7. A JURISPRUDÊNCIA
A jurisprudência pátria, que nada mais é do que a prática reiterada dos tribunais brasileiros, nos apresenta diversos precedentes acerca do trabalho escravo contemporâneo, a fim de que as controvérsias sobre o tema sejam dirimidas por aqueles que foram investidos na função de interpretar as Leis e a Constituição.
Nesse viés, a primeira questão que surge diz respeito à competência para julgar os crimes previstos no artigo 149 do CP, qual seja: a redução à condição análoga à de escravo. Note-se que em que pese toda controvérsia que se instaurou a partir da publicação da Emenda Constitucional 45/04, que ampliou sobremaneira a competência da Justiça do Trabalho, o STF decidiu que “a prática do crime prevista no art. 149. do Código Penal se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça Federal (art. 109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo” (BRASIL, 2008).
É evidente, todavia, que as violações decorrentes da prática do artigo 149 do CP também representam violações de natureza trabalhista, o que justifica outrossim a participação da Justiça do Trabalho no que lhe compete (DUARTE, 2015).
Conforme dispõe o artigo 114 da CF/88, em especial, os incisos I e VI, que estabelecem respectivamente que é competência da Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, bem como as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho (BRASIL, 1988). Além disso, a completa dissidia dos exploradores do trabalho escravo não pode ter o condão de impedir o trabalhador de ter acesso aos direitos trabalhista, por esta razão, a despeito das atividades realizadas, deve-se reconhecer os direitos do obreiro que investiu esforços na prestação do serviço (TETI, 2011).
Desta forma, resta pacificado na jurisprudência que aquele que pratica o crime de trabalho escravo pode ser penalizado nas quatro esferas (penal, cível, administrativa e trabalhista). Na Jurisdição trabalhista poderá ser cobrado o pagamento das verbas trabalhistas devidas ao trabalhador resgatado, acrescida dos danos morais e patrimoniais decorrentes (MPF, 2014). Por tudo isso, é preciso evidenciar, além da função repressiva, a função preventiva da Justiça do Trabalho em relação a prática do trabalho escravo. O valor das condenações deve representar um indicativo para pretensos exploradores do trabalho escravo de que a prática não é vantajosa, pois além da possibilidade de prisão e perdimento de bens, o explorador ainda poderá ter que pagar uma alta quantia a título de indenização, inclusive por dano moral coletivo.
A prevenção é importante para inibir o trabalho escravo contemporâneo, o Ministério Público Federal dispõe que para evitar que o trabalhador se torne uma vítima do trabalho escravo ele “deve se informar, ao máximo, sobre o emprego: o local, o nome da propriedade, o salário e, principalmente, ter garantias claras de que seus direitos trabalhistas serão respeitados” (MPF, 2014, p. 22). O MPF ainda recomenda que se a proposta for para trabalhar em outra cidade, o trabalhador deve avisar aos seus familiares e deixar cópia dos documentos e do contrato de trabalho assinado com eles. Ressalta ainda, que o trabalhador não deve sair da cidade contraído dividas com o empregador (MPF, 2014).
8. POLÍTICAS PÚBLICAS APLICÁVEIS AO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO.
Outra questão extremamente importante diz respeito às políticas públicas aplicáveis ao trabalho escravo contemporâneo, haja vista que o Brasil tem adotado diversas medidas de combate ao trabalho escravo, em que pese a população não as conheça em profundidade. A primeira delas foi lançada em 2003, trata-se do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo (I PNETE), de lavra da Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).
Este Plano trazia uma série de medidas que deveriam ser observadas por toda sociedade, bem como pelos três Poderes da República e pelo Ministério Público. Desta forma criou-se o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo em conformidade com o Plano Nacional de Direitos Humanos o qual tem a função precípua de proceder a fiscalização permanente trabalho escravo (MPF, 2014, p. 31). Em 2008 foi dado início ao II Plano Nacional de Enfrentamento ao trabalho escravo (II PNETE) que se tornou, segundo o MPF “um dos principais documentos para o combate ao trabalho escravo no País”, pois estabeleceu ações preventivas e repressiva para combater o trabalho escravo, inclusive capacitando os trabalhadores resgatados, a fim de que possam ser recolocados no mercado de trabalho. (MPF, 2014, p. 31).
Outra ação governamental que podemos relacionar ao tratar ao relacionar o tema aqui tratado com as políticas públicas é o Grupo Móvel de Fiscalização do Trabalho Escravo. Inicialmente se criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), e posteriormente, em 2003, a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), foi nessa oportunidade que o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) passou a atuar no diagnóstico do problema, padronizando procedimentos e supervisionando as atividades de combate ao trabalho escravo” (MPF, 2014).
