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Estado constitucional e o crime de apropriação de coisa achada: uma análise ético-legislativa

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19/07/2018 às 16:00
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4 Crime de apropriação de coisa achada: considerações acerca do agir na contemporaneidade

Segundo a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia (apud CARVALHO, 2018) “O direito não acaba com o preconceito. O direito proíbe o preconceito”. Partindo desta premissa, pode-se afirmar que o direito não acaba com o crime, apenas veta a sua prática.

Essa assertiva pode ser enriquecida com a perspectiva Kantiana acerca da maldade presente na natureza humana:

Tendo em conta a maldade da natureza humana, que pode ver-se às claras na livre relação entre os povos (ao passo que no Estado legal-civil se oculta através da coacção do governo) é, sem dúvida, de admirar que a palavra direito não tenha ainda podido ser expulsa da política da guerra como pedante [...] (KANT, 1995, p.133)

Isso ocorre porque não basta a coerção estatal imposta por intermédio da pena àquele que infringe a diretriz normativa. Não é o medo da punição que transforma o indivíduo e consequentemente a sociedade, livrando-a de comportamentos infracionais. Isso exige um agir consciente permeado por valores que sustentam a comunidade. A ética está além do direito, é mais do que simplesmente obedecer.

Vale lembrar, como bem registra Melo (2005, online) que:

[...] o domínio normativo da Ética nem sempre coincide com o domínio normativo do Direito. Este é mais complexo, inclui normas pragmáticas e de organização que, em princípio, seriam neutras do ponto de vista axiológico. Mas seja qual for a finalidade do preceito jurídico, sua validade material estará vinculada à realização do interesse geral e portanto do bem comum, sentido que lhe empresta o valor utilidade.

A sociedade que institui valores que traduzem o que é o bem e aquilo que representa o mal. Define, entre outros meios, pelo direito, o que deve ser permitido e o que não deve ser tolerado. Essas estruturas levam a concepções superficiais do que deve ser considerado justo ou injusto.

O que se verifica na atualidade é um processo no qual os valores são reconhecidos sem a devida profundidade e importância orientadora, pois, são [...]considerados válidos por uma grande maioria, sem o devido questionamento acerca, por exemplo, da legitimidade e da validade das proposições prescritivas e normativas da ética e dos códigos morais” (FERREIRA JÚNIOR, 2012, p. 14).

Destaca Ferreira Júnior (2012, p. 15) que:

Muitos de nossos costumes e valores são quase sagrados, como se tivessem sido ordenados pelos deuses na origem dos tempos. O velho Sócrates já havia desmascarado nossas hipocrisias e ilusões ensinando-nos que aquilo que consideramos verdadeiro, virtuoso e bom não corresponde efetivamente à verdade, à virtude e ao bem. Entretanto, mais relevante que perguntar pelo significado e pela finalidade de nosso dizer, fazer e agir, sucumbindo à tirania da razão, como o faz Sócrates, talvez devêssemos desvelar, como aconselha Nietzsche, o elemento diferencial (o vil e o nobre) na origem de nossas avaliações e valorações.

Não se trata de um exercício fácil na contemporaneidade. No contexto de mundo globalizado, diferenciar o que é vil do que é nobre enfrenta uma realidade concreta na qual o referencial de felicidade passa necessariamente pelo consumo, ocorre um nítido distanciamento da sociedade de valores historicamente construídos.

A competição entre os indivíduos e o imediatismo típico das novas gerações, entre muitos outros fatores, têm levado a processos de flexibilização ético-moral que impulsionam o indivíduo para um agir inconsciente, distante da reflexão e da racionalidade que se exige para ações orientadas pela ética e pela moral (RAMOS, 2012). O crime passa a ser uma conduta que comporta justificativas concebidas pelo interesse do indivíduo e não com base em preceitos norteadores das relações sociais.

Com isso, muitas condutas proibidas pela legislação continuam sendo práticas comuns no cotidiano, contribuindo para a deterioração do conceito e prática da ordem social. Logo, não basta simplesmente vetar, exige-se uma transformação que resgate a importância de uma conduta consciente e comprometida com o bem comum.

