Guerra, duelo e processo - Werner Goldschmidt

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No artigo "Guerra, Duelo e Processo", Werner Goldschmidt apresenta sua visão particular sobre o desenvolvimento desses três institutos no âmbito da história das ideias jurídicas e delineia aspectos gerais e específicos de sua teoria geral do direito.

Nota do tradutor: Werner Goldschmidt (Berlim, 1910 – Buenos Aires, 1987) foi um jurista e historiador alemão radicado na Argentina, Doutor em Direito (Universidade Hamburgo), professor titular de Direito Internacional Privado e Introdução ao Direito (Universidade Nacional de Rosário), professor titular de Direito Internacional Privado (Universidade de Buenos Aires), entre outras instituições. É mundialmente conhecido por ser o idealizador da teoria trialista do mundo jurídico ou tridimensionalista do direito, sustentando, em síntese, que o fenômeno jurídico constitui uma totalidade complexa denominada de “mundo jurídico”, a ser analisado a partir dos três elementos que o compõem (fato, normas e valores). O autor enveredou seus estudos por diversas áreas do direito, sendo amplamente conhecida sua obra no âmbito da filosofia do direito. O presente artigo foi originariamente publicado pelo autor em 1950, no periódico Estudios Políticos, no qual foi membro. Nessa época ainda residia na Espanha, chegando inclusive a lecionar na Universidade de Madrid. Como ressaltado na introdução, o trabalho enquadra-se no âmbito da Teoria Geral do Direito, mas com reflexos evidentes no Direito Internacional Público, como o leitor terá a oportunidade de constatar.

A presente tradução, aqui publicada, tem fins meramente acadêmicos e de divulgação dos escritos do autor. Para facilitar a compreensão foram acrescidas notas do tradutor (NT) esclarecendo referências históricas ou linguísticas. Ressalte-se, por fim, a opção, por parte do tradutor, de conservar a formatação do texto conforme o original.


I -INTRODUÇÃO

O presente trabalho não pertence ao âmbito da Filosofia do Direito em sentido estrito, senão ao aglomerado de problemas que se designam com o nome de Teoria Geral do Direito. Com efeito, não trataremos, ao esboçar a problemática das controvérsias e de suas soluções, da aplicação da gnoseologia, da metodologia ou da metacrítica à matéria jurídica. O que faremos é indicar a essência de determinados conceitos que aparecem em certos segmentos da ciência jurídica [1]. Os métodos de que nos serviremos nesta tarefa são especialmente a intuição eidética para captar o núcleo dos problemas e a indução incompleta para confrontar o resultado da primeira com o da segunda.


II - AS CONTROVÉRSIAS E SUAS SOLUÇÕES

A) PARTE GERAL

1) Controvérsias

a) Conceito – A controvérsia supõe duas pessoas em pé de igualdade que sustentam teses diferentes sobre a estrutura ou sobre a transformação do mundo. Cada uma destas pessoas se chama parte e cada parte pode compor-se de vários indivíduos que entre si não precisam se achar necessariamente em igualdade de condições.

A igualdade das partes decorre relativamente das controvérsias sobre a estrutura do mundo do fato de que esta é acessível à razão humana, e da presunção de que todos os homens são igualmente “razoáveis”. Quanto à transformação do mundo, a igualdade das partes dimana da presuntiva igualdade dinâmica das vontades em dúvida, a qual não deve confundir-se com a desigualdade de poderes de realizar a correspondente vontade. A inicial igualdade das partes pode resultar modificada por viverem ambas dentro de um sistema de convivência que favorece unilateralmente a uma delas. Pense-se, por exemplo, no chamado processo penal de acusação com o Ministério Público como parte formal.

