4. HISTÓRICO
Quanto ao histórico do trabalho escravo no mundo, pode-se dizer que em verdade a escravidão foi uma prática recorrente durante milênios, apenas no século XIX é que se passou a criticar a escravidão de modo mais acintoso, o que ocasionou a abolição da escravatura em diversos países (TURCI, 2010).
Não podemos entender, todavia, que a escravidão é algo vinculado ao passado e que só pode ser vista em livros e filmes. O trabalho escravo é fruto da desigualdade a qual, permanece latente nos dias atuais nas formas mais variadas como a prostituição infantil, tráfico de órgãos e de pessoas, exploração de imigrantes ilegais e a escravidão por dívida dentre outras (REVISTA DE HISTÓRIA, 2017).
Países como Haiti, Estados Unidos e México, por exemplo, abrigam milhões de escravos, inclusive crianças traficadas por valores ínfimos para laborarem nos mais diversos serviços de forma forçada e degradante, fazendo do continente americano um verdadeiro reduto da escravidão, onde as pessoas não têm seus direitos humanos respeitados e muito menos os seus direitos trabalhistas (BRASIL, 2011). Acredita-se, entretanto, que mais da metade dos escravos contemporâneo espalhados pelo mundo, cerca de 58% estão no continente Asiático, em países como Bangladesh, China, Índia, Paquistão e Uzbequistão (METAL REVISTA, 2016).
O relatório da Organização Não Governamental Walk Free Foundation afirma que o mundo possui 45,8 milhões de pessoas realizando trabalhos em condições análogas à escravidão. Afirma ainda, 161 mil estão no Brasil. São muitos os casos emblemáticos de trabalho escravo contemporâneo espalhados pelo mundo (METAL REVISTA, 2016).
Empresas internacionais como a Nestlé, Carrefour, Miki Mistrati, Nike, Apple, Foxconn Tecnologia, Pegatron, M. Officer, Coca-Cola, Victoria’s Secret, Forever 21, Brooksfield Donna foram flagradas em diversas parte do mundo explorando o trabalho escravo ou pelo menos adquirindo matéria prima oriunda de trabalho escravo (METAL REVISTA, 2016).
Especificamente no Brasil, pode-se dizer que o trabalho escravo tem intrínseca ligação com um histórico de quatro séculos de exploração das classes menos favorecidas que foi e infelizmente ainda é escravizada por quem detém o poder econômico e político (GOMES, 2016). Para estes dominadores nada importa a não ser o lucro que deve sempre permanecer intocável e crescente, pois, para eles as perdas devem sempre ser suportadas pelos trabalhadores (ALVES, 2012).
A título de exemplo, vale citar dois casos emblemáticos de trabalho escravo contemporâneo que ocorreram no Brasil, no estado do Mato Grosso do Sul e no Pará. No Mato Grosso do Sul dos 1.011 trabalhadores libertados, mais de 80% eram índios. Já no Pará foram resgatados 1.113 trabalhadores escravos recebendo em torno de R$ 10,00 por mês depois de realizados os descontos com alimentação e moradia, as quais possuíam condições inóspitas (THERY, 2009. p. 77).
A lógica do lucro beira a loucura. Se recordarmos, por exemplo da “Lei protetiva dos Sexagenários” promulgada 1885 notaremos que ali ficou consignado que os escravos com 60 anos de idade completos seriam libertos, porém a título de indemnização pela sua alforria, deveriam prestar serviços a seus “ex-senhores” pelo espaço de três anos (BRASIL, 1885).
Como se percebe os absurdos da escravidão colonial são similares aos da escravidão contemporânea e para proceder uma análise comparativa é salutar recorrer aos ensinamentos do professor Heitor Carvalho Silva, conforme quadro esquemático constante da obra Escravidão pós Lei Áurea: a luta pela erradicação (SILVA, 2015).
Como se depreende do quadro elaborado pelo mencionado professor, na antiga escravidão a propriedade dos escravos era permitida e eles eram adquiridos por valores consideráveis por pessoas ricas cuja riqueza poderia ser aferida pela quantidade de escravos que ela possuía. Na contemporaneidade, obviamente é proibida a compra de trabalhadores, mas ela acontece e os “empregadores” gastam pouco para isso, muitas vezes a única despesa é o transporte.
