13 FIXAÇÃO DE ASTREINTES EM RELAÇÃO À FAZENDA PÚBLICA
Discute-se a possibilidade de fixação de astreintes em relação à Fazenda Pública. Greco Filho[17] entende que é inviável a imposição de multa contra pessoa jurídica de direito público, porquanto os meios executivos são outros. Realmente, alguns problemas devem ser ponderados em relação à possibilidade de fixação de multa contra a Fazenda Pública, como a origem do dinheiro para pagamento dela e o próprio sistema de pagamento de créditos pecuniários resultante de decisões judiciais por parte da Fazenda Pública.
Cumpre destacar que a demora no cumprimento da obrigação por parte da Fazenda Pública, poderá implicar incidência de multa. Contudo, o dinheiro para pagamento dessa multa é dinheiro público, o qual, em última análise, tem origem nos tributos pagos pelos cidadãos. Nesse particular, quanto mais o administrador público retardar o cumprimento da decisão judicial, maior será o prejuízo para a própria sociedade.
Um segundo ponto a ser destacado é que a Fazenda Pública paga as suas dívidas oriundas de decisão judicial pelo regime dos precatórios, até mesmo em virtude do disposto no art. 100 da Constituição Federal. E, de certa forma, a finalidade das astreintes pode ser considerada incompatível com o regime dos precatórios. Por outras palavras: ainda que a multa incida, a sua cobrança será lenta, uma vez que será realizada pelo regime dos precatórios.
A despeito dos problemas destacados, há orientação na doutrina no sentido de que as astreintes podem ser fixadas contra a Fazenda Pública, sendo tal entendimento defendido, por exemplo, por Alexandre Câmara[18]. De fato, admitir-se a fixação de astreintes contra o particular e não a admitir contra a Fazenda Pública, viola, em última análise, o princípio da isonomia, que tem previsão constitucional, no art. 5º, caput.
Uma outra orientação doutrinária é no sentido da possibilidade de fixação das astreintes contra o próprio agente público, sendo tal entendimento adotado, por exemplo, por Leonardo José Carneiro da Cunha[19]. Essa orientação é sobremaneira interessante porquanto soluciona o problema relativo aos precatórios, assim como o relacionado à origem pública do dinheiro para pagamento da multa.
Mas, também essa vertente dogmática não é imune a críticas, uma vez que o agente público, a rigor, não é parte na ação, que fora ajuizada em face do Poder Público. De qualquer sorte, esse entendimento é o mais alinhado às modernas diretrizes do direito processual, que primam pela obtenção de um processo justo, célere e eficaz, verdadeiro instrumento de realização do direito material.
O Superior Tribunal de Justiça entende “ser cabível a cominação de multa diária (astreintes) contra a Fazenda pública como meio executivo para cumprimento de obrigação de fazer ou entregar coisa” (REsp 1664327/PB, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 08-08-2017, DJe 12-09-2017).
Já no que tange à aplicação da multa em relação ao próprio agente público, existe divergência naquela Corte de Justiça. A propósito, já foi assentado no Superior Tribunal de Justiça que “Inexiste óbice, por outro lado, a que as astreintes possam também recair sobre a autoridade coatora recalcitrante que, sem justo motivo, cause embaraço ou deixe de dar cumprimento a decisão judicial proferida no curso da ação mandamental” (REsp 1399842/ES, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 25-11-2014, DJe 03-02-2015). Mas a orientação preponderante naquela Corte milita no sentido contrário, ou seja, é a de que “determinar a cominação de astreintes aos gestores públicos sem lhes oferecer oportunidade para se manifestarem em juízo acabaria por violar os princípios do contraditório e da ampla defesa” (REsp 1657795/PB, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 17-08-2017, DJe 13-09-2017).
14 ASTREINTES E DEVERES DE FAZER E DE NÃO FAZER DE NATUREZA NÃO OBRIGACIONAL
O parágrafo quinto do art. 537, do CPC, estabelece que as disposições sobre as astreintes previstas no dispositivo são aplicáveis “no que couber, ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de fazer e de não fazer de natureza não obrigacional”. Diante de tal previsão, afigura-se possível, por exemplo, ao Julgador fixar multa em razão do descumprimento de dever relativo envolvendo guarda e visitação de menor.