Não se trata de uma controvérsia se uma pessoa tem poder de mando sobre a outra, como o pai sobre os filhos menores de idade, o marido, em muitos ordenamentos positivos, sobre a mulher, o juiz sobre as partes. Mas esta relação de mando não está oposta a alegação de razões por parte daquele que manda, nem com as objeções do que obedece, incluindo fazer o que manda. Mencionamos, por exemplo, os “considerandos” dos autos e sentenças, por um lado, e os “recursos horizontais”[2], como a reposição ou a súplica, por outro.

b) Tipos – O termo “controvérsia” abarca fenômenos muito diversos, que podemos agrupar em três classes: duas opostas entre si e uma intermediária.

a’) Controvérsias ônticas – A controvérsia pode referir-se à realidade material (física ou psíquica) ou ideal, podendo, no primeiro caso, revestir as diferentes formas da temporalidade. Um historiador pode atribuir a ideia da Santa Aliança à senhora de Krüdener, enquanto que outro a impute exclusivamente ao Czar Alejandro[3]. Um militar pode afirmar que a bomba atômica seja decisiva em uma futura guerra, enquanto que outro ponha em dúvida tal tese. Emquanto um matemático pode propor uma prova do teorema de Fermat, outro pode atacar sua exatidão.

Em todos estes casos contém a controvérsia explícita – ou implicitamente - das razões dos opostos pontos de vista. Uma controvérsia sobre o mundo material alude sempre aos acontecimentos afirmados como efeitos de determinadas causas em virtude da categoria da causalidade. Uma controvérsia sobre o mundo ideal, entretanto, contém sempre uma referência às razões de cuja concatenação sistemática dito mundo ideal se compõe.

As controvérsias sobre o mundo do ser são, portanto, sempre controvérsias fundamentadas.

b’) Controvérsias políticas – A controvérsia pode referir-se igualmente à transformação do mundo pela própria vontade dos adversários. Como o conceito de transformação contém a dimensão temporal, resulta daí que ditas controvérsias só podem referir-se ao mundo material, já que o mundo ideal é atemporal. Nesta classe de controvérsias, pois, opõem um litigante ao outro a sua própria vontade de transformar o mundo atual de determinada forma. A oposição de vontades não contém necessariamente fundamentações. Não se esqueça que nosso costume de fundamentar nos faz frequentemente formular como razões o que não é senão uma diferente expressão de nossa vontade previamente estabelecida. Assim ocorre se postulamos algo porque o necessitamos, ou porque nos apetece, ou porque a desejamos. O mesmo ocorre se não existe para ambos contendentes um sistema normativo vinculatório comum. As controvérsias de vontade não têm que ser fundamentadas. Valem nelas as palavras de Juvenal: Hoc volo, sic jubeo; sit pro ratione voluntas[4].

c’) Controvérsias normativas – Por último, nos encontramos com outro tipo de controvérsia. Nelas se trata de oposição de vontades, pelo qual estamos em presença de controvérsias do segundo tipo. Mas diferentemente deste último, existem, neste terceiro grupo, sistemas ideais de fundamentação, destinadas a justificar transformações do mundo material. Os litigantes enlaçam suas vontades a estes sistemas, apresentando-nos, assim, controvérsias razoáveis semelhantes às controvérsias do primeiro tipo. Por isso as controvérsias de vontade razoáveis são intermediadas entre as controvérsias razoáveis e as controvérsias de vontades. Sistemas ideais de razões justificadas da vontade são, sobretudo, os morais e os diversos ordenamentos jurídicos.

d’) As controvérsias jurídicas – No campo jurídico não aparecem controvérsias do primeiro tipo senão de um modo prejudicial. Assim ocorre, por exemplo, no caso da condição, posto que nesta suposição mantém ambos os contendentes pontos de vista opostos em relação ao futuro desenvolvimento do mundo material. Também surgem controvérsias ônticas em muitos processos nos quais os fatos básicos do mesmo referem-se.

Entretanto, pululam as controvérsias políticas na órbita do Direito. Todas as discussões de lege ferenda dentro do Estado, e entre os sujeitos de Direito internacional, constituem tais controvérsias. Muitas vezes ocultam os contendentes o brutal conflito de vontades mediante a alegação de razões que não resistem a um exame detido, já que não são meramente formulações novas das vontades em litígio ou não procedem de um sistema normativo que vinculara ambas partes por igual.