Também se pode observar que enquanto na escravidão do período colonial os donos de escravos tinham baixos lucros e a manutenção dos escravos era de alto custo, no período atual o lucro com o trabalho escravo é alto e não há nenhum investimento nas condições nem no ambiente de trabalho deste trabalhador que muitas vezes só recebe como benesse a demissão sumária.
Além disso, enquanto atualmente a mão-de-obra escrava é considerada descartável, pois pode ser reposta a qualquer momento, tendo em vista a quantidade de trabalhadores desempregados, no passado a mão-de-obra era escassa, pois dependia do tráfico negreiro e da prisão de índios. O relacionamento com o escravo de antigamente era longo, durava a vida inteira do escravo e às vezes alcançava até seus descendentes. Hoje em dia essa relação se dá por curto período, pois terminado o serviço não é mais necessário prover o seu sustento.
Um ponto de convergência entre o trabalho escravo do pré-colonial com a escravidão contemporânea refere-se à manutenção da ordem, pois em ambos os períodos os empregadores/senhores costumavam se valer de ameaças, violências psicológicas, coerção física, punições exemplares e até assassinatos.
É necessário que o Estado intervenha com rigor para alterar esse triste quadro histórico, pois sabemos que o direito que rege o Estado tem como fonte material justamente as relevantes questões sociais que ao longo do tempo influenciam a elaboração da norma jurídica e podem até suscitar o renascimento do Poder Constituinte responsável pelo estabelecimento de uma nova ordem.
Modernamente, verifica-se que o Direito tem passado por constantes transformações que podem contribuir para a mudança deste histórico de desrespeito ao trabalhador. Estas transformações incluem a constitucionalizar os ramos do direito e, mas que isso, abrigam uma tendência de humanização dos Direitos, inclusive do Direito do Trabalho, como veremos no tópico seguinte.
5. DIREITOS HUMANOS DO TRABALHO
O Direito possui uma clássica divisão metodológica que separa o Público do Privado, também devemos considerar a ideia de Direito Difuso que estaria, em certa medida, relacionado aos interesses coletivos, transindividuais e individuais homogêneos. Nessa senda, em que pese as divergências doutrinárias identificamos aqueles direitos transversais que perpassam por todos os ramos do direito, atribuindo requisitos mínimos para o exercício de qualquer direito. Assim são os Direitos Humanos.
Observe que tanto no Direito Penal, Constitucional, Administrativo e Tributário, bem como no Direito Cível e no Empresarial (bons representantes da dicotomia público-privada) existe a necessidade de respeitar certos princípios basilares do próprio sistema jurídico. É nesta seara que os Direitos Humanos encontram guarida, de modo que onde existir a pessoa humana, ali haverá a necessidade de se respeitar seus direitos fundamentais, em especial a sua dignidade. No Direito Difuso, ambiente que abriga o Direito do Consumidor, Ambiental, Previdenciário e também o Direito do Trabalho se verifica uma significativa presença dos Direitos Humanos.
Em especial, o Direito do Trabalho é um excelente exemplo para contextualizar esta relação, pois há algum tempo se discute acerca da natureza jurídica do Direito do Trabalho, a fim de determinar se ele pertence ao Direito Público ou Privado, sendo reconhecido por parte da doutrina, a qual nos filiamos, o seu caráter híbrido, mais próximo ao Direito Difuso, por também abrigar aspectos de interesse público e privado. (GUERRA, 2004).
Outra questão interessante é que a própria autonomia propedêutica e cientifica do Direito do Trabalho foi afirmada a partir de características que lhe são peculiares de modo que restou confirmado que o Direito do Trabalho não é um apêndice do Direito Civil, por exemplo.
Em verdade o Direito do Trabalho tem sua origem calcada nos Direitos Humanos, pois o seu nascimento ocorreu justamente em função das violações humanitárias sofridas por trabalhadores reféns do ímpeto capitalista de empregadores que só enxergavam o fundamento jurídico do pacta sunt servanda, em que pese os vícios de vontade nos contratos daquele período fossem notórios.