Por meio da Portaria Interministerial Nº 2/2011 foi formalizado o Pacto Nacional de Combate ao Trabalho Escravo e Cadastro de Empregadores que em verdade compreende um ”acordo no qual empresas, entidades representativas e organizações da sociedade civil se comprometem a afastar qualquer possibilidade de uso de mão de obra escrava na cadeia produtiva de seus produtos e serviços” (MPF, 2014, p. 32).
Por fim, apresentamos a “Lista Suja” criada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), com o objetivo de reprimir a pratica do trabalho escravo através da divulgação da lista de empresas flagradas não praticando redução de trabalhadores a condições de trabalho análogas à escravidão. A repercussão interna e externa alcançando instituições governamentais e não governamentais (signatárias do Pacto Nacional de Combate ao Trabalho Escravo e Cadastro de Empregadores), a fim de que não mais se formalizem contratações de produtos e serviços com as empresas listadas na famigerada “lista suja” (ANDRADE, 2012).
9. ORGANIZAÇÕES PROTETORAS
As organizações protetoras do trabalho escravo são instituições públicas e privadas que se empenham na execução das medidas previstas no Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Entre elas pode-se destacar o Ministério Público da União; o Ministério do Trabalho e Emprego, inclusive através dos auditores fiscais do trabalho e a Polícia Federal; além de instituições nacionais e internacionais vinculados à sociedade civil organizada. Merece destaque também a Comissão Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo (CONATRAE), integrante da Secretaria de Direitos Humanos que exerce um importante papel de coordenação das atividades ligadas ao Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (MPF, 2014, p. 24).
Com a CF/88 o Ministério Público passou a ocupar lugar de destaque na garantia dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, traduzindo-se num órgão indispensável para que a sociedade e em especial os trabalhadores possam enfrentar questões tão graves quanto o trabalho escravo contemporâneo. O Ministério Público da União, considerada a sua divisão orgânica, exerce ações importantíssimas no combate ao trabalho escravo, pois habita entre suas atribuições a participação nos processos judiciais como custos legis, amplo papel investigativo, tendo competência para formalização de Termos de Compromisso, presidir Audiências Públicas e expedir recomendações, bem como para o ajuizamento de ações na Justiça do Trabalho.
Do ponto de vista prático o Ministério Público investiga, a partir de denúncias ou de oficio e, quando confirmada a prática dos atos ilícitos, ele formula Termo de Ajuste de Conduta e apenas em caso de descumprimento ingressa com a ação civil pública na justiça competente (SOUZA, 2013). O Ministério do Trabalho e Emprego, por sua vez, possui, entre outros objetivos, o de erradicar o trabalho escravo e degradante, para tanto, tem se valido de ações fiscais realizadas em locais predefinidos como propensos à prática do trabalho escravo, com vista à regularização da situação laboral do trabalhador e sua libertação da condição análoga a de escravo (TREVIZAN; SORANO, 2017).
Cabe dizer ainda, que foi o Ministério do Trabalho e Emprego que escreveu o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, bem como coordena o Grupo Especial de Fiscalização Móvel e além disso é responsável pela divulgação da “Lista Suja”.
Em relação aos trabalhos desenvolvidos pelos Auditores Fiscais do Trabalho (AFT), convém destacar que neste ano de 2017 verificou-se que as fiscalizações tiveram uma acentuada queda, o que acarretou a diminuição alarmante do número de trabalhadores resgatados, em torno de 34% menos que no ano anterior (VELASCO; REIS, 2017). Esta acentuada queda nos investimentos demostram um descompromisso do Estado com esta questão tão atual relevante, cabendo à sociedade mobilizar-se em busca de melhores investimentos na área a fim de que o trabalhador tenha pelo menos a proteção oferecida por estas instituições que também foram criadas para este fim.
Não podemos deixar de mencionar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, a fim de aperfeiçoar as estratégicas de enfrentamento ao trabalho escravo e tráfico de pessoas, criou o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (FONTET) através da Resolução n. 212/2015 (CNJ, 2016).
Também consideramos que a Mídia escrita e falada tem um papel fundamental na disseminação das ideias em nosso país, devido à grande liberdade de impressa consagrada em nosso ordenamento, de fato a impressa é tão forte que pode contribuir para a eleição e impeachment de um presidente.
Quando o assunto é trabalho escravo também acreditamos que a mídia, especialmente a televisiva pode contribuir maciçamente para a erradicação do trabalho escravo seja através da amplificação das informações constante da “lista suja”, seja pela divulgação das boas práticas trabalhistas, não apenas do ponto de vista publicitário, mas principalmente no ambiente jornalístico. Ocorre que muitas vezes a influência do poder econômico, fala mais alto. Seja pela pressão externa das grandes corporações que buscam cada vez mais a flexibilização das condições de trabalho, seja pela própria direção interna que persegue a audiência dos telespectadores a todo custo.
