Sumário: 1 INTRODUÇÃO; 2 DISTINÇÕES NECESSÁRIAS: ASTREINTES, PERDAS E DANOS E CLÁUSULA PENAL; 3 LIMITES PARA O VALOR DA MULTA E FIXAÇÃO DE TETO; 4 EXECUÇÃO DO VALOR DA MULTA; 5 TERMO A QUO PARA EXECUÇÃO DA MULTA; 6 PRAZO PARA CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO, TERMO A QUO E INCIDÊNCIA DA MULTA; 7 HIPÓTESES DE CABIMENTO; 8 CREDOR DAS ASTREINTES; 9 PERIODICIDADE DA MULTA; 10 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO; 11 FIXAÇÃO E MODIFICAÇÃO EX OFFICIO DA MULTA; 12 ALTERAÇÃO E EXCLUSÃO DA MULTA; 13 FIXAÇÃO DE ASTREINTES EM RELAÇÃO À FAZENDA PÚBLICA; 14 ASTREINTES E DEVERES DE FAZER E DE NÃO FAZER DE NATUREZA NÃO OBRIGACIONAL; 15 CONSIDERAÇÕES FINAIS
1 INTRODUÇÃO
A expressão astreintes têm origem no direito francês e representa uma espécie de multa processual. Na verdade, as astreintes configuram um mecanismo de execução indireta, cuja finalidade é coagir o devedor ao cumprimento da obrigação mediante a imposição de multa pecuniária.
Liebman definiu a referida multa como “a condenação pecuniária proferida em razão de tanto por dia de atraso (ou por qualquer unidade de tempo, conforme as circunstâncias), destinada a obter do devedor o cumprimento de obrigação de fazer pela ameaça de uma pena suscetível de aumentar indefinidamente”[1].
As astreintes constituem medida destinada a obrigar o devedor ao cumprimento da obrigação, sendo devidas independentemente de qualquer dano porquanto com este não guardam correlação. Constitui, na verdade, um mecanismo destinado a constranger o executado ao cumprimento da obrigação[2].
Destaque-se que, regra geral, as astreintes são fixadas por dia de atraso. Mas, nada obsta que seja utilizada outra medida de tempo. O que não se pode perder de vista é que as astreintes têm por finalidade atuar sobre o ânimo do requerido, coagindo-o, para que ele cumpra a obrigação.
A referida multa processual não encontrava tratamento meticuloso no Código de Processo Civil de 1973. Mas com o advento do Código de Processo Civil de 2015 foi inaugurado um novo marco no sistema processual civil brasileiro, cujo escopo precípuo é atender aos interesses das mais diversas categorias envolvidas no processo judicial, primando por valores como a segurança jurídica, a efetividade e a celeridade processuais. O mencionado diploma normativo concede tratamento detalhado para as astreintes, ao discipliná-las no art. 537.
2 DISTINÇÕES NECESSÁRIAS: ASTREINTES, PERDAS E DANOS E CLÁUSULA PENAL
Como já salientando, as astreintes constituem espécie de multa processual, que tem a finalidade de constranger o requerido ao cumprimento da obrigação. Cite-se, como exemplo, situação na qual o magistrado determina que o executado pinte um quadro em dez dias, sob pena de, não o fazendo, incidir uma multa diária fixada em cem reais.
As perdas e danos, a seu turno, representam a soma dos lucros cessantes (dano negativo) com os danos emergentes (dano positivo), isto é, a soma daquilo que o prejudicado razoavelmente deixou de ganhar com o que efetivamente perdeu. As perdas e danos são tratadas no Código Civil, nos arts. 402 usque 405. Corrobora a distinção existente entre as astreintes e as perdas e danos o disposto no art. 500 do CPC, que estabelece que “A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa fixada periodicamente para compelir o réu ao cumprimento específico da obrigação”.
Saliente-se que enquanto as astreintes têm finalidade coercitiva, ou seja, têm a finalidade de constranger o demandado a cumprir a obrigação, as perdas e danos têm finalidade ressarcitória ou reparatória. Por sinal, o Superior Tribunal de Justiça já assentou que “As astreintes não têm caráter punitivo, mas coercitivo e tem a finalidade de pressionar o réu ao cumprimento da ordem judicial” (AgRg no AREsp 419.485/RS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 04-12-2014, DJe 19-12-2014). Outro traço distintivo que pode ser estabelecido é que as astreintes estão previstas no Código de Processo Civil, enquanto as perdas e danos têm disciplina no Código Civil[3].