Todas as controvérsias dentro do Direito positivo revestem, finalmente, o caráter de controvérsias normativas. Se passamos rapidamente em revista aos diferentes tipos de processos, nos damos conta no ato que as ações de condenação interessam uma transformação do mundo material e que as ações constitutivas, se bem reclamam, em primeiro lugar, uma mera transformação no sistema normativo – por exemplo, pagamento de alimentos, novo matrimônio, etc -. As ações declarativas parecem afastar-se de nossos ideais de controvérsias normativas. Mas inclusive nelas se encontra sempre ao fundo o desejo de uma reforma do mundo material, fato que plasma no requisito de um ‘’interesse jurídico’’ para a admissibilidade da ação e na velha ação de arrogância das Partidas, com sua condenação do arrogante ao ‘’perpetuo silêncio”.

2) Soluções

a) Conceito – A solução da controvérsia consiste quando esta desaparece provisória ou definitivamente mediante o estabelecimento vinculatório de uma opinião sobre a estrutura do mundo ou de um plano de organização do setor litigioso do mesmo. A mera desistência de uma das partes da controvérsia, por julgá-la atualmente inoportuna, ou a abnegação por ambas, não constitui solução alguma.

b) Classes – 1) Soluções persuasivas – As soluções persuasivas são sempre bilaterais, e se baseiam em um acordo entre as partes sobre a regulamentação da controvérsia.

2) Convencimento – Pode ser que uma das partes permaneça convencida da razão da outra. Esta convicção compõem-se no Direito Processual na renúncia do autor ou na conformação do demandado. O convencimento é uma solução (a melhor, e por isso a mais rara que pode haver) tanto nas controvérsias ônticas como nas normativas. Ela não cabe, entretanto, nas controvérsias políticas: onde não há razão, não pode existir convencimento.

3) Transação – Também pode ser que as partes cheguem a um acordo, cedendo cada parte de suas razões (nas controvérsias ônticas) ou parte de suas pretensões (nas restantes controvérsias). Este é o conceito de transação. O acordo entre as partes de submeter a controvérsia a uma arbitragem ou a um juízo divino não é a solução transacional da controvérsia, senão a preparação de solucioná-la coativamente.

4) Conclusão – Em ambos os casos podem intervir terceiros mediante seus bons ofícios ou como mediadores. As negociações não são a solução em si, senão o meio de lograr uma solução a base do convencimento ou da transação. Não é, portanto, correto enumerar como tipos de solução a negociação, a modificação e o arranjo judicial, posto que o é só o último, enquanto que as primeiras duas fórmulas não são senão meios de obter o convencimento da outra parte ou uma transação.

A solução das controvérsias ônticas não é nunca definitiva, posto que o progressivo conhecimento da estrutura do mundo pode dar lugar a sua revisão. Em controvérsias ônticas não existe a coisa julgada material, já que o conhecimento do mundo se articula em investigações, todas elas sumárias em comparação com a posterior e plenárias comparadas com a anterior. A situação é diferente nas controvérsias políticas. Na controvérsia brutal das vontades a transação cria uma solução em definitivo, sempre que as vontades que lhe respaldem sejam autênticas. As controvérsias normativas não revistem particularidades neste aspecto.

5) Soluções coativas – As soluções persuasivas se opõem soluções coativas, ou seja, soluções que uma parte prescreve para outra parte ou que um terceiro impõe a ambas as partes.

6) Soluções parciais – As soluções coativas parciais enfocam o problema de sua justificação. Com efeito, sendo ambas as partes essencialmente iguais, causa assombro que uma imponha a outra uma solução. Em realidade, sua justificação se baseia em uma mera ‘necessitas facti’: na impossibilidade de se socorrer a uma solução imparcial, por um lado, e na absoluta necessidade de regulamentar a controvérsia, por outro. Por essa intrínseca falta de autoridade estas soluções não se aperfeiçoam com a decisão de uma das partes, senão só com sua realização mesma. As soluções coativas parciais são, portanto, sempre soluções eficazes: sua eficácia pertence a sua essência. Tem-se aqui, nesta instituição, a raiz das resoluções que dentro do Estado dão lugar a legítima defesa e o estado de necessidade, e que, na esfera internacional, podem motivar a guerra.

