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A evolução do conceito de crime político para a jurisprudência do STF e suas implicações para o indeferimento da extradição

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20/11/2018 às 15:30
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4 O CRIME POLÍTICO E O TERRORISMO PARA A JURISPRUDÊNCIA DO STF

Realizado o estudo sobre o instituto da Extradição e seus colaços, no primeiro capítulo, das teorias e critérios que visam conceituar os delitos políticos e o fenômeno terrorista, no segundo, passaremos, neste terceiro capítulo, à análise conceitual documentada nas decisões do Supremo Tribunal Federal Brasileiro.

Com tal escopo, portanto, tomaremos por base, o trabalho de conclusão de curso, requisito para a graduação em direito, de Ivan Cândido da Silva de Franco, apresentado à Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público.185 Esse trabalho, diferente do nosso, perquiriu a Construção do Conceito de Crime Político analisando, tão somente, as decisões colegiadas da Corte Constitucional Brasileira, a partir da constituição de 1988 até o ano de 2010. Além disso, a análise foi dividida em três períodos, de 1988 até 2004, de 2004 até 2008, e em 2009 à 2010, foram analisados dois casos que mais repercutiram na época.

Ciente da impossibilidade física de se analisar devidamente a matéria, dentro do limite a nós imposto, aliada a ideia de que o trabalho realizado prescinde ser refeito, uma vez que se trata, basicamente, de compilação dos votos ministrados, aproveitar-se-á para se extrair os casos paradigmáticos de cada período, para o Tribunal, de modo a se perceber a evolução conceitual.

4.1 O ENTENDIMENTO PACÍFICO CONSTRUÍDO COM O CASO FALCO186

Trata-se de pedido de extradição onde o governo argentino demandou ao Estado brasileiro, para julgamento do argentino Fernando Carlos Falco, estudante universitário, com 19 anos, à época.

A motivação do pedido reside no fato de, no dia 23 de janeiro de 1989, os integrantes do movimento intitulados de Todos por la Patria (MTP), supostamente, teriam invadido e tomado o Regimento de Infantaria 3 General Belgrano – RI-3 – onde também se instalava um esquadrão de cavalaria blindada – na localidade de La Tablada, Província de Buenos Aires.

Nesse episódio, que ficou conhecido como La Tablada, houve tiroteio e combate corporais, de que resultaram mortos e feridos de ambos os lados: militares e invasores.

O extraditando, acusado de integrar o grupo, teve também imputada a sua pessoa a coautoria de diversos delitos, como: homicídio; lesões corporais, leves, graves e gravíssimas, roubo de veículo automotor e privação ilegal e ilegítima da liberdade, todos agravados pelo cometimento de forma reiterada. Vale frisar que a todos os integrantes do movimento foram imputados a coautoria de tais delitos.

Especificamente à Fernando Falco, porém, imputava-se o Crime de asociación ilícita calificada (art. 201 bis, inc. a, b e d do Código Penal Argentino) e rebelión agravada (art. 226, parágrafo segundo do Código Penal Argentino).

Em interrogatório, realizado, no Brasil, o extraditando negou a participação com os fatos ocorridos em La Tablada, porém, não negou integrar o movimento, informando que o MTP não seria um movimento de luta armada, mas um movimento político de caráter pluripartidário e assistencialista.

Por fim, alegou que, por medo de mais um golpe militar fugiu para o Uruguai, e, mais tarde, para o Brasil, onde foi preso.

A defesa, obstantemente aos diversos delitos que se supunha a coautoria do extraditando, salientou que: “[...] o juiz argentino faz uma apaixonada descrição do ataque a La Tablada sem, no entanto, dizer exatamente de que maneira o ora extraditando tenha participação nos supostos crimes [...]”.187

O cerne da defesa, porém, residiu na invocação da proteção constitucional ao extraditando, uma vez que, seria o conjunto delitivo, eminentemente de matiz político. Arguiu-se que, no Código Penal argentino, as previsões de “associação ilícita qualificada” e “rebelião agravada”, ambos os delitos imputados ao extraditando, são crimes estritamente políticos, frisando que “[...] os referidos tipos penas, no direito brasileiro, não encontram correspondência na lei penal, mas, em termos, na Lei de Segurança Nacional”.188 E, além disso, que a motivação do ataque ao quartel seria eminentemente política, visando à manutenção do regime vigente contra temido golpe militar.

