O direito ao seguro-desemprego emana, no Brasil, de três fontes: a Constituição da República (arts. 7º, II e 201, III); a Convenção Relativa à Promoção do Emprego e à Proteção contra o Desemprego (Convenção 168) da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada pelo Decreto 2.682/1998; e a Lei 7.998/1990. No caso das trabalhadoras domésticas, há, ainda, uma quarta: a Lei Complementar 150/2015.
Sua duração é definida pelas normas de menor hierarquia entre as citadas: a Lei 7.998, que a estipula entre 3 e 5 meses (art. 4º e respectivo § 2º, na redação dada pela Lei 13.134/2015), e a Lei Complementar 150, a cujo teor ela será, para as empregadas domésticas, sempre de 3 meses (art. 26). Esses prazos, como se demonstrará, infringem as normas hierarquicamente superiores (Constituição e Convenção 168).
1 – Garantias fundamentais e vinculação legislativa
O art. 7º, II da Constituição, ao estatuir o seguro-desemprego em garantia fundamental; e o art. 201, III, ao inseri-lo no âmbito da Seguridade Social, subordinando-o, assim, ao princípio da universalidade da cobertura e do atendimento (art. 194, I), tolhem consideravelmente a discricionariedade parlamentar no tocante à sua duração. Mesmo sob enfoques que buscam subtrair densidade normativa às garantias inscritas na Constituição, atribuindo-lhes cunho “meramente” (como se isso fosse pouco) programático, é impossível deixar de admitir que elas fixam um norte para a atividade legislativa.
Esse norte, diretamente vinculado à eficácia e efetividade do benefício, é a máxima proteção ao trabalhador desempregado, e decorre também de dois dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil definidos na Constituição: “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I) e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais” (art. 3º, III). Esse conjunto de disposições constitucionais impõe ao Legislativo o dever de estabelecer para o seguro-desemprego uma duração que alcance, senão todo o período de desemprego de cada trabalhador, ao menos – e como ponto de partida para a consecução de tal objetivo – um prazo que se afigure adequado em função do tempo médio de procura de trabalho e dos parâmetros internacionais.
Se é difícil definir a linha divisória dessa adequação, identificar sua ausência é fácil onde e quando, segundo pesquisa realizada nas 27 capitais, em fins de 2017, pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)[1], o período médio de recolocação, contado da saída de um emprego ao ingresso em outro, é de 14 meses – quase o triplo da duração máxima do seguro-desemprego.
Estamos, portanto, diante de cristalina inconstitucionalidade omissão parcial, tanto da Lei 7.998 quanto da Lei Complementar 150. Mudando tão só o objeto (aqui, o benefício em comento; no precedente infra, o salário mínimo), aplica-se ao caso o já afirmado pelo Supremo Tribunal Federal:
DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO. - O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. - Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.
SALÁRIO MÍNIMO - SATISFAÇÃO DAS NECESSIDADES VITAIS BÁSICAS - GARANTIA DE PRESERVAÇÃO DE SEU PODER AQUISITIVO. - A cláusula constitucional inscrita no art. 7º, IV, da Carta Política - para além da proclamação da garantia social do salário mínimo - consubstancia verdadeira imposição legiferante, que, dirigida ao Poder Público, tem por finalidade vinculá-lo à efetivação de uma prestação positiva destinada (a) a satisfazer as necessidades essenciais do trabalhador e de sua família e (b) a preservar, mediante reajustes periódicos, o valor intrínseco dessa remuneração básica, conservando-lhe o poder aquisitivo. - O legislador constituinte brasileiro delineou, no preceito consubstanciado no art. 7º, IV, da Carta Política, um nítido programa social destinado a ser desenvolvido pelo Estado, mediante atividade legislativa vinculada. Ao dever de legislar imposto ao Poder Público - e de legislar com estrita observância dos parâmetros constitucionais de índole jurídico-social e de caráter econômico-financeiro (CF, art. 7º, IV) -, corresponde o direito público subjetivo do trabalhador a uma legislação que lhe assegure, efetivamente, as necessidades vitais básicas individuais e familiares e que lhe garanta a revisão periódica do valor salarial mínimo, em ordem a preservar, em caráter permanente, o poder aquisitivo desse piso remuneratório.