Numa sociedade marcada por tanta desigualdade social, criminalidade e tantos outros flagelos, vigora um pouco da velha cultura do pão e do circo, de modo que a Mídia sabe que a maioria da população prefere assistir novela que jornal. Em que pese a Mídia exiba bastante em sua programação as notícias de furtos, roubos, latrocínios, sequestros e assassinatos, dando a entender que os maiores algozes da população pobre e excluída são os pobres e excluídos que embarcaram na criminalidade, deixando de fora os ricos e poderosos que lucram com tudo, inclusive com o mercado da violência e do trabalho escravo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo exposto, verifica-se que diversas razões contribuem para a ocorrência do trabalho escravo e o Direito como ciência social é capaz de tratar algumas delas. O Direito do Trabalho, considerada a sua acepção humanística, certamente pode contribuir positivamente para o fim do trabalho escravo. Para tanto, devemos observar algumas questões.
A primeira é a quebra do contrato social por parte daquele que exploram os trabalhadores, expondo-os a condições de trabalho análogas à de um escravo. Essa prática pressupõe um completo descompromisso não apenas com as normas vigentes –compreendidos os princípios e regras que norteiam o ordenamento jurídico– mas também e, principalmente, o senso moral de vida comunitária e de solidariedade inerentes à condição humana, os quais também devem, em certa medida, nortear as relações de trabalho.
A segunda questão é compreender que no mais das vezes o trabalhador submetido à condição de escravo moderno chegou a esta situação a partir de diversos fatores sociais, culturais, econômicos, raciais e até legais que o fragilizaram de tal forma, que o trabalho em condições degradantes se tornou uma opção, muitas vezes a única. A máxima popular diz que “o trabalho dignifica o homem”, todavia ao considerar o trabalho escravo, nos convém discordar desta sabedoria, pois nem todo trabalho dignifica, em que pese seja fiado naquele pensamento que muitas pessoas se sujeitas a condições insalubres e periclitantes de trabalho.
No início do presente trabalho foi feita a seguinte pergunta: a quem interessa o trabalho escravo contemporâneo? A resposta, contudo, não contém um sujeito determinado, pois o trabalho escravo, em verdade, interessa ao sistema composto por aqueles que, desvirtuados de quaisquer valores morais, buscam o lucro a toda prova. Infelizmente, conclui-se que o “cidadão comum” também se beneficia deste sistema, seja quando adquiri bens e serviços produzidos com mão de obra escrava ou quando simplesmente não se importa com o tema violado em última análise o princípio da constitucional da solidariedade que constitui um dos objetivos fundamentais da República.
Também é interessante observar a despeito do catatau de leis que protegem o trabalhador das mais diversas formas de violação e, apesar da existência de diversos órgãos de proteção dos trabalhadores, entre os quais relacionamos o Ministério Público, os sindicatos e o Ministério do Trabalho, o trabalho escravo permanece vivo nos informando que sua extinção não se dará por decisões institucionais, mas sim através de um sólido movimento de ruptura com este sistema perversos que consagra o lucro como premissa maior.
Decisões judiciais mais duras são bem vindas para mitigar os efeitos do trabalho escravo contemporâneo, entretanto o problema não pode ser visto como um mal com o qual temos que conviver. O Judiciário, via de regra, promove a pacificação pontual dos conflitos, intervindo somente quando é demandado, dando soluções que irradiam seus efeitos apenas entre as partes diretamente envolvidas.
O Poder Executivo, por sua vez, através das políticas públicas, pode ser mais efetivo na adoção de medidas preventivas transversais que inibam a prática do trabalho escravo. Na área da educação, trabalho e emprego, fiscal, segurança, entre outras, o Estado pode promover a conscientização da população sobre a aquisição de produtos confeccionados com mão-de-obra escrava. A geração de emprego, a contribuição para a formação de mão-de-obra mais qualificada e o fortalecimento das organizações protetoras do trabalho, como por exemplo os auditores fiscais do trabalho, também são medidas hábeis para erradicar o trabalho escravo.
Salientamos, a partir do quanto exposto no presente artigo, que o trabalho escravo contemporâneo somente deixará de existir se houver um esforço conjunto da sociedade e do Estado em enfraquecer o persistente conflito entre os direitos humanos do trabalho e o capital. Para tanto, é necessário pensar coletivamente, abdicando-se de consumir o fruto do trabalho escravo, pois mais vantajoso (lucrativo) que pareça. Assim o sistema escravagista será falido. Contudo, para isso é necessário se informar sobre a origem dos produtos antes de adquiri-los.
O Direito humanizado e pensado de forma sistêmica consegui integrar, por exemplo, o Direito do trabalho, do Consumidor e o Direito Penal para apontar uma medida efetiva que ataque o trabalho escravo por todos os lados, garantindo condições de trabalho para o trabalhador, proibindo o consumo dos produtos que tenha mão-de-obra escrava em sua cadeia produtiva e punindo os exploradores.