Por fim, ressaltou não se admitir, ao caso, qualquer entendimento que se configure assemelhar os fatos telados com atentados terroristas, sendo, portanto, irrelevante a utilização de força, uma vez que “[...] nenhuma rebelião, insurreição (que é crime político por excelência), se faz sem violência”.189

Quanto ao mérito, o Ministro Relator Sepúlveda Pertence, de plano, em seu voto, salienta, que a enfática negativa de haver, o extraditando, participado dos acontecimentos de La Tablada, ser questão de mérito, o que ultrapassa o âmbito de cognição do juízo da extradição passiva. Ao invocar decisão da própria Corte Suprema Argentina, declarou-se adepto do reiterado reconhecimento de que a associação ilícita possui natureza de crime político, “[...] em consonância, aliás, com o critério subjetivo de criminalidade política, que sempre dominou o direito argentino”.190

Para o ministro, ainda, “Igualmente manifesta é a natureza política da rebelión agravada, em que se capitulou, no caso, a tresloucada invasão do quartel de La Tablada”.191 No entanto, sem adentrar ao mérito, entende ser incontroverso o caráter político do Movimiento Todos por La Patria.

Ao analisar os crimes os quais são imputados à coautoria ao extraditando, o Ministro realizada grande digressão, que serviu para fundamentar seu posicionamento diante de um dos pontos mais polémicos do caso, o da existência ou não desses outros crimes comuns imputados, como autônomos.

Em suma, entendeu o Ministro se ajustar melhor ao caso, o entendimento de que se trata o crime da rebelión, da lei argentina, de crime único. De modo que, este crime, faz com que os outros delitos comuns (homicídios, e lesões graves) percam a sua identidade para constituírem resultados adicionais que aumentam especialmente a pena deste. Ou seja, para o Ministro, os homicídios e as lesões graves que ocorreram no contexto da insurreição, ainda que, na lógica do decreto de prisão, pudessem ser imputados ao dolo eventual do extraditando, são absorvidos pelo crime político, agravando a pena pelo resultado.

Antes de concluir, analisando a prevalência do caráter político do conjunto delitivo ou do caráter comum, acatar o Ministro a tese de defesa, no ponto em que refuta a hipótese prevista no § 3º, do art. 77. Nos seguintes termos:

[...] A noção de terrorismo está longe de ganhar contornos precisos [...]; mas parece claro que nela não se compreende o episódio de La Tablada, o ataque frontal a um estabelecimento militar, sem utilização de armas de perigo comum nem criação de riscos para a população civil.192

Quanto à incidência ou não do §1º do art. 77, na trilha do sistema da prevalência ou predominância, manifesta-se o Ministro no sentido de ter se convencido de que o fato, o acontecimento todo pelo qual se postula a extradição, é de natureza global e majoritariamente política.

Em seguida votaram, o Ministro Celso de Mello, o Ministro Célio Borja, o Ministro Carlo Madeira, o Ministro Octavio Gallotti, o Ministro Sydney Sanches, o Ministro Francisco Rezek e o Ministro Moreira Alves. E, com o votos, por unanimidade foi indeferida a extradição de Carlos Falco, por conta da vedação à extradição pelo cometimento de crimes políticos.

4.2 O CASO MEDINA193

Trata-se de pedido de extradição, julgado em 2007, onde postula o Governo da República da Colômbia, para o fim de instrução de investigação criminal, o extraditando Francisco Antônio Cadena Calazzos, também conhecido, dentre outras alcunhas, como Oliverio Medina.

O pedido de extradição estava composto por decreto de prisão preventiva, o qual o Estado requerente instruiu junto aos autos com tipificações que indicavam as autoria de dois crimes de homicídios agravado, um de oficial e outro de um suboficial das Forças Militares da Colômbia, ambos atribuídos ao extraditando, bem como o sequestro extorsivo e a delito de rebelião.

