A pendência de decisão final do Supremo Tribunal Federal acerca da questão do aborto de feto anencefálico suscita discussões referentes a um dos temas de maior efervescência na filosofia jurídica contemporânea, mas que ainda não foi devidamente tratado no Brasil. O legislador deveria ter incluído a hipótese do feto anencefálico entre os casos em que o aborto não é considerado crime? E quais são os limites da atuação do Judiciário em face da lacuna legislativa a respeito?
Noves fora os sérios questionamentos religiosos que despertam, essas perguntas podem ser respondidas a partir do estudo da chamada "derrotabilidade" das normas jurídicas. Neologismo vindo da expressão inglesa defeasibility, a "derrotabilidade" tem a ver com os raciocínios lógicos que, diante da ocorrência de situações não consideradas, superam determinadas conclusões. Quando se formula, por exemplo, enunciado condicional do tipo: "se Maria sair de casa às 19h, deverá chegar ao aeroporto às 19h30", a verificação do conseqüente esperado (chegar ao aeroporto às 19h30) não depende só da exteriorização do antecedente (se Maria sair de casa às 19h). Trabalha-se, na verdade, com a ocorrência de inúmeros pressupostos (se não houver acidentes, se o tráfego estiver normal, se o carro não estragar) que se devem somar ao antecedente, para que o conseqüente realmente suceda como se anteviu. Logo, a se exteriorizar qualquer situação não considerada (se houver acidente, se o tráfego estiver ruim ou se o carro apresentar defeito), a conclusão será "derrotada", isto é, não mais se sustentará.
Transportada essa noção ao Direito, toda norma jurídica (regra ou princípio) se baseia em raciocínios cujas justificativas podem também ser "derrotadas" diante de circunstâncias que não foram consideradas na formulação normativa. As regras jurídicas, em especial, são concebidas de modo condicionado, por meio de proposições que, direta ou indiretamente, associam conseqüências a supostos fáticos predeterminados. Assim, podem ser traduzidas pelo seguinte esquema condicional: "verificada a ocorrência do evento ‘X’, deve ser aplicada a conseqüência jurídica ‘Y’." Todavia, o órgão responsável pela formulação normativa é incapaz de prever todas as possíveis combinações de circunstâncias que podem aparecer no âmbito da aplicação concreta das regras jurídicas. Daí, as regras estão sempre abertas a exceções que "derrotam" a conseqüência jurídica inicialmente concebida, ainda que o caso se inclua perfeitamente na descrição hipotética da proposição jurídica. Certo, essas exceções podem vir expressas na própria formulação normativa (exceções explícitas). Assim, ao tipificar como crime o aborto provocado, o legislador penal excepcionou, expressamente, os casos em que não há outro meio para salvar a vida da gestante (aborto necessário), bem como a hipótese de a gravidez resultar de estupro. Contudo, dada a impossibilidade de explicitar todas as condições não previstas mas capazes de justificar a "derrotabilidade" da proposição jurídica, é preciso reconhecer exceções implícitas para casos anormais, sem prejuízo da aplicabilidade da regra para as situações normais. Por isso, a atitude de uma mãe que, desesperada, atravessa os jardins de parque público para socorrer o filho em perigo é facilmente compreendida como exceção implícita que justifica a "derrota" da proibição geral de pisar na grama do parque. E dessa incapacidade de antecipação normativa derivam exceções implícitas em número diretamente proporcional ao das múltiplas variáveis presentes nos diversos tipos de conduta que se pretende regular. Porém, uma "regra que termina com a expressão ‘a menos que...’ é ainda uma regra." (HART).
De outro lado, para saber quando incide determinada exceção implícita apta a derrotar a previsão normativa inicial, é primeiramente preciso examinar se a situação foi ou não considerada. Tratando-se de situações previsíveis à época da formulação normativa, esse exame é mais complexo, pois depende da análise histórica das propostas e das intenções que determinaram a própria criação da norma. No caso em questão, porém, cuida-se indiscutivelmente de informação "nova". Isso porque, ao tempo da formulação da norma (início da década de 40), o legislador não tinha como antever que exames médicos, num futuro não muito distante, poderiam diagnosticar a anencefalia do feto ainda no útero da mãe.
Mas essa constatação não soluciona o problema. É preciso, ademais, interpretar o sistema jurídico para saber se a nova circunstância é uma situação "anormal" que justifique enquadrá-la num regime de exceção, ou seja, se o legislador teria ou não excepcionado a regra incriminadora, caso tivesse considerado essa nova informação. Concluindo-se que sim, seria inteiramente legítima a decisão judicial que desqualificasse o caráter criminoso da interrupção da gravidez do feto anencefálico, pois o órgão julgador não estaria a criar direito novo, senão a "reconhecer" que essa situação configuraria exceção implicitamente prevista no próprio sistema jurídico. Se se entender que não, agiria de maneira ilegítima a instância judicial que reputasse lícita a provocação do aborto nessa hipótese, pois estaria a "estabelecer" uma exceção à regra de maneira incompatível com o sistema, por invadir área da competência do Legislativo.
Enfim, se bem-sucedida a tentativa de demonstrar a existência de fundamentos teóricos a embasar essas duas teses antagônicas, este artigo já cumpriu inteiramente seu objetivo. Na verdade, "casos difíceis" como o ora examinado acabam resolvidos pela força de argumentos morais subjacentes nos princípios jurídicos utilizados tanto para negar (princípio da proteção à vida) quanto para afirmar (princípio da dignidade da pessoa humana a amparar a gestante) que a circunstância desconsiderada constitui exceção implícita do sistema jurídico. Pode até parecer estranho a quem não tenha sólida formação jurídica, mas o pior é que não há nada de errado nisso! Não se deve negar a intercomunicação que existe entre o Direito e a Moral.