Aliás, o agir ético é uma das grandes preocupações dos juristas na atualidade. Conforme se extrai de Ramos e Reis (2017, p. 39):

Os pensadores do mundo contemporâneo têm o desafio de promover uma reflexão da ética que permita melhor compreender e enfrentar as mudanças estruturais ora estabelecidas, contendo a distorção e deterioração dos valores morais em que se fundam a sociedade.

Sem essa reflexão e a necessária transformação social determinada pela necessidade de um agir ético pautado pelo bem comum, as diretrizes normativas que vetam comportamentos como a apropriação de coisa achada, tornam-se vazias e desprovidas da eficácia que delas o legislador e o Estado esperam.


Considerações finais

A reflexão ora desenvolvida proporciona uma perspectiva segundo a qual, ao consignar no ordenamento jurídico brasileiro um tipo penal que define como crime a apropriação de coisa achada, o legislador demonstrou inspiração em valores que foram forjados pela sociedade.

Embora exista autonomia entre as esferas normativas do direito e da moral, elas acabam convergindo no direcionamento das ações necessárias à ordem social. A pavimentação do caminho para a concretização do bem comum como valor máximo do Estado exige uma construção normativa comprometida com esta consciência.

Nos Estados Democráticos, refrear as concepções de que direito, moral e ética atuam de forma conjunta nas dinâmicas que orientam as relações sociais é negar ao conhecimento jurídico um progresso mais deliberado e reflexivo.

Afinal, não há como refutar a ideia de que a ciência jurídica em um Estado Constitucional envolve a percepção do direito como um fenômeno cultural no qual as experiências individuais e coletivas, bem como as relações sociais orientam sua construção, desenvolvimento e contínuo processo de transformação norteado pelos preceitos da Carta Magna nacional.

A análise do tipo penal consignado no artigo 169, II do Código Penal brasileiro, demonstra como é necessária uma contínua e profunda reflexão do agir humano em sociedade e dos valores que esta consagra. Somente o confronto dessa realidade permitirá alcançar a indispensável consciência do agir ético e sua importância para a concretização das “utopias” concebidas no plano ideológico de cada Nação.

A orientação que se extrai do referido diploma é transparente em relação aos valores orientadores de uma conduta ideal comprometida com o agir ético, pois na visão legislativa cabe àquele que encontra um objeto perdido, restituí-lo ao seu legítimo proprietário ou a autoridades competentes.

Contudo, não basta proibir. O simples veto legislativo da apropriação de coisa achada não se mostra suficiente para conter a prática. O ditado “achado não é roubado” continua presente no íntimo que orienta as ações de um grande número de indivíduos. Logo, evidente necessidade de um amplo debate acerca não apenas deste, mas de vários comportamentos que atentam contra o bem comum e sobre como insistir nestas práticas incoerentes com o bem comum desintegram as relações sociais e comprometem o futuro do País.


Referências

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Sobre o autor
François Silva Ramos

Doutor em Ciências da Educação (UnInter). Mestre em Educação (Uniube). Especialista em Educação Ambiental (FAZU), Direito Educacional (CEUCLAR), Direito do Trabalho (UNIP), Direito Administrativo e Direito Empresarial (FACEL), Filosofia e Sociologia (Faculdade Futura). Graduado em Direito e Comunicação Social (ambos pela Uniube), professor dos cursos de Direito, Logística, Gestão Comercial e Ciências Contábeis da UNIPAC-Uberaba e dos cursos de Direito e Administração da FACTHUS. Pós Graduando em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Mais de 60 (sessenta) livros publicados abordando diversos aspectos das ciências jurídicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, François Silva. Estado constitucional e o crime de apropriação de coisa achada: uma análise ético-legislativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5496, 19 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64985. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Inspirado no trabalho de conclusão de curso da Pós Graduação (lato sensu) em Direito Penal e Processo Penal, da FACEL (2018).

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