Frise-se também, que se apontava ao extraditando, o suposto exercício de funções diretivas nas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), e tal condição lhe teria permitido praticar atos de mote “terrorista”.

Preso no Brasil, o extraditando pediu reconhecimento da sua condição de refugiado ao CONARE, e foi deferida. Tal episódio se tratou do primeiro caso em que um extraditando, ao requerer ao órgão ministerial, teve seu pedido deferido.

Diante desta concessão administrativa (da condição de refugiado), como já se pôde observar no presente trabalho, a consequência direta, ao processo de extradição reside no dever de observância da previsão dos artigos 33 e 34 da Lei nº 9.474/97, o Estatuto dos Refugiados. Ao abordarmos os votos dos Ministros se voltará a esta questão, entretanto, vale mencionar que, nesses artigos está disposto que o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio.

Contudo, para concluir com os fatos, em interrogatório, realizado quanto ao pedido extradicional, o extraditando afirmou, em síntese, que imputações realizadas a ele não eram verídicas; que sua relação com as FARC teve início em 1980 com o objetivo de auxiliar no processo de paz de seu país; que por conta do movimento político “União Patriótica”, foi perseguido e teve de deixar o país em 1996, e foi assim que veio ao Brasil, para iniciar nova vida. Por fim, alega nunca ter se envolvido com ações armadas, pois, pelo contrário, sua atuação sempre foi como conciliador. Além disso, alegou que o Presidente da Colômbia o deseja transformar em troféu, com o objetivo de se reeleger.

Quanto aos votos, o ministro Relator Gilmar Mendes, antes de adentrar ao mérito analisou questão de ordem, o da aplicação ou não dos artigos 33 e 34 do Estatuto dos Refugiados.

O Ministro sustentou, em síntese, que a Corte deve interpretar tais dispositivos de modo a não obstar a análise do mérito da extradição pelo Supremo Tribunal Federal.

Para o Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal é quem tem competência para definir o que é Crime Político, e não decisão administrativa do CONARE. Cita o ministro, que a própria Constituição Federal (CF, art. 102, I, g) é explicita, quanto a isso. Nesse mesmo sentido, cita o Estatuto do Estrangeiro, que no § 2º, do art. 77, da Lei 6.815/1980194, estabelece as exceções à concessão da extradição.

Ademais, ao sustentar a proximidade conceitual entre asilo político e refúgio, o Ministro cita casos195 em que a Corte em situação similar à descrita no caso em tela já havia decidido que a concessão de asilo político, territorial ou diplomático, concedido pelo Poder Executivo Brasileiro, tão somente, não obstaria o juízo de extraditabilidade. Por fim, propõe a mesma interpretação conferida ao asilo político ao caso do ora extraditando.

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No entanto, a tese construída pelo Ministro Gilmar Mendes, vale adiantar, foi vencida.

Em seguida, proferiu voto o Ministro Sepúlveda Pertence, e em seu voto, por outro lado, afastou o entendimento quanto à inconstitucionalidade dos artigos 33 e 34 do Estatuto do Estrangeiro.

Para o Ministro, “[...] o deferimento do refúgio é questão da competência política do Poder Executivo, condutor das relações internacionais do País.”196

Tal entendimento, portanto, culminou na extinção do processo. E mesmo entendendo quanto ao reconhecimento da competência governamental, para decidir sobre o reconhecimento da condição de refugiado, ante a eventualidade desta posição ser vencida, fez constar em seu voto o entendimento de não haver no caso em tela caráter terrorista que deva ser conferida aos delitos imputados ao extraditando.

Em seguida, o Ministro Joaquim Barbosa, concordou plenamente com o voto do Ministro Sepúlveda Pertence, assim como os que o precederam na votação.

Contudo, por ampla maioria o processo extradicional não foi nem conhecido pelo Tribunal.

Antes de prosseguir ao próximo tópico, urge esclarecer um ponto importante.