Malgrado as astreintes tenham expressão econômica, porque fixadas em dinheiro, nada impede que sejam utilizadas para compelir aquele que descumpriu dever de fazer ou de não fazer sem caráter econômico. A ideia de efetividade da jurisdição, que norteia o processo civil moderno, alinha-se com tranquilidade à possibilidade de fixação de astreintes, viabilizando que o Magistrado aplique multa para obstar o descumprimento de deveres de fazer ou de não fazer sem caráter patrimonial.
Por sinal, sob a égide do CPC de 1973 o Superior Tribunal de Justiça já tinha assentado que “A aplicação das astreintes em hipótese de descumprimento do regime de visitas por parte do genitor, detentor da guarda da criança, se mostra um instrumento eficiente, e, também, menos drástico para o bom desenvolvimento da personalidade da criança, que merece proteção integral e sem limitações” (REsp 1481531/SP, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 16-02-2017, DJe 07-03-2017).
15 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As astreintes constituem importante mecanismo para efetivação da tutela jurisdicional. Na verdade, agindo sobre o ânimo do demandado, a multa processual tem por finalidade precípua constrangê-lo ao cumprimento da obrigação. Constitui autêntico mecanismo de execução indireta.
O novo Código de Processo Civil avançou sobre a matéria e a disciplinou em seus principais aspectos, valendo mencionar que o CPC/1973 não havia concedido o devido tratamento para as astreintes. De toda sorte, qualquer interpretação das disposições do novo CPC sobre a multa deverá ser realizada sempre alinhada às modernas diretrizes do direito processual, que não se coaduna com um processo inefetivo e complacente com a postura recalcitrante da parte que descumpre o comando judicial.
Nesse particular, a tarefa alocada aos operadores do direito é de suma importância. O operador do direito jamais poderá afastar-se da premissa de que o processo é um mero mecanismo de realização do direito material e que, nesse particular, as astreintes constituem importante instrumento para obtenção desse desiderato.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004.
CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2016. p. 348.
FRANÇA, Rubens Limongi. Teoria e prática da cláusula penal. São Paulo: Saraiva, 1988.
HERTEL, Daniel Roberto. Curso de execução civil. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2008.
______. Cumprimento da sentença pecuniária. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2011.
______. Técnica processual e tutela jurisdicional: a instrumentalidade substancial das formas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2006.
LIEBMAN, Enrico. Processo de execução. São Paulo: Bestbook editora, 2003.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo código de processo civil comentado: artigo por artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.
Notas
[1] LIEBMAN, Enrico. Processo de execução. São Paulo: Bestbook editora, 2003. p. 280.
[2] Destaca Rizzo Amaral que "As astreintes constituem técnica de tutela coercitiva e acessória, que visa a pressionar o réu para que o mesmo cumpra mandamento judicial, pressão esta exercida através de ameaça a seu patrimônio, consubstanciada em multa periódica a incidir em caso de descumprimento"(AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 85.).
[3] O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “não se confunde a cláusula penal, instituto de direito material vinculado a um negócio jurídico, em que há acordo de vontades, com as astreintes, instrumento de direito processual, somente cabíveis na execução, que visa a compelir o devedor ao cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer e que não correspondem a qualquer indenização por inadimplemento” (REsp 422.966/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 23-09-2003, DJ 01-03-2004, p. 186).
[4] Sobre a cláusula penal, pode-se colacionar o seguinte escólio: “A cláusula penal é um pacto acessório ao contrato ou a outro ato jurídico, efetuado na mesma declaração ou declaração à parte, por meio do qual se estipula uma pena, em dinheiro ou outra utilidade, a ser cumprida pelo devedor ou por terceiro, cuja finalidade precípua é garantir, alternativa ou cumulativamente, conforme o caso, em benefício do credor ou de outrem, o fiel cumprimento da obrigação principal, bem assim, ordinariamente, constituir-se na pré-avaliação das perdas e danos e em punição ao devedor inadimplente”(FRANÇA, Rubens Limongi. Teoria e prática da cláusula penal. São Paulo: Saraiva, 1988. p.7).
[5] Abordei a referida divergência no meu livro Curso de Execução Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2009. p. 200 et seq. Tal divergência também foi registrada por NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo código de processo civil comentado: artigo por artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2016. p. 954-5.
[6] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo código de processo civil comentado: artigo por artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2016. p. 955.
[7] