Em fevereiro de 2016 o Supremo Tribunal Federal deu início ao entendimento jurisprudencial de que o início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofenderia ao princípio constitucional da presunção de inocência (Habeas Corpus nº 126292).
Como é de sabença geral, o princípio constitucional da presunção de inocência encontra assento no Art. 5º, Inciso LVII, de nossa Constituição Federal, redigido nestes termos:
“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
A respeito deste princípio constitucional, com inegável maestria, leciona o mestre Fernando da Costa Tourinho Filho:
“O princípio remonta o art. 9º. da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada em Paris em 26-8-1789 e que, por sua vez, deita raízes no movimento filosófico-humanitário chamado ‘Iluminismo’, ou Século das Luzes, que teve à frente, dentre outros, o Marques de Beccaria, Voltaire e Montesquieu, Rousseau. Foi um movimento de ruptura com a mentalidade da época, em que, além das acusações secretas e torturas, o acusado era tido como objeto do processo e não tinha nenhuma garantia. Dizia Beccaria que ‘a perda da liberdade sendo já uma pena, esta só deve preceder a condenação na estrita medida que a necessidade o exige’ (Dos delitos e das penas, São Paulo, Atena Ed.,1954, p.106).
Há mais de duzentos anos, ou, precisamente, no dia 26-8-1979, os franceses, inspirados naquele movimento, dispuseram da referida Declaração que: ‘Tout homme étant présumé innocent jusqu’à cequ’il ait été déclaré coupable; s’ il est jugé indispensable de I’ arrêter, toute rigueur qui ne serait nécessaire pour’s assurer de sá persone, doit être sévèrement reprimée par la loi’ (Todo homem sendo presumidamente inocente até que seja declarado culpado, se for indispensável prendê-lo, todo rigor que não seja necessário para assegurar sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei).
Mais tarde, em 10-12-1948, a Assembléia das Nações Unidas, reunida em Paris, repetia essa mesma proclamação.
Aí está o princípio: enquanto não definitivamente condenado, presume-se o réu inocente.” (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 29-30).
Pois bem. Desejando seguir os passos do STF, o Parlamento brasileiro, através de proposta de emenda à Constituição (PEC), intenta promover a alteração na redação do Art. 5º, Inciso LVII, de nossa Constituição Federal, objetivando permitir a prisão em segunda instância, mitigando-se, assim, o alcance dessa garantia fundamental do cidadão.
Noutras palavras, o Congresso Nacional planeja alterar o significado do princípio da presunção de inocência construído pela Assembleia Nacional Constituinte em 1988.
A PEC nº 410 foi assim apresentada na Câmara dos Deputados:
“Art. 1º O inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 5º. (...)
LVII – ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso.
Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.”.
Pois bem. O princípio constitucional da presunção de inocência insculpido no Art. 5º, Inciso LVII, encontra-se no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, no Capítulo reservado aos “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”.
Bem conhecedor das turbulências e crises recidivantes próprias da República brasileira, a Assembleia Nacional Constituinte consignou no texto da Carta Maior, em seu Art. 60, §4º, IV:
“§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(...)
IV - os direitos e garantias individuais.”.
Mais claro que isso, só se o legislador constituinte originário desenhasse ao seu intérprete.
A essas limitações materiais ao poder de reforma da Constituição de um Estado denominamos de cláusulas pétreas. Nos Estados Unidos são chamadas de “entrenchment clauses” (cláusulas de entrincheiramento).
Destarte, sem rodeios ou apelo a uma retórica cansativa, somente outra Constituição, através de outra Assembleia Nacional Constituinte, poderá alterar o Art. 5º, Inciso LVII. Aliás, o mesmo raciocínio aplica-se a todo o Título dos Direitos e Garantias Fundamentais deste mesmo Art. 5º, assim como as matérias relacionadas à (a) forma federativa de Estado, (b) o voto direto, secreto, universal e periódico e (c) a separação dos Poderes.
O “x” da questão é que o STF, ao permitir a prisão em segunda instância, com as devidas e honrosas vênias aos seus Eminentes Ministros, legislou. E, mais do que isso, legislou sobre matéria de cláusula pétrea (direitos e garantias individuais). Fez o que o Parlamento do Brasil não pode fazer. Ao STF compete “precipuamente, a guarda da Constituição” (Art. 102), jamais a deliberação, a conformação de jurisprudência, abolindo os direitos e garantias individuais (Art. 60, §4º, IV).
O STF pode muito, quase tudo, mas não pode tudo. A velha Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, hoje chamada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, traça os limites dos juízes em seus julgamentos:
“Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
Em tema de presunção de inocência não temos omissão legislativa. Nem por parte do Constituinte originário (Art. 5º, Inciso LVII), nem por parte do legislador ordinário (CPP: “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”).
Uma vez admitida, aprovada e promulgada proposta de emenda a abolir os direitos e garantias individuais ou qualquer outra cláusula pétrea, na vigência da atual Constituição de 1988, tudo será possível ao Estado brasileiro, desde a derrogação dos Dez Mandamentos entregues ao profeta Moisés até a rediscussão da lei natural da gravitação universal da Terra descoberta pelo físico inglês Isaac Newton.