O caso Medina, julgado pela Corte, no sentido de sequer realizar análise de mérito, não confere depreciada importância ao nosso estudo, uma vez que, terá papel fundamental para a contraposição desta decisão com a construída no caso Battisti. De modo a enaltecer a percepção contida no trabalho de Ivan Cândido, que tomamos por base, neste estudo, ressaltar-se-á a de mudança de entendimento da Corte, ao decidir extraditar de Cesare Battisti, indo contra os precedentes da corte; o que nos empenharemos em demonstrar a seguir.

4.3 AS LINHAS GERAIS DO CASO BATTISTI197 E A CONTRAPOSIÇÃO AO CASO MEDINA

Trata-se de extradição executória do nacional italiano Cesare Battisti. O pleito se baseia em condenação definitiva do ora extraditando, por decisão da Corte de Apelações de Milão, à pena de prisão perpétua, por conta da prática de quatro homicídios, que teriam sido cometidos no anos finais da década de 1970.

O extraditando, em 18 de janeiro de 2008, por conta do pedido de extradição, foi interrogado, e em síntese, negou a autoria dos crimes, responsabilizando o grupo político, de extrema esquerda italiana, o qual não mais integrava, à época dos fatos. Além disso, quanto às penas impostas a si, na Itália, alegou violação dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, tendo em vista que não pôde comparecer e nem se defender em nenhum dos julgamentos.

Ponto importante do acórdão, mas que não nos atentaremos no presente estudo, pois foi muito discutido entre os Ministros do Supremo, ocorreu em consequência do extraditando ter solicitado reconhecimento da condição de refugiado. A princípio, o pedido foi negado perante o CONARE198. Com o recurso administrativo ao Ministro da Justiça, posteriormente, tal condição foi reconhecida. E diante da concessão administrativa, a consequência, a priori, deveria ser tal qual a determinada no caso Medina, ou seja, a extinção do processo de extradição.

A essência da questão, em suma, girava em torna da revisão, ou não, do ato administrativo, que concedeu o refúgio pelo Supremo. Tratou-se, esta, de questão preliminar no processo de extradição, até que concluíram os Ministros que o ato administrativo, que reconheceu a condição de refugiado ao ora extraditando, praticado pelo Ministro da Justiça, seria passível de revisão pela Corte Constitucional, diferente do decidido no caso Medina.

Quanto ao mérito, propriamente, o Ministro Relator Cezar Peluso proferiu o voto guia da matéria. O voto do Ministro, que posteriormente foi acompanhado pela maioria da Corte, fundou-se na tese de que a revisão do ato administrativo, poderia ser realizada uma vez que estaria sujeita ao controle de legalidade. Por consequência disso, a extradição, diferente do que ocorreu no caso Medido, poderia ter seu mérito analisado.

Depreende-se, portanto, que o Ministro Cezar Peluzo, conforme já mencionamos diversas vezes, e conforme salienta o trabalho de Ivan Candido, votou em sentido diametralmente oposto ao que havia decidido no caso Medina.199

Alguns dos argumentos trazidos no voto do Ministro Cezar Peluso, portanto, devem ser invocados.

De plano, em seu voto, o Ministro Cezar Peluso refuta a menção da defesa de que todas as condenações foram decididas à revelia, na Itália, uma vez que não haveria relevo algum em tal fato, conforme disposto na alínea “a”, do art. 5 do Tratado de Extradição Brasil-Itália, e pelo entendimento de que o exercício de defesa jurídica se trata de faculdade conferida ao extraditando.

Explicou o Ministro que após analisar todos as irresignações do extraditando, não apenas no âmbito do judiciário italiano, bem como no francês e no da Corte Internacional, que se convenceu de não haver “[...] nenhuma dúvida de que lhe foram assegurados todos os direitos de defesa [...]”200. E que, além disso, não caberia ao processo extradicional brasileiro à revisão de sentenças estrangeiras.