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As soluções parciais cabem só nas controvérsias políticas e normativas. As soluções ônticas são resistentes a elas, porque não são solúveis mediante a força.

7) Soluções imparciais – As soluções imparciais dimanam de terceiros. As controvérsias ônticas sobre o mundo material se resolvem, por exemplo, por juízes ou por comissões de investigação, conforme foram criadas pelas Conferencias da Paz de 1899 e 1907. As soluções de controvérsias sobre o mundo ideal podem ser encarregadas a congressos científicos. As soluções das controvérsias políticas resolvem-se por árbitros, que as equacionam via ‘ex aequo et bono’. As soluções de controvérsias normativas, finalmente, devem achar-se em mãos de juízes que as decidam conforme o ordenamento normativo correspondente. A diferença entre controvérsias políticas e normativas pertence ao Direito Internacional Político. Assim, já estabelece Vatte[5]: ‘Les defférends qui s’élèvent entre lês Nations ou leurs conducteurs, ont pour objet, ou des droits em litige, ou des injures’. Esta distinção palpita no artigo 15 do Pacto da Sociedade de Nações, o capítulo terceiro da Ata Geral de 1928, o artigo 36, parágrafo 2º do Estatuto da Corte Internacional de Justiça de 26 de junho de 1945 e o artigo 36, parágrafo 3º da mesma Carta de São Francisco, da que o Estatuto forma parte integrante. A discussão na literatura do Direito Internacional sobre o critério distintivo entre controvérsias políticas e jurídicas é polêmica e não tem chegado ainda a um acordo[6].

8) Conclusões – A coerção nas soluções coativas são de diferentes tipos. As soluções coativas parciais empregam, ou a coação psíquica, por exemplo, mediante ameaças, retorsão, represálias, bloqueios pacíficos, etc. ou a ‘vis absoluta’. A coerção das soluções imparciais é sempre a coerção moral que dimana da autoridade dos julgadores. Enquanto nas controvérsias ônticas, a coação moral é a única exequível. Respectivamente, nas demais controvérsias, se unem a ela a coação por meio da ‘vis absoluta’, chamada ‘execução forçada’.

B) PARTE ESPECIAL

Guerra, duelo e processo

1) A GUERRA

A guerra tem sido contemplada no curso da História de duas maneiras diferentes:

a) Concepção jusnaturalista da guerra – Os escolásticos, e sobretudo todos os representantes da Escola Espanhola de Direito das gentes, atribuem ao príncipe ofendido jurisdição sobre o príncipe infrator do Direito. Nesse caso, o príncipe ofendido se constitui em verdadeiro tribunal, condenando o delinquente e executando a sentença condenatória mediante a guerra[7]. Molina[8] apresenta um caso prático a este respeito: a ocupação de Portugal pelas tropas do grande Duque de Alba em 1580. Felipe II ditou sentença de que a coroa de Portugal lhe pertencia, e enviou seus exércitos para executá-la; mas, como era lógico, ordenou que se causasse o menor dano possível. Vanderpol[9] resume a concepção escolástica como execução forçada de uma sentença previamente determinada pelo príncipe ofendido: “O príncipe ou o povo que declara a guerra atua como um magistrado sob cuja jurisdição cai uma nação estrangeira ratione delicti, como consequência de uma falta muito grave, de um crime que tenha sido cometido e que não tenha querido reparar. Minister Dei, não deve castigar senão nos casos em que o mesmo Deus houvera castigado: vindex in ira, não deve castigar mais que se aquele a quem condena tenha realizado uma ação capaz de provocar a cólera, isto é, a vontade de castigar divina; ei qui malum agit, não poderá jamais usar de seu poder para ferir ou coagir a quem não haja feito o mal.