Astreintes também não se confundem com a cláusula penal[4], sendo esta uma cláusula inserta no contrato para estabelecer um valor para o caso de descumprimento culposo da obrigação. A cláusula penal é tratada nos arts. 408 a 416 do Código Civil, valendo menção para o art. 408 do citado código que dispõe “Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora”.
A rigor, a cláusula penal representa uma prefixação do valor das perdas e danos. Por outras palavras: a cláusula penal é a própria mensuração das perdas e danos, mas cujo valor foi inserto em um dispositivo contratual. Da mesma forma que as perdas e danos, a cláusula penal não se confunde com as astreintes.
É possível cumular-se a cobrança das astreintes, perdas e danos e cláusula penal? Em princípio, não, sob pena de haver bis in idem uma vez que a cláusula penal é a própria fixação prévia das perdas e danos. Assim, somente é possível cobrar astreintes com o valor das perdas e danos ou astreintes com o valor da cláusula penal. Contudo, havendo previsão contratual expressa autorizando a cobrança do valor da cláusula penal sem prejuízo do valor das perdas e danos, será possível cumular a cobrança das duas verbas. Essa possibilidade decorre do disposto no art. 416, parágrafo único do Código Civil, que prevê que “Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente”.
3 LIMITES PARA O VALOR DA MULTA E FIXAÇÃO DE TETO
O valor das astreintes não está limitado ao valor da obrigação principal. Assim,é possível que a multa incida e que o seu valor venha a ultrapassar o valor da obrigação principal. Por sinal, o enunciado 96 da Primeira Jornada de Direito Processual Civil prevê que “Os critérios referidos no caput do art. 537 do CPC devem ser observados no momento da fixação da multa, que não está limitada ao valor da obrigação principal e não pode ter sua exigibilidade postergada para depois do trânsito em julgado”. Destaco que, a rigor, o que está limitado ao valor da obrigação principal é a cláusula penal. Isso, contudo, se dá em razão de vedação legal, em particular em razão do disposto no art. 421 do Código Civil, in verbis: “o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal”.
Malgrado a ausência de limitação valorativa, é evidentemente que o valor total das astreintes não deve se distanciar muito do valor da obrigação principal, sob pena de proporcionar enriquecimento sem causa do credor da multa. Por sinal, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “o total devido a esse título não deve distanciar-se do valor da obrigação principal” (AgRg no Ag 1220010/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 15-12-2011, DJe 01-02-2012).
Por tal motivo, a jurisprudência tem admitido que o Julgador, ao fixar o valor da multa, desde logo estabeleça um teto para o valor total da incidência daquela. Assim, estabelece-se, por exemplo, uma multa de cem reais por dia, limitada ao valor total de dez mil reais. Sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “cabe fixar um teto máximo para a cobrança da multa, pois o total devido a esse título não deve se distanciar do valor da obrigação principal” (AgInt no AREsp 976.921/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 09-03-2017, DJe 16/03/2017), sendo também assentado que “Ao limitar o valor máximo do somatório das astreintes, o magistrado intenta evitar o enriquecimento sem causa ou um abuso em seu descumprimento” (AgRg no AREsp 587.760/DF, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 18-06-2015, DJe 30-06-2015).
4 EXECUÇÃO DO VALOR DA MULTA
A cobrança do valor total da multa deverá ser efetivada por meio do procedimento executivo previsto no art. 523, do Código de Processo Civil, ainda que a fixação das astreintes tenha sido realizada em provimento liminar. Saliento que tal cumprimento poderá ser feito nos mesmos autos ou caderno processual apartado, valendo mencionar que esta última possibilidade conta com a vantagem de evitar eventual tumulto processual. Não se afigura correta a instauração de processo executivo autônomo porque aquela multa é fixada em decisão judicial, não configurando título executivo extrajudicial, mas sim título judicial, conforme prevê o art. 515, inc. I, do CPC.
Assim, caberá ao credor da multa requerer a intimação do devedor para pagá-la, no prazo de quinze dias, sob pena de, não o fazendo, incidir multa de dez por cento e honorários advocatícios no mesmo percentual (art. 523, §1º, do CPC), podendo o executado opor-se à execução do título judicial por meio de impugnação ao cumprimento de sentença (art. 525 do CPC).
5 TERMO A QUO PARA EXECUÇÃO DA MULTA
Outra questão de grande relevo pragmático diz respeito ao termo a quo para cobrança das astreintes. Sob a égide do CPC/1973, a matéria foi objeto de profunda divergência doutrinária[5] notadamente em razão da ausência de regulamentação específica da multa naquela Codificação.