No que concerne à caracterização dos delitos como crime político, propriamente, “[...] o voto do ministro não destoa do que vinha sendo construído pela Corte”201. Uma vez que, utilizando-se, claramente, dos critérios mencionados neste estudo, o Ministro, após analisar o conjunto delitivo, ou seja, os homicídios, os quais o extraditando fora condenado, concluiu por verificar absoluta carência de motivação política. Por outro lado, ademais, observou, de modo veemente, a premeditação, a violência e a grave intimidação social, o que não se amoldaria ao modelo conceitual de delito político.

Ademais, para o ministro, não se teria como caracterizar as ações homicidas como políticas, uma vez que foram praticas em contexto diversos, todos à margem dos propósitos legítimos de tomada do Estado.

Em sentido divergente, ao voto do Ministro Cezar Peluso, votaram o Ministro Marco Aurélio e o Ministro Eros Grau, especificamente quanto à revisão do ato administrativo pelo judiciário e a caracterização política dos delitos.

Perfunctoriamente, urge frisar, alguns dos argumentos vencidos, proferidos pelo Ministro Marco Aurélio.

Para o Ministro Marco Aurélio, a natureza do ato de reconhecimento de refúgio seria ato político, passível de análise, apenas excepcionalmente, quando houvesse desvio de finalidade.202

Suscita também que a Corte nunca concluiu por apreciar, “[...] no bojo do próprio processo de extradição, o acerto ou o desacerto de ato administrativo a implicar o reconhecimento da condição de refugiado”.203 E, ao citar o caso Medina, julgado em 2007, apenas dois anos antes, sustenta que o enfoque dado em 2007 foi o que sempre prevaleceu no Supremo, e atenta ao fato de que “[...] sem mudança, especialmente, normativo-constitucional, parte-se para visão diametralmente oposta [...]”.204

Noutro giro, quanto à caracterização dos delitos como políticos, no mérito, ressalta o Ministro o contexto histórico italiano em que os homicídios ocorreram:

No caso, os crimes perpetrados datam da década de 70. A Itália vivia quadra conturbada, com a existência de diversos movimentos subversivos à ordem estatal. De um lado, pela esquerda, O.C.C. (Formações Comunistas Combatentes) e P.A.C. (Proletários Armados para o Comunismo), Brigadas Vermelhas e N.A.P (Núcleo dos Proletários Armados). De outro, pela direita, “Terza Posizione”, “Avanguardia Nazionale” e a “Ordine Nero”. Isso levou até mesmo a advertências de organismo internacionais quanto à repressão que estaria sendo implementada, com o abandono de regras tradicionais referentes à convivência social, à balizas do devido processo legal e aos valores humanitários.205

Cita, além disso, o Ministro, que não ocorreram apenas os quatros homicídios à época, mas diversos crimes resultantes do conflito entre tais movimentos e o Estado Italiano.

Resta evidente que a percepção do Ministro Marco Aurélio foi absolutamente diferente da que percebeu o Ministro Cezar Peluso, quanto ao contexto em que ocorreram o atos praticados pelo extraditando.

Nesse mesmo sentido, prevendo, o Ministro, a hipótese de ser suplantado o ato que concedeu o refúgio, invocou pretérito entendimento da Corte, quanto à associações ilícitas com finalidade subversiva, de sempre reconhecer nestas associações a natureza política, “[...] em consonância com o critério subjetivo, de criminalidade política, que sempre dominou o direito argentino”.206

Ultrapassada a análise do Caso Battisti, e absolutamente en passant, vale citar, a conclusão em que Ivan Cândido chegou em seu trabalho, que tomamos por base. Ao acarear os entendimentos dos Ministros do Supremo, ficou muito claro que bastam alguns meses para que alguns Ministros possam se contradizer.

O que pode ser observado, por exemplo, quando os Ministros utilizam do critério de análise contextual em que foram praticados os delitos sujeitados à caracterização, ou não, como políticos. Frise-se, este caso Battisti, em que o Ministro Relator Peluso refutou de planos alguns argumentos da defesa, como o cerceamento de defesa, uma vez que, para o Ministro, a Itália se tratava de Estado Democrático de Direito. Enquanto, que, por outro lado, no voto do Ministro Marco Aurélio, a percepção contextual era diametralmente oposta.

Antes do próximo tópico, invoca-se um novo elemento observado em trecho do voto do Ministro Marco Aurélio. O atenta à Corte para o empenho das autoridades italianas em reaver o extraditando, ao [...] estampar duvidosa verdade real quanto à autoria, porque fruto da controvertida delação premiada [...].207 Para o Ministro, ainda:

[...] cumpre notar que, se a situação fosse inversa, é improvável que a Itália, situada no dito Primeiro Mundo, viesse a deferir a extradição de brasileiro que, no regime anterior e em território nacional, tivesse operado como fez o extraditando. A configuração do crime político, para mim escancarada, é mais uma das matérias prejudicial à sequência do exame dos temas envolvidos na espécie.208

Tal argumento, apresentado pelo Ministro, subsumi-se, perfeitamente, a conjecturação que nos acometeu com o desenvolvimento dos estudos aqui propostos. A ideia de que a garantia constitucional, que determina a proteção do criminoso político, pode ser mitigada de acordo com o Estado que requere a Extradição, é o que salienta o Ministro Marco Aurélio, e o que, para nós, é a única saída ao se questionar a proferida decisão, contraditória, ao que se vinha decidindo.

Noutro giro, antes de se adentrar ao próximo tópico é preciso que se explique o critério adotado. Uma vez que, superado os casos já analisados neste capítulo, como já dito, até a data de 2010, tomou-se por base os principais casos paradigmáticos remontados no trabalho de Ivan Cândido, urge selecionar os últimos casos selecionados à matéria que foram julgados pelo STF, em colegiado.

Para tanto, a partir desses critérios, no setor de pesquisa de jurisprudência do site do STF, a opção de busca, “crime adj político”, verificou 11 acórdãos.209

Com efeito, ao se realizar análise dos casos, verificou-se não haver maiores discussões acerca do crime político, muito embora, tenham sido suscitados, em todos os casos, pela defesa. Os Ministros, na maioria dos casos pesquisados, ativeram-se em argumentaram no sentido de não os verificar caracterizados, sem maiores considerações. Com exceção, no entanto, do caso de extradição do argentino Norberto Tozzo, onde, muito embora não se tenha reconhecido a criminalidade política dos delitos imputados, fez-se discussão interessante, no caso.

4.4 O CASO NORBERTO TOZZO210 E A APLICAÇÃO DA DETERMINAÇÃO CONTIDA NO NOVO ACORDO DE EXTRADIÇÃO ENTRE OS PAÍSES PARTES DO MERCOSUL AO CONCEITO DE CRIME POLÍTICO

Trata-se de pedido de extradição formulado pela República da Argentina, objetivando julgamento do argentino Norberto Raul Tozzo, ex-militar, acusado de participar do massacre de Margarita Belém, cidade da província do Chaco. Os fatos ocorreram em 1976, resultando na morte de 12 (doze) pessoas e no desaparecimento de outras 4 (quatro).211

No pedido do Estado Argentino, consta as imputações, ao Extraditando, das práticas dos crimes de:

[...] homicídio agravado por ale[i]vosia e pelo número de participantes e desaparecimento forçado de pessoas em concurso real, previstos e sancionados pelo[s] artigo[s] 80, inciso 2º e 6º, 141, 142, inciso 5º [e] 55, todos do Código Penal Argentino.212

Realizado o interrogatório, no Rio de Janeiro, onde o extraditando se encontrava preso, oportunamente apresentou também defesa escrita, que, em suma, alegou que:

[...] a) “a documentação não expõe a real participação do extraditando no episódio de Margarita Belén” [...] c) “esta extradição trata-se de um tema político”; d) a “motivação das prisões dos cidadãos mortos e desaparecidos foi unicamente política”; [...] h) a “[p]ossibilidade do crime ser considerado Militar”; i) “[e]vidente perseguição política por parte do governo argentino a militares da extinta ditadura militar, pela total violação de direito humanos em relação aos Militares quanto à condição de prisioneiros”; [...]. (Negrito nosso).213

Quanto ao mérito, neste caso, o voto decisivo no acórdão foi proferido pela Ministra Relatora Carmem Lúcia.