Esta concepção se baseia na existência do Direito natural, segundo o qual o príncipe ofendido, que é ao mesmo tempo juiz, estabelecerá sua sentença. Deste ponto de vista se organiza o direito à guerra, enquanto que o direito de guerra se reduz à permissão de empregar quanta força seja imprescindível para executar a sentença de condenação. Havendo uma parte inocente e outra culpável, se compreende que não cabe licitamente a abstenção dos demais Estados diante do conflito; em outras palavras: não pode haver neutralidade, posto que todos estão obrigados a ajudar moralmente (não-beligerância), e inclusive materialmente (co-beligerância) o príncipe ofendido. No caso de um terceiro Estado duvidar acerca da justiça da guerra, dá-se lugar a uma neutralidade reservada, mas nunca justificada. A instituição da neutralidade cresce, com efeito, com posterioridade e certa lentidão desde Grocio, passando por Bynkershoek, até Vattel. Por outro lado dimana da concepção jusnaturalista da guerra o conceito de “crimes de guerra” na primeira de suas três facetas: crimes contra a paz[10].

Mas análoga concepção da guerra é imaginável apenas dentro de um Direito Internacional de certa perfeição de normas e de organismos. Temos prova fidedigna disto no artigo 16 do Pacto da Sociedade das Nações. As consequências no que concerne à regulamentação do direito à guerra, abandono de direito de guerra, neutralidade e aos crimes de guerra são similares.

b) Concepção positivista da guerra – No mundo cético em que se duvida da possibilidade de alcançar a razão, se é que em algum momento a tivemos, a guerra não é o meio de impor a razão previamente alcançada, senão que é o meio de resolver a mesma controvérsia. Este pessimismo difunde-se já[11](nota 8ª) em Grócio e em Vattel, apesar de sua formal adoção do conceito escolástico da guerra justa. Ambos autores chegam, com efeito, a nivelar a diferença entre beligerantes justos e injustos[12]. Em plena atitude cética exclama Vattel[13]: “Laissons done la rigueur du droit naturel et nécessaire à la conscience des souverains; il ne leur est sans doute jamais permis de s’em écarter. Maìs par repport eux effets exterieurs du droit parmi des hommes, il faut nécessariement reconrir à des regles d’’une application plus sûre et plus aisée; et cela pour le salut même el l’avantage de la grande société du genre humain.” Assim chega Vattel[14] às regras segundo as quais “la guerre em forme, quant à sés effets, doit être regardée commu juste d’une part et d’autre” e “tout ce qui est permis à l’un, em vertu de l’état de guerre est aussi permis à l’autre”. Kant declara expressamente que a guerra faz as vezes de um processo, e não as de uma pena por não ser nenhum povo superior ao outro[15]. Se discute se Bynkershoek sustenta análogo ponto de vista[16]. O enfoque processual da guerra triunfa por completo no século do positivismo filosófico e modela-se juridicamente nas convenções acordadas nas duas Conferências da Paz de Haia de 1899 e de 1907.

Estas convenções se ocupam preferentemente do Direito de guerra que regulamentam expressamente. O direito à guerra se supõe sempre, e o único que interessa de certo modo é a forma de iniciar a guerra, a que foi, por exemplo, estabelecida na Terceira Convenção firmada na Segunda Conferência da Paz de Haia, de 1907. Nesta situação cabe perfeitamente a abstenção na disputa dos demais países; abstenção esta que dá lugar à instituição jurídica da neutralidade[17]. O conceito criminal de guerra só pode abarcar aos que cometam crimes de guerra, isto é, aos que infringem as leis ou costumes do Direito de guerra[18].