SALÁRIO MÍNIMO - VALOR INSUFICIENTE - SITUAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO PARCIAL. - A insuficiência do valor correspondente ao salário mínimo, definido em importância que se revele incapaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e dos membros de sua família, configura um claro descumprimento, ainda que parcial, da Constituição da República, pois o legislador, em tal hipótese, longe de atuar como o sujeito concretizante do postulado constitucional que garante à classe trabalhadora um piso geral de remuneração (CF, art. 7º, IV), estará realizando, de modo imperfeito, o programa social assumido pelo Estado na ordem jurídica. - A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. - As situações configuradoras de omissão inconstitucional - ainda que se cuide de omissão parcial, derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política, de que é destinatário - refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário. (ADI 1.439 – MC, rel. Celso de Mello, DJ de 30.05.2003)
2 – Caracterização do desatendimento a convenções de direitos humanos como inconstitucionalidade, independentemente do status normativo delas
A duração estabelecida pela Lei 7.998 afronta também o art. 19, c/c arts. 15 e 16 da Convenção 168 da OIT, que, diversamente dos arts. 7º, II e 201, III c/c 194, I, fixam prazos mínimos para pagamento do seguro-desemprego. Antes de demonstrar como e por que se dá tal afronta, cabe assinalar que ela se qualifica como inconstitucional, seja qual for o status que se atribua à Convenção 168 na ordem jurídica interna do Brasil.
Reconhecida a hierarquia constitucional das convenções internacionais sobre direitos humanos – o que a Convenção 168 é, inclusive por reger matéria (“proteção contra o desemprego”) prevista no art. 23, 1 da Declaração Universal – , ter-se-á ofensa a outro dispositivo constitucional (art. 19 da referida convenção), ademais e independentemente dos arts. 7º, II e 201, III c/c 194, I da carta da República.
Atribuído, por outro lado, valor supralegal à Convenção 168, ter-se-á, com evidência reforçada, ofensa aos arts. 7º, II e 201, III c/c 194, I da Constituição, pois a afronta a ela será afronta também aos dispositivos estritamente constitucionais que tratam da mesma matéria, como também já afirmado pelo STF:
II. Repouso semanal remunerado preferentemente aos domingos (CF, art. 7º, XV): histórico legislativo e inteligência: argüição plausível de conseqüente inconstitucionalidade do art. 6º da M.Prov. 1539-35/97, o qual - independentemente de acordo ou convenção coletiva - faculta o funcionamento aos domingos do comércio varejista: medida cautelar deferida. A Constituição não faz absoluta a opção pelo repouso aos domingos, que só impôs "preferentemente"; a relatividade daí decorrente não pode, contudo, esvaziar a norma constitucional de preferência, em relação à qual as exceções - sujeitas à razoabilidade e objetividade dos seus critérios - não pode converter-se em regra, a arbítrio unicamente de empregador. A Convenção 126 da OIT reforça a argüição de inconstitucionalidade: ainda quando não se queira comprometer o Tribunal com a tese da hierarquia constitucional dos tratados sobre direitos fundamentais ratificados antes da Constituição, o mínimo a conferir-lhe é o valor de poderoso reforço à interpretação do texto constitucional que sirva melhor à sua efetividade: não é de presumir, em Constituição tão ciosa da proteção dos direitos fundamentais quanto a nossa, a ruptura com as convenções internacionais que se inspiram na mesma preocupação. (ADI 1.675 – MC, rel. Sepúlveda Pertence, DJ de 19.09.2003)
Portanto, num caso ou noutro, quer se atribua à Convenção 168, enquanto tratado internacional de direitos humanos, caráter constitucional ou supralegal, qualquer disposição legal ou infralegal que a contrarie está por ela revogada (se anterior ao início de sua vigência) ou é insubsistente por inconstitucional (se posterior).
Cabe salientar, ainda, que, conquanto a referida convenção faculte (arts. 4 e 5) aos Estados-parte formular ressalvas à sua aplicação, o Brasil não fez nenhuma. Diz o Decreto 2.682/1998, que a internaliza:
Art 1º. A Convenção nº 168 da OIT, relativa à Promoção do Emprego e à Proteção contra o Desemprego, assinada em Genebra, em 1º de julho de 1988, apensa por cópia ao Presente Decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém.
Assim, o que quer que conste da Convenção 168 só cederá à legislação interna se e quando esta contiver disposições mais favoráveis aos destinatários das garantias nela estipuladas (princípios da progressividade e da prevalência da norma mais favorável aos direitos humanos).
3 – Disposições da Convenção 168 sobre a duração do seguro-desemprego
Isto posto, vejamos o que diz a Convenção 168 sobre a duração do seguro-desemprego:
Artigo 19
1. As indenizações atribuídas em caso de desemprego completo e de suspensão de rendimentos como conseqüência de uma suspensão temporária de trabalho, sem término da relação de trabalho, deverão ser abonadas enquanto durarem essas contingências.