Alegou a defesa, como citado acima, que a participação do extraditado não se demonstraria na documentação apresentada pelo Estado Argentino, no entanto, não foi esse o entendimento da relatora, que afastou de plano tais defeitos formais.214

Quanto aos delitos, propriamente, a Ministra Relatora acatou a tese da defesa quanto à prescrição do crime de homicídio. Com tal posição, por conseguinte, restou apenas a análise de juízo quanto ao crime de “desaparecimento forçado”, no que concerne a dupla tipicidade, no ordenamento jurídico brasileiro, e o caráter político, suscitado ao conjunto delitivo.

A ministra, portanto, reconheceu haver dupla tipicidade com o crime de sequestro qualificado, previsto no ordenamento jurídico brasileiro, no entanto, afastou “[...] a alegação do extraditando de estar-se diante de situação configuradora de crime político ou militar”.215 E realçou o seu entendimento, em prejuízo do argumento da defesa, de que governo argentino praticaria perseguição política pelo contra todos os militares da extinta ditadura, uma vez que, para a Ministra:

A república da Argentina vive situação de normalidade democrática, não se podendo sequer aventar com validade a alegação e que o Poder Judiciário argentino pudesse ser arbitrário ou manipulado, pois o caráter democrático e garantista do ordenamento jurídico que vigora naquele Estado é notório e reconhecido a partir da interpretação dos princípios e das regras vigentes naquele país.216

A caracterização do conjunto delitivo como de natureza eminentemente comum, para a Ministra, teve fundamento (no que para o nosso trabalho se trata de novidade), no Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul, aprovado pelo Decreto Legislativo nº 605, de 11.12.2003, e promulgado pelo Decreto nº 5.867, de 3.8.2006.

Cita, a Ministra para tanto, as disposições dos arts. 5º e 6º do Acordo, em especial o inciso II, da alínea c do item 2 do artigo 5º, do Acordo, que enfatiza a disposição do § 3º do Estatuto do Estrangeiro, quanto aos crimes de sequestro de pessoas. Este parágrafo, frise-se, já mencionamos, no presente trabalho, ao abordarmos o instituto da Extradição.

Na disposição estatutária, a lei determina que a Corte do Supremo poderia deixar de considerar como políticos os delitos de sequestro de pessoas, dentre outros arrolados. Já no Acordo entre os Países do Mercosul, a determinação legal, entre os países signatários, passou da regra geral estatutária para a determinação de que “em nenhuma circunstância” se poderá considerar como políticos os delitos de sequestro de pessoas, dentre outros trazidos nos incisos seguintes.

Depreende-se, portanto, que, o Acordo Extradicional retira do âmbito de análise do julgador a possibilidade de caracterização como Político o crime de sequestro de pessoas, o que, sem dúvida, trata-se de evolução conceitual legal do que seja Crime Político. Importante, salientar, que tal regra tem eficácia apenas entre os países partes do Mercosul.

Em seguida, votaram os Ministros Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, sendo o voto divergente o do Ministro Marco Aurélio, que indeferiu a extradição, por motivo formal,217 logo, matéria de segundo plano para o presente trabalho.

Conclui a Corte, portanto, em deferir a extradição, sob a condição de que o Estado Argentino se comprometesse em não punir o extraditando pelo crime de homicídio, uma vez que o delito foi alcançado pela prescrição. E quanto ao crime de “desaparecimento forçado de pessoas”, considerou a dupla tipicidade do crime de “sequestro qualificado”, decidindo, a Corte, que, caso sobrevenha a condenação do ex-militar, deve o governo argentino observar a detração do tempo de prisão, ao qual o extraditando foi submetido no Brasil, e o limite de 30 anos à pena de prisão.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LARA, Egilson Diego Beluzzo. A evolução do conceito de crime político para a jurisprudência do STF e suas implicações para o indeferimento da extradição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5620, 20 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65229. Acesso em: 24 abr. 2024.

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Prof. Orientador Esp. Julian de Freitas Salvan

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