A concepção processual da guerra se atende às palavras panteístas de Schiller[19]: “Die Weltgeschichte ist das Weltgericht” ( A História Universal é o Tribunal do Mundo).

c) Conclusões – A guerra jusnaturalista não é, portanto, a solução de uma controvérsia, senão que é a execução forçada de uma resolução previamente estabelecida. A guerra, segundo o critério positivista, é, por outro lado, uma solução coativa parcial. Agora bem: se a guerra termina com uma paz negociada, a verdadeira solução da controvérsia não se acha na guerra, senão no tratado de paz, sendo a solução, portanto, persuasiva. Só se a guerra termina com uma “paz ditada”[20] a solução da controvérsia se encontra na mesma guerra.

2) O DUELO

O duelo, termo que, segundo Schopenhauer, não se deriva da voz latina “duellum”, senão da palavra espanhol “duelo”, similar a “queixa”[21], aparece na história, essencialmente, em duas ocasiões e em dois conceitos radicalmente diferentes. Ademais, há que ter em conta uma terceira função desempenhada pelo duelo.

a) O combate judicial[22] (17 a). – Na antiguidade, em determinados povos - como entre os alemães e em toda a Idade Média - o duelo funciona como solução de uma controvérsia, mais precisamente como solução coativa parcial. A justificação moral deste sistema se baseia na crença religiosa de que Deus dá a vitória ao que possui a razão. O ascetismo segundo o qual “Deus ajuda sempre ao grupo mais forte” não havia ainda se difundido.

Sobre o duelo como “judicium Dei” na Inglaterra, nos dá Blackstone[23] uma expressão detalhada, tanto nos processos criminais[24] como nos civis[25]. A partir de Enrique II, as partes podiam socorrer-se, em vez do duelo, à “Grand assise”[26]. Shakespeare descreve um duelo desta natureza em Enrique VI[27]. Presenciamos um combate judicial entre Horner e Peter diante do mesmo Rei. Horner cai ferido de morte. A seguir se desenvolve o seguinte diálogo, cujas partes interessantes, por nossa conta, sobressai-se em itálico:

Horner: Hold, Peter, hold! I confess treason.

York: Take away his weapon. Fellow, thank God and the good wine in thy master’s way.

Peter: O God! Have I overcome mine enemy in this presence? O Peter, thou hast prevailed in hight! (Oh, Pedro, teu direito há prevalecido!).

King Henry: God, take hence that traitor from our sight; For by his death we do perceive his guilt: And God in justice hath reveal’d to us The truth and innocence of this poor fellow, (Posto que por sua morte nos damos conta de sua culpa: E Deus Justiceiro nos revelou a veracidade e inocência deste pobre moço) Which we had thought to have murder’d wrongfully. Come, fellow, follow us for thy reward.

Como se vê, a morte de Horner no duelo prova a inocência de Peter e a consequente culpabilidade do primeito. Com relação à França, encontramos abundante material sobre tal tema nas obras de Montesquieu[28]. São Luis regulamentava os combates judiciais extensamente, e Beaumanoir (século XIII) nos relata o conteúdo da regulamentação. Antes do combate, os órgãos judiciais mandavam os parentes das partes que se retirassem, ordenavam ao povo que ficassem em silêncio e proibiam que se ajudasse a uma das partes, sob aplicação de pena grave. O combate era interrompido se uma das partes fazia uma proposta de paz; mas frustrado este intento, as partes teriam que voltar a mesma situação que haviam abandonado.

