da ação, ou seja, pela razão exclusiva de pertencer ou ser membro de determinado grupo social, ético, econômico, étnico etc.”.
Dentre as circunstâncias qualificadoras do crime de homicídio, há as de caráter subjetivo ou pessoal (incisos I, II e V), vinculadas à motivação e à pessoa do agente e não ao fato por ele praticado, bem como as de caráter objetivo ou real (incisos III, IV e VI), associadas à infração penal em si, tais como o meio, o modo de execução do crime e o tipo de violência empregado.
A nova qualificadora do feminicídio não constitui o móvel imediato da conduta, isto é, o agente pode ter agido por causa de uma discussão banal com a vítima (motivo fútil) ou por causa da sua possessividade e ciúme excessivo em relação à vítima ou em razão de seu inconformismo com o término do relacionamento afetivo (motivo torpe), para ficar só nesses dois exemplos corriqueiros na lida do Tribunal do Júri, dentre muitos outros. Durante o interrogatório de um réu que tenha praticado um feminicídio, jamais lhe será perguntado se ele cometeu o crime “por razões de gênero” (ou “por razões da condição de sexo feminino”), mas qual o acontecimento, atitude ou episódio do contexto fático-probatório do caso que fez eclodir ou o levou ao ato de violência macabro, ocorrência essa que geralmente constitui algum motivo fútil ou torpe na maioria das vezes, conforme exemplificado.
Por outro lado, assim como a elementar objetiva do emprego de violência diferencia um crime de roubo de um crime de furto, a qualificadora do feminicídio descreve hipótese fática objetiva da presença (existência ou emprego) de violência praticada contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (isto é, por razões de gênero) em duas hipóteses específicas elencadas no § 2º-A do art. 121 do CP: violência doméstica e familiar contra a mulher (inciso I) e menosprezo ou discriminação à condição de mulher (inciso II). Ou seja, caberá aos juízes naturais da causa (os jurados, no caso do Tribunal do Júri) apenas verificar a situação objetiva da presença ou não dessas duas hipóteses dos incisos I e II do § 2º-A do art. 121 do CP, como já ocorre hoje com a verificação, pelo juiz togado, por ocasião da fixação da pena, da incidência da circunstância agravante do art. 61, II, f, parte final, do CP, a qual prevê exasperação da pena quando o agente tiver cometido o crime “com violência contra a mulher na forma da lei específica”, ou melhor, na forma da Lei 11.340/06, que nos seus artigos 5º e 7º enumera as hipóteses e formas de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Portanto, se, de um lado, a verificação da presença ou ausência das qualificadoras subjetivas do motivo fútil ou torpe (ou ainda da qualificadora do inciso V) demandará dos jurados avaliação valorativa acerca dos motivos inerentes ao contexto fático-probatório que levaram o autor a agir como agiu, por outro lado, a nova qualificadora do feminicídio tem natureza objetiva, pois descreve um tipo de violência específico contra a mulher (em razão da condição de sexo feminino) e demandará dos jurados mera avaliação objetiva da presença de uma das hipóteses legais de violência doméstica e familiar (art. 121, § 2º-A, I, do CP, c/c art. 5º, I, II e III, da Lei 11.340/06) ou ainda a presença de menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121, § 2º-A, II, do CP).
Segundo Amom Albernaz Pires, a qualificadora do Feminicídio tem natureza objetiva. Embora a disposição remeta à noção de motivação (“em razão da condição de sexo feminino”), as definições incorporadas pela Lei Maria da Penha sinalizam contexto de violência de gênero, ou seja, quadro fático-objetivo não atrelado, aprioristicamente, aos motivos determinantes da execução do ilícito.Para o autor, a nova qualificadora do Feminicídio não constitui o móvel imediato da conduta, isto é, o agente pode ter agido por causa de uma discussão banal com a vítima (motivo fútil) ou por força de sentimento de posse em relação à ofendida, reforçado pelo seu inconformismo com o término do relacionamento afetivo (motivo torpe). No mesmo sentido, ao comentar a redação do art. 121, § 1º, inciso I do Projeto de Lei nº 236/12 (Novo Código Penal), que traz como qualificadora do homicídio o contexto de violência doméstica ou familiar. Neste mesmo sentido, Busato se posiciona no sentido de se tratar de dado absolutamente objetivo, equivocadamente inserido em disposição que cuida de circunstâncias de natureza subjetiva (BUSATO, 2013).
Em contrapartida, os autores Alice Bianchini e Luiz Flávio Gomes, defendem que a qualificadora do feminicídio é notadamente subjetiva. Embora seja possível a coincidência das circunstâncias privilegiadoras dispostas no § 1º do art. 121 (todas de ordem subjetiva), com qualificadoras de natureza objetiva (§ 2º, III e IV), quando é reconhecido o privilégio pelo conselho de sentença no tribunal do júri, fica afastado imediatamente a tese do feminicídio. Segundo os mesmos autores não se pode pensar em um feminicídio, que é algo reprovável à dignidade da mulher, que tenha sido praticado por motivo de relevante valor moral ou social ou logo após injusta provocação da vítima. Contudo, seguindo a tese dos autores, a natureza da qualificadora do feminicídio trata-se de ordem subjetiva, pois a violência de gênero não é uma forma de execução do crime e sim sua razão ou seu motivo. A qualificadora seria de ordem objetiva se dissesse respeito ao modo ou meio de execução do crime.
Para Guilherme de Souza Nucci, houve uma evolução da tutela especial que abarcava a Lei Maria da Penha com o intuito de tutelar de maneira mais eficiente a condição do sexo feminino. Para ele, a qualificadora do feminicídio é objetiva, pois o ato encontra-se relacionado ao gênero da vítima. Também sustenta que a ideia de qualificadora subjetiva (motivo torpe ou fútil) não está relacionada com a motivação do homicídio. Por ser objetiva, o autor acredita que há possibilidade de se conviver com outras circunstâncias de cunho puramente subjetivo.
Após o discorrido em tela, é possível afirmar que o processo de maturação da doutrina ainda está em cheque e são diversos os posicionamentos. Mas ambos polos postos em análise se correlacionam, podendo atuar, inclusive, de maneira mista como apontado indiretamente no parágrafo supracitado a depender da perspectiva estudada.
Referências Bibliográficas
BIANCHINI, Alice. “A Qualificadora do Feminicídio é de Natureza Objetiva ou Subjetiva?”;
BITENCOURT, Cezar Roberto. “Código Penal Comentado” (Editora Saraiva, 9ª edição);
BUSATO, Paulo Cesar. “Direito Penal” (Editora Atlas, 2013);
NUCCI, Guilherme de Souza. “Código Penal Comentado” (Editora Forense, 16ª edição);
http://www.compromissoeatitude.org.br/a-natureza-objetiva-da-qualificadora-do-feminicidio-e-sua-quesitacao-no-tribunal-do-juri-por-amom-albernaz-pires/ (acessado dia 10/10/2016).