A Igualdade de oportunidades e de tratamento no emprego, o direito de sindicalização, o acesso à justiça saúde e segurança no trabalho, proteção contra assédio sexual e constrangimento moral, o acesso às informações e a proteção da intimidade, a liberdade de manifestação do pensamento, bem como a proibição de trabalho forçado são direitos do trabalhador são que exasperam o caráter individual.
Assim também, a jornada de trabalho adequada, a dignidade, o respeito à intimidade, o respeito à vida privada e à imagem, a liberdade de consciência e de crença, o direito ao sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas também são direitos inerentes a todos os trabalhadores e sua proteção configura um bem para toda a coletividade.
Não podemos nos esquecer ainda do direito à igualdade, o qual engloba a proibição de discriminação por questões de gênero (sexo), raça (cor), idade, deficiência e, por fim, o direito de greve, de repouso, aos intervalos, repouso semanal remunerado e férias.
Todos os direitos supramencionados denotam o papel humanístico do Direito do Trabalho, isso nos leva a refletir também, sobre a unicidade do direito e as interrelações que existem entre o Direito do Trabalho e outros ramos como o Direito Penal, Constitucional, Internacional e principalmente os Direitos Humanos, a fim de que se perceba que em verdade o Direito do Trabalho ora constitucionalizado está se humanizando cada vez mais (CALIL, 2017).
Na contramão da humanização mencionada, surgem temas relevantes como a terceirização, precarização e monetização do trabalho, é também o trabalho escravo contemporâneo, o qual possui muitos fatores que justificam sua ocorrência sendo a violação de direitos do trabalhador apenas um sintoma conforme leciona THERY (2009, p. 63).
A presença de trabalho escravo não é, portanto, diretamente resultante de um tipo de atividade, mesmo as que lhe sejam correlacionadas, mas sim a formas específicas e geralmente ilegais destas atividades, das quais a violência é apenas um sintoma.
Na medida em que o capital assume o protagonismo, em relação às pessoas, o fator humano passa a ser desconsiderado e o direito do trabalho torna-se apenas uma “pedra no sapato” dos maus empresários. A terceirização, por exemplo é palco para a precarização do trabalho, pois quase sempre está apoiada numa justificativa econômica escusa (TURA, 2015), seguindo a mesma linha do trabalho escravo que suprime os direitos do trabalhador por diversas vias, inclusive pela renúncia (RODRIGUES, 2015). Note-se que o Direito do Trabalho consagra o princípio da irrenunciabilidade e da indisponibilidade, de modo que o trabalhador não pode abrir mão, via de regra, das garantias trazidas no texto da lei em sentido amplo e nem mesmo daqueles direitos previstos no contrato de trabalho.
As exceções são as possibilidades de renúncia e transação a serem realizadas na forma da legislação em vigor. Um ponto interessante é que a interpretação sobre este fenômeno deve ser restritiva, a fim de que se preserve a situação da parte hipossuficiente da relação de trabalho.
Para tanto, o entendimento doutrinário é de que existe uma zona intransponível que abriga direitos que em hipótese alguma poderão ser renunciados ou transacionados, quais sejam, aqueles ligados à saúde e segurança do trabalho, bem como os direitos relacionados à dignidade do trabalhador. Ocorre que o trabalho escravo contemporâneo abriga interpretações diversas a esta, pois nem mesmo os direitos mais comezinhos são preservados diante de sua ocorrência. E a despeito do trabalhador não poder negociar estes direitos, a sua condição de extrema vulnerabilidade os obriga a aceitar todo tipo de proposta como se fosse possível negociar a vida digna.
Também não se pode dizer que o consentimento da vítima exclui o crime de trabalho escravo, assim defini o MPF ao responder esta questão na obra “Diálogos da Cidadania: Enfrentamento ao Trabalho Escravo” (MPF, 2014). É importante, portanto, que o Direito do Trabalho preserve seu caráter humanitário a fim de que a legislação se torne um instrumento real de efetivação dos direitos.