Na Espanha se conhece o duelo como meio judicial desde há muito. Bentham cita, a este caso, Tito Lívio[29]. Com efeito[30], entre os povos espanhóis primitivos as partes, em poucos casos sem intervenção de terceiros, chegam a um duelo que resolva suas diferenças. É possível a existência de outras ordálias. Este legado chega à Idade Media. Nela nos encontramos com o desafio e o repto[31], sendo este último privativo dos nobres, podendo só fazer-se na Corte do Rei[32]. Consequência do desafio e do repto é a submissão do fato de que se trata ao juízo de batalha; mas este não ocorre já nas fontes mais tardias de modo mais perceptível. Formulado o repto, pode, a escolha do demandado, socorrer-se a outras provas, como testemunhas ou documentos, e inclusive executar-se uma pesquisa. As consequências que, de imediato, as provas dos fatos se deduzem dos resultados da lide são muito variáveis: se, são opostas, e ainda que haja confessado com exatidão o fato, também permanece livre. A vitória do provocador sobre o provocado, mesmo sem que morram, se entende desfavorável a suas respectivas posições. O Poema de Cid[33] contém um célebre juízo divino entre os representantes de Cid e seus genros, que haviam abandonado as filhas daquele. Os genros perdem o combate. O Rei não pronuncia sentença alguma. A prova por si só fala na causa. O vencido exclama as sacramentais palavras: “Vencido sou”, e os fiéis se limitam a dizer: “Isto nós ouvimos”; é dizer: o vencido, ao confessar-se tal, pronuncia sua própria sentença de infâmia, e o fiel é a mera testemunha da confissão. As Partidas (VII, 3) regulamentam os “reptos” extensamente. A Novíssima Recopilação (XII, 20), ao princípio do século XIX, entretanto, “proíbe os duelos e desafios”.

b) O duelo como pena de um delito contra a honra. – Do duelo como juízo divino se desenvolve o duelo moderno, que constitui a pena que a pessoa ultrajada impõe ao ofensor, principalmente porque a vítima e os círculos sociais nos quais vive não consideram suficientes as penas estabelecidas pelo Estado[34]. Como o Estado, por sua vez, pune o duelo, a pessoa insultada se encontra num dilema que Montesquieu[35] formula do seguinte modo: “Si l’on suit lês lois de l’honneur, on périt sur um échafaud; si l’on suis celles de la justice, on est banni pour jamais de la société des hommes: il n’y a donc cette cruelle alternative, ou de mourrir, ou d’être indigne de vivre”. Para evitar uma situação tão paradoxal, propõe Vattel um castigo mais severo nos delitos contra a honra[36].

c) O duelo como guerra abreviada – O duelo aparece, finalmente, ainda numa terceira função, a saber: como guerra em miniatura. Este costume é muito antigo. A encontramos já na luta entre os judeus e os filisteus[37]. Golias desafia um dos judeus da seguinte forma[38]: “Se ele puder brigar comigo, e me vencer, nos seremos vossos servos; e se eu puder mais que ele, e o vencer, vós sereis nossos servos e nos servirão”. Com feito, o resultado do combate entre David e Golias nos revelará a vontade de Deus, “porque de Jeová é a guerra, e ele os entregará em nossas mãos[39]. Mas os filisteus não cumpriram a palavra. “E como os filisteus viram seu gigante morto, fugiram[40]”. Não obstante, os judeus lhes seguiram e lhes assassinaram[41]. Vázquez de Menchaca admite o duelo como meio para abreviar uma guerra[42]. Grocio trata do mesmo problema[43]. Heffter[44] recorda ainda o cartaz de desafio enviado em 1611 por Carlos, Rei da Suécia, ao Rei Christian IV, da Dinamarca; pelo Rei Gustavo IV ao Imperador Napoleão I; também o proposto por Carlos V a Francisco I em 1528. Mas Klüber[45] se limita a dizer que os duelos entre os soberanos já se tornaram obsoletos. A relação entre duelo e guerra se evidencia também no costume medieval, que subsiste até a entrada da modernidade, de anunciar a declaração da guerra pelo “mensageiro de guerra”, a imagem e semelhança do desafio pelo duelo[46].

d) Conclusões – O duelo, na terceira função, não é senão a redução da guerra coletiva a uma guerra singular representativa. As considerações acerca da guerra se aplicam, portanto, a este tipo de duelo. Não obstante, há que ter em conta que o duelo, em conceito de guerra reduzida, só se colocará em lugar de uma guerra considerada como juízo divino; entretanto, não substituirá uma guerra enfocada como execução forçosa duma sentença previamente falha.

