O ITCMD como instrumento de Justiça Social

Como fazer desse tributo um protagonista na luta pela redução da desigualdade social?

24/03/2018 às 12:21

Resumo:


  • O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) é um tributo relevante para a transmissão de bens por herança e pode ter uma função extrafiscal, servindo como ferramenta para combater desigualdades sociais.

  • A alíquota fixa do ITCMD no Brasil pode esconder uma realidade de tributação indireta, que onera proporcionalmente mais os indivíduos de baixa renda, contribuindo para a desigualdade social.

  • Uma reformulação do ITCMD para torná-lo progressivo ou isentar faixas mais baixas de herança poderia ser mais eficiente para a redução da desigualdade, mas requer também uma melhoria na gestão das finanças públicas para que o aumento da arrecadação se reverta em benefícios para a população.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O ITCMD pode assumir a vanguarda na luta pela redução das desigualdades sociais, uma vez que a herança, no Brasil, pelas falhas na legislação tributária, integra um obstáculo ao alcance da justiça social.

Agora que estamos conscientes de como esse imposto é importante no evento de transmissão dos bens por herança, gostaria de introduzir um assunto muito interessante, que é a função extrafiscal que esse imposto pode ter (caso tenha perdido ou deseje saber mais sobre os elementos basilares do ITCMD, veja este meu artigo introdutório aqui).

O princípio da isonomia tributária talvez seja a diretriz mais representativa do ideal democrático, uma adequada representação, dentro do direito tributário, da garantia fundamental prevista no caput do artigo 5º da Constituição Federal, ao definir que “todos são iguais perante a lei”. Tal igualdade pode ser compreendida na famosa frase de Aristóteles “tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na medida de sua desigualdade”. No direito, podemos desconcentrar essa ideia em dois tipos de igualdade: uma igualdade horizontal (tratar os iguais de maneira igual) e uma igualdade vertical (tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades). Temos, no ordenamento, esta ideia no artigo 150, II, da Constituição Federal. Assim, o princípio da isonomia tributária está ligado a esses valores, e junto ao princípio da capacidade contributiva representam a busca por uma igualdade horizontal e vertical dentro da sociedade brasileira, através do sistema tributário em vigor.

Acontece que a alíquota do ITCMD no Brasil, via de regra, é fixa. À primeira vista parece ser algo positivo, tendo em vista que uma alíquota fixa é proporcional, fazendo com que quem ganhe mais contribua com mais e quem ganhe menos contribua com menos. Porém, essa proporcionalidade esconde uma realidade obscura, que são as estruturas do nosso sistema tributário, que possibilita a oneração do contribuinte com a chamada “tributação indireta”, que são tributos que incidem sobre um elo intermediário, mas são repassados para um consumidor final. São os tributos que incidem sobre mercadorias e produtos de consumo, por exemplo. Os tributos indiretos fazem com que um indivíduo de renda baixa que compre uma geladeira, por exemplo, pague a mesma quantidade de tributos que outro indivíduo de renda alta que compre esta mesma geladeira. Neste sentido, o percentual de comprometimento da renda mensal do indivíduo de baixa renda para pagamento de impostos é maior do que o daquele indivíduo de renda elevada, e isso é uma consequência dos impostos cujas alíquotas são fixas. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em um relatório divulgado em 2009, “pessoas que ganhavam até dois salários mínimos em 2004 gastaram 48,8% de sua renda no pagamento de tributos, já o peso da carga tributária para as famílias com renda superior a 30 salários mínimos correspondia a 26,3%”, o que reforça a tese de que alíquotas fixas são um revés à busca por justiça social, considerando a realidade da tributação indireta. Para ilustrar essa realidade, o IPEA divulgou em seu estudo as tabelas abaixo:

Daí a natural conclusão de que, dentro de sistemas de tributação indireta, a utilização de alíquotas fixas causa um efeito inverso ao almejado, isto é, um efeito regressivo.


A possível função extrafiscal do ITCMD

  Em linhas gerais, podemos dizer que um tributo pode ter duas funções: uma fiscal e outra extrafiscal. A primeira almeja fornecer ao Estado condições para que ele exista, retirando riqueza de seus cidadãos e transferindo-a para si. Já a função extrafiscal possui como pano de fundo um objetivo outro que não a riqueza em si, podendo fomentar um determinado setor da indústria, desenvolver o comércio, atrair consumidores e investimentos, proteger as pessoas mais economicamente vulneráveis às flutuações econômicas, reduzir a desigualdade social etc.

O enfoque deste artigo é divulgar a ideia de que o ITCMD, no que tange à transmissão causa mortis, deveria possuir uma forte função extrafiscal no sentido de assumir a vanguarda na luta contra a desigualdade social. Segundo Machado Neto em sua tese de graduação divulgada pela Universidade de Brasília[1]:

“Um estudo econômico recente expôs que a taxa de crescimento reduzida no fim do Século XX e início do Século XXI aliada a uma taxa de rendimento de capital relativamente superior acaba por gerar um desequilíbrio no qual

As riquezas vindas do passado progridem automaticamente mais rápido – sem que seja necessário trabalhar – do que as riquezas produzidas pelo trabalho, a partir das quais é possível poupar. De maneira quase inescapável, isso tende a gerar uma importância desproporcional e duradoura das desigualdades criadas no passado e, portanto, das heranças” (grifo meu)

Como resultado, existe um desequilíbrio em ganhos de capital entre aqueles que herdaram grandes quantias e aqueles que pouco ou nada receberam como herança, culminando em uma desigualdade pelo fator hereditário. Assim, uma alíquota de ITCMD que seja fixa em relação à transmissão causa mortis nada faz para atenuar essa situação, que só tende a se agravar com o passar das gerações. Do ponto de vista democrático, a acentuação dessas desigualdades em nada contribui para uma sociedade mais equilibrada e justa, sendo dever do Estado buscar confrontar essa situação, ceifando desigualdades e vertendo-as em benefício da população.

Deste modo, o papel do ITCMD no que tange a transmissões causa mortis é crucial. As alíquotas deveriam ser progressivas (a progressividade das alíquotas de tributos como o ITCMD é um assunto polêmico e pretendo abordá-lo nos próximos dias) ou, ao menos, excluir da base de cálculo uma grande faixa de heranças, estipulando um valor mínimo em que o ITCMD incidiria, abaixo do qual as heranças estariam isentas. É o que ocorre nos EUA, em que a enorme parcela das transmissões causa mortis não são tributadas em virtude de uma base de cálculo com valor mínimo (uma projeção para o anos de 2013 estimou que menos de 4,000 espólios seriam tributados[2])

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Já que mencionei um outro país, creio ser pertinente ressaltar que em vários países desenvolvidos o imposto que incide sobre heranças cumpre um papel de extrema importância em consonância com o sugerido aqui. Trago abaixo uma tabela extraída do The Worldwide Estate and Inheritance Tax Guide 2017 (WEITG), um guia publicado pela Ernst & Young Global, uma empresa multinacional de assessoria jurídica e contábil, indicando alguns países em que há ou não um tributo sobre herança e a sua respectiva alíquota. Vejam que em muitos países a alíquota é muito alta.

  

No Brasil, a Resolução nº 9/1992 do Senado Federal estabelece que a alíquota máxima do ITCMD será de 8%. Isso significa que a contribuição fiscal desse imposto é extremamente baixa, isto é, o Estado não recebe quantias significativas desse tributo, em prejuízo de sua função fiscal. A Receita Federal divulgou um estudo sobre a Carga Tributária no Brasil relativo a 2016, em que mostra que o ITCMD é responsável por apenas 0,36% da arrecadação total dos estados. O tributo responsável pela maior parcela de arrecadação é justamente o ICMS, que é enquadrado como um tributo indireto, agravando o efeito regressivo do sistema tributário. Segue quadro divulgado pela Receita Federal no estudo mencionado:

Então, se a função fiscal do ITCMD é insignificante, e sua função extrafiscal está reduzida em função das razões já expostas, qual é a justificativa de ele ainda existir no Brasil? Se mudanças não forem propostas para torná-lo realmente eficiente, o melhor a se fazer é extingui-lo, pois, além de não trazer benefícios, acaba por prejudicar a sociedade ao agravar a desigualdade.

Porém, é preciso não esquecer das circunstâncias do nosso governo. De acordo com o Conselho de Desenvolvimento econômico e Social (CDES) da carga tributária de 34,9% do PIB em 2008, apenas 10,4% retornou à sociedade por meio de investimentos públicos, valor ligeiramente maior que os 9,5% de retorno em cima de uma carga de 33,8% para o ano de 2005.[3] Assim, de nada adiantaria os estados arrecadarem mais se esse dinheiro não fosse revertido em benefícios para a população. Dentro do objetivo de redução das desigualdades sociais, o que se espera não é que quem tenha mais passe a ter menos e fique por isso mesmo, mas que quem tenha menos passe a ter mais. Com esses baixos níveis de retorno, caso houvesse simplesmente maior arrecadação, ainda que progressiva, através do ITCMD sobre transmissões causa mortis, o que aconteceria seria que quem tivesse mais passaria a ter menos, quem tivesse menos continuaria a ter menos, e o Estado ficaria com os valores e daria uma destinação outra que não seja em prol da população (provavelmente pagamento de dívidas externas, em benefício de grandes investidores internacionais, como já fazem utilizando o polêmico instituto da DRU - Desvinculação das Receitas da União).

Portanto, mais do que uma reforma no sistema tributário, é crucial uma reforma na gestão das finanças públicas. De nada adiantaria introduzir um sistema tributário “top notch”, como os ingleses diriam, se a gestão do erário continuasse em benefício de outros que não seja o povo brasileiro. O ITCMD pode ser uma ferramenta valiosíssima para evitar que uma desigualdade exagerada transmitida entre as gerações continue a fragilizar o sistema democrático. Em uma democracia, fazer com que os cidadãos tenham um ponto de partida em igualdade de condições para conquistar o próprio sustento e vencer, pelo próprio esforço, seus desafios é um dos pilares que a mantém. A herança, na forma como é atualmente tributada, se consubstancia em uma grave erosão desse pilar, na medida que se traduz em grande vantagem para os herdeiros de famílias historicamente ricas sobre aqueles historicamente pobres. Nesse sentido, a tributação é uma via de combate a essas desigualdades indesejáveis dentro de um sistema republicano democrático, sendo um dos propósitos do sistema tributário combater esta chaga social.


Notas

[1] MACHADO NETO, João de Freitas. Tributação sobre a herança: A progressividade do Imposto sobre transmissão causa mortis e doação.

[2] COLE, Alan. Estate and inheritance taxes around the world. 2015, pp. 3 a 5.)

[3] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Indicadores de iniquidade do sistema tributário nacional: Relatório de observação nº 2. 2ª ed. Brasília: Presidência da República, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES, 2011, p. 26. Dos 10,4% em investimento público, 4,7% foram na educação, 3,7% na saúde, 1,4% na segurança pública e 0,6% em habitação e saneamento.

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Sobre o autor
Thiago Andrade

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Pós graduando em Direito Tributário pela LFG. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/MS. Colunista jurídico no site jornalístico http://www.tererenews.com/editoria/noticias-da-justica-e-do-direito/thiago-andrade/. Pianista amador e corredor apaixonado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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