6. A LEGISLAÇÃO
Sobre a legislação, convém abordar inicialmente, ainda que com finalidade meramente histórica, as normas que acarretaram na abolição da escravatura, o que ocorreu graça a perda de força do regime escravocrata frente as novas tendências de mercado e não por questões humanísticas (LOTTO, 2008).
No ano de 1827 Brasil e Inglaterra ratificando o tratado que determinou a extinção do tráfico negreiro, considerando-o pirataria; em 1850 a Lei n. 584. vedou o tráfico de escravos para o Brasil; em 1855 o Decreto n. 3.270. (Lei dos Sexagenários) libertou os escravos com 60 anos de idade; em 1871 a Lei 2.040 (Lei do Ventre Livre) estabelecia que os nascidos de escravas estariam livres quando completassem a maioridade. E em 1888, a Lei. 3.353. (Lei Áurea) aboliu a escravidão no Brasil (SILVA, 2015).
Infelizmente, esta abolição que em tese foi definitiva, se contradiz com um formato renovado, mas não tão novo assim de escravidão chamada de contemporânea, não por ser recente, mas sim porque perdura até hoje a despeito de todo sistema constitucional de garantia dos direitos humanos fundamentais.
Note-se que a Constituição Brasileira de 1934, influenciada pela Constituição alemã dispôs sobre diversos direitos fundamentais sociais, os quais são conhecidos como direitos de segunda geração (PINHEIRO, 2006). Já a CF/88, também conhecida como a Constituição Cidadã, prevê uma série de direitos trabalhistas, alguns deles são considerados básicos, como o salário mínimo, a limitação de jornada de oito horas diárias os intervalos de jornadas, o descanso semanal e férias, alguns casos de estabilidade no emprego, entre muitos outros direitos que são aplicados à pessoa humana e, portanto, abarcam os trabalhadores.
É nítido que a CF/88 “ao realçar os direitos humanos, coletivos e difusos, acabou por redimensionar o próprio Direito Coletivo do Trabalho, promovendo uma acentuada valorização da organização sindical, da negociação coletiva de trabalho” (SANTOS, 2003). Além disso ainda consagrou no art. 170. “como fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” (SOUZA NETO, 2016). Outro quesito fundamental da CF/88 está no art. 243. que fez menção ao trabalho escravo (MENDES, 2014), determinando que as propriedades rurais e urbanas onde se explorar o trabalho escravo estarão sujeitas a expropriação e destinação à reforma agrária e programas de habitação popular, sem pagamento de indenização e sem prejuízo de outras sanções legais (MPF, 2014).
Também faz parte do arcabouço legislativo referente ao trabalho escravo contemporâneo, conforme já mencionamos quando tratamos da sua definição, o artigo 149 de CP que tipificou o trabalho escravo como crime apontando todos os seus elementos caracterizadores (BRASIL, 1940). Não se pode olvidar as normas internacionais que protegem o trabalhador e, portanto, são instrumento de apoio no combate ao trabalho escravo contemporâneo, como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), a qual estabelece no artigo IV que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas” (BRASIL, 1948).
Ainda mais específico o artigo XXIII da mencionada Declaração dispõe que todo ser humano tem direito de escolher seu emprego de forma justa sendo protegido da dispensa arbitraria; ter remuneração equânime e satisfatória, que lhe assegure o sustento e a dignidade humana, além da sindicalização (BRASIL, 1948). Vale salientar ainda, que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), passou por substancial reforma conforme tratamento dado pela lei 13.467/2017, todavia, apesar desta legislação não tratar diretamente do trabalho escravo, verifica-se que seu regramento representa prejuízos para o combate ao trabalho escravo tendo em vista “a ampliação da terceirização , a contratação de autônomos de forma irrestrita, e a possibilidade de aumentar a jornada de trabalho e de reduzir as horas de descanso”. (REPÓRTER BRASIL, 2017)
Sem dúvida, a legislação que trata da matéria sob comento é vasta, contudo, parece não ser suficiente para refrear o ímpeto daqueles que exploram o trabalho escravo dada a frequência de sua ocorrência, restando ao Poder Judiciário aplicar forçadamente a lei em face daqueles que não a observam, formando assim os entendimentos jurisprudenciais que veremos a seguir.