O duelo como juízo divino constitui uma espécie de solução coativa parcial. Sua roupagem processual não afeta seu caráter essencial. Temos visto que o “juízo divino” carece do mesmo em tempos primitivos, e que inclusive na Idade Média se prescindia de uma sentença judicial: o resultado mesmo do duelo resolve a contenda. O que ocorre é que o combate judicial constitui uma fase intermediária entre a guerra lisa e simplista, que na História (se bem não no Direito Internacional público atual) aparece tanto na forma de guerra pública, quanto na guerra privada, por um lado, e o processo, pelo outro lado. A justificação relativa do combate judicial consiste, em aspecto positivo, na fé na intervenção justiceira divina, e no aspecto negativo, na falta de um sistema normativo completo. Vico[47] adverte neste último aspecto, com razão, que os duelos não se devem a falta de provas, senão a de leis processuais e materiais.

O duelo como pena de um delito contra a honra não é, entretanto, solução de uma controvérsia, senão que é a execução de uma solução já previamente estabelecida.

3) O PROCESSO

O processo surge como protótipo de uma solução coativa imparcial, e substitui, por completo ou em parte, o duelo e a guerra como soluções coativas parciais. Na vida interna da comunidade surge em princípio a luta como única solução coativa. Logo, reveste ela certa estrutura exterior processual como “combate judicial”. Por último, se vigoriza o processo propriamente dito, elimina de seu seio o combate judicial pela incompatibilidade entre uma solução coativa parcial e outra imparcial, e adquire a forma atual. Na vida internacional, o processo luta ainda duramente contra a guerra. Não entraremos nas causas das dificuldades que encontra o processo em sua empresa de substituir a guerra – “Peace through law” (Kelsen) -, nem nas peripécias da mesma. A ciência há visto com frequência as relações entre guerra e processo, para não falar das relações entre combate judicial e processo, por formar estas partes da mesma “História do Direito Processual”. James Goldschmidt[48] compara, por exemplo, a guerra e o processo. Burlamaqui[49] peca, exageradamente, ao equiparar a guerra e o processo com as seguintes palavras: “Só depois de haver apurado todos os meios de conseguir justiça pela paz é quando poderemos recorrer, enfim, a força, se desgraçadamente hão sido inúteis. Portanto, no estado de natureza, nos achamos em guerra, e no estado de sociedade, em pleito: dois extremos tão incômodos que são ordinariamente muito funestos a ambas partes”.

O que sucede[50], em primeiro lugar, é que o conceito de processo tem que aludir ao fenômeno da controvérsia e de sua solução. A objeção de que em algum Direito positivo pode haver algo construído exteriormente como processo e que não resolva uma controvérsia, não compreende bem a relação entre ciência e realidade. A ciência obedece ao essencial na realidade; mas a ciência dirige o acessório. Por isto, precisamente, todo quanto existe é razoável, posto que só o que é razoável existe em sentido autêntico. Deste modo é possível distinguir a jurisdição contenciosa da jurisdição voluntária. A primeira das soluções coativas imparciais de controvérsia; a segunda constitui o auxílio que determinados funcionários do Estado prestam aos particulares na estruturação jurídica da atividade particular. Em segundo lugar, se compreende que o processo ante juízes elegidos pelas partes (intermediários ou árbitros), e o processo ante juízes estatais, são essencialmente iguais, sem prejuízo de que a sentença “ex aequo et bono” seja mais adequada para a solução de controvérsias políticas que para a de soluções normativas, e também prescindindo do fato de que as sentenças judiciais, a diferença das outras, não só dispõem da coação psíquica, senão também, e diretamente, de coação física. Em terceiro lugar, vê-se com claridade que o ato de conciliação não é um processo, já que não tende a uma solução coativa imparcial, senão a uma solução persuasiva. Em quarto lugar, tampouco é o processo a execução forçosa, posto que não resolve uma controvérsia, senão que impõe à realidade a solução previamente estabelecida.

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Sobre o autor
Gerôncio Ferreira Macedo Júnior

Analista Processual na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão - Ministério Público Federal. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal – ICPC.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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