2. Não obstante, em caso de desemprego total:
a) a duração inicial do pagamento das indenizações previstas no artigo 15 poderá ficar limitada a vinte e seis semanas por cada caso de desemprego ou a trinta e nove semanas no transcurso de qualquer período de vinte e quatro meses;
b) se o desemprego continuar após a expiração desse período inicial de indenização, a duração do pagamento das indenizações, calculadas, se for apropriado, em função dos recursos de beneficiário e da sua família, em conformidade com as disposições do artigo 16, poderá ficar limitada a um período prescrito.
3. Se a legislação de um Membro prever que a duração inicial do pagamento das indenizações previstas no artigo 15 seja escalonada segundo a duração do período de qualificação, a média dos períodos previstos para o pagamento das indenizações deverá chegar a, pelo menos, vinte e seis semanas.
Artigo 15
1. Em caso de desemprego total e de suspensão de rendimentos como conseqüência de uma suspensão temporária do trabalho, sem término da relação de trabalho, se esta última contingência estiver coberta, deverão ser abonadas indenizações na forma de pagamentos periódicos calculados da seguinte forma:
a) quando essas indenizações sejam calculadas na base de contribuições pagas pela pessoa protegida ou no seu nome, ou em função de seus rendimentos anteriores, elas serão fixadas em pelo menos 50 por cento dos rendimentos anteriores dentro do limite eventual de tetos de indenização ou de rendimentos referidos, por exemplo, ao salário de um operário qualificado ou ao salário médio dos trabalhadores na região em questão;
Artigo 16
Não obstante as disposições do artigo 15, as indenizações pagas após o período inicial especificado no item a) do parágrafo 2 do artigo 19 e as indenizações pagas por um Membro cuja legislação satisfaça as condições do parágrafo do artigo 12 poderão ser fixadas levando em conta outros recursos dos quais o beneficiário e sua família possam dispor além de um limite fixado, de acordo com uma escala prescrita. Em qualquer caso, essas indenizações, em conjunto com quaisquer outros benefícios a que possam ter direito, deverão garantir para eles condições de vida saudáveis e dignas, de acordo com as normas nacionais.
Nos termos da Convenção 168, portanto:
- O seguro-desemprego deve durar, como regra, enquanto dure o desemprego (art. 19, 1);
- Como exceção, se autoriza aos Estados-parte fixar um período inicial de duração não menor que 26 semanas – isto é, 182 dias, 6 meses (art. 19, 2, “a”) – , em que o trabalhador desempregado auferirá uma prestação calculada conforme suas remunerações anteriores (art. 15, 1, “a”), como no Brasil, ou com base no salário mínimo ou salário médio do país (art. 15, 1, “b”) . Em caso de escalonamento da duração do benefício em função do tempo anterior de trabalho registrado (como se dá no Brasil), o que não poderá ser inferior a 6 meses é a média dos períodos de duração inicial do benefício (art. 19, 3);
- Caso a lei estipule a exceção supra referida, se assegura, ainda, ao trabalhador desempregado, após transcorrida a duração inicial mínima ou média de 6 meses de benefício calculado em razão das remunerações anteriores ou do salário mínimo, ou médio, uma prorrogação do seguro-desemprego, agora no valor de subsistência, pelo tempo que a lei definir (art. 19, 2, ”b”, c/c art. 16). Essa distinção tem lugar sobretudo em países nos quais – diversamente do que se dá no Brasil – o piso de proventos da Seguridade Social, entendido como valor legal de subsistência, não é igual ao salário mínimo;
Que a legislação a que se adstringe o Estado brasileiro (Lei 7.998) para estipular em 3 a 5 parcelas mensais a duração do seguro-desemprego dos trabalhadores em geral está em desacordo com tais determinações, o diz a própria OIT, mediante sua Comissão de Especialistas em Aplicação de Convenções e Recomendações (CEACR). Com igual ou maior razão, suas conclusões se aplicam ao que dispõe a LC 150 para as empregadas domésticas.
Em 1998, 2011 e 2013, a CEACR dirigiu ao Estado brasileiro solicitações diretas assinalando, com diferentes palavras em cada ocasião, o mesmo: que, no Brasil, “não se cumpre a disposição da Convenção que requer uma duração média do provento de 26 semanas, no mínimo” (1998), nem a que determina que, “em caso de continuação do desemprego depois do período inicial da prestação previsto no parágrafo 2, a” do art. 19, “esta deveria continuar a ser paga durante um período adicional” (2013).