O Superior Tribunal de Justiça ao julgar recurso especial repetitivo sob a égide do CPC anterior assentou o entendimento de “A multa diária prevista no § 4º do art. 461 do CPC [de 1973], devida desde o dia em que configurado o descumprimento, quando fixada em antecipação de tutela, somente poderá ser objeto de execução provisória após a sua confirmação pela sentença de mérito e desde que o recurso eventualmente interposto não seja recebido com efeito suspensivo” (REsp 1200856/RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Corte Especial, julgado em 01-07-2014, DJe 17-09-2014).
O novo Código de Processo Civil, contudo, solucionou a matéria de forma distinta porque, malgrado no art. 537, §4º, tenha previsto que “A multa será devida desde o dia em que se configurar o descumprimento da decisão e incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado”, no §3º daquele mesmo preceptivo estabeleceu que “A decisão que fixa a multa é passível de cumprimento provisório, devendo ser depositada em juízo, permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte”. Assim, tenho que não se afigura necessário nenhuma confirmação em sentença da multa fixada em liminar para viabilizar a execução das astreintes, devendo ser superado o precedente vinculante construído pelo Superior Tribunal de Justiça acima colacionado, mediante o emprego da técnica do overruling.
Nessa ordem de ideias, entendo que não há necessidade de se aguardar o trânsito em julgado da sentença ou mesmo o julgamento do recurso interposto em face da decisão que fixou a multa para que se possa requerer a execução dela. Descumprida a determinação judicial com o transcurso do lapso temporal estabelecido na decisão judicial, a multa incidirá e o seu beneficiário poderá desde logo executá-la. O termo a quo para incidência da multa, portanto, é a data em que foi finalizado o prazo judicial para cumprimento da ordem judicial. Deste modo, se o Juiz fixou dez dias para cumprimento da ordem judicial, sob pena de multa diária de quinhentos reais, a partir do décimo primeiro dia haverá possibilidade de cobrança da multa.
A propósito da matéria, a doutrina de qualidade afirma que “o legislador, aparentemente, encontrou uma solução que prestigia a efetividade e a segurança jurídica. A executividade imediata reforça o caráter de pressão psicológica da multa porque o devedor sabe que, descumprida a decisão em tempo breve, poderá sofre desfalque patrimonial. Por outro lado, ao exigir para o levantamento de valores em favor do exequente, o trânsito em julgado, o legislador prestigia a segurança jurídica”[6].
6 PRAZO PARA CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO, TERMO A QUO E INCIDÊNCIA DA MULTA
Desde logo, deve ser ponderado que não é correto o Magistrado fixar como termo inicial para incidência da multa a data da prolação da decisão, sob pena de o réu, ao ser intimado para cumprir a obrigação, já ter a obrigação de pagar multa, sem que a ele tenha sido dado um prazo para o cumprimento obrigacional. Por sinal, o art. 537, caput, in fine, do CPC estabelece que deve ser determinado “prazo razoável para cumprimento do preceito”, devendo o Julgador estabelecer o respectivo prazo levando em consideração os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
A propósito, o Superior Tribunal de Justiça já assentou que “Não fixado prazo para o cumprimento da obrigação de fazer, não cabe a incidência da multa cominatória uma vez que ausente o seu requisito intrínseco temporal” (AgInt no REsp 1361544/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 03-10-2017, DJe 05-10-2017).
Questão de alta indagação refere-se à forma de contagem do prazo para cumprimento da obrigação, se em dias úteis ou em dias corridos. Como regra, os prazos fixados em dias são contados em dias úteis, em conformidade com o art. 219, caput, do CPC. Deste modo, salvo se fixado na decisão judicial pelo Juiz disposição diversa, a regra geral de contagem dos prazos em dias úteis deverá ser observada.
Sobre o termo inicial para cumprimento da obrigação duas orientações podem ser apontadas. A primeira decorre da súmula 410 do Superior Tribunal de Justiça que prevê que “A prévia intimação pessoal do devedor constitui condição necessária para a cobrança de multa pelo descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer” e, malgrado tal orientação tenha sido firmada sob a égide do CPC anterior, tenho que ela encontra eco no novo Código de Processo Civil porque este prevê no art. 231, §3º, que “Quando o ato tiver de ser praticado diretamente pela parte ou por quem, de qualquer forma, participe do processo, sem a intermediação de representante judicial, o dia do começo do prazo para cumprimento da determinação judicial corresponderá à data em que se der a comunicação”. Outra orientação, contudo, será aquela que admite como termo inicial a data na qual o advogado da parte foi intimado por meio de Diário de Justiça para o cumprimento da obrigação, tendo por lastro o art. 513, §2º, inc. I, do CPC. Caberá, por óbvio, ao Superior Tribunal de Justiça dar a palavra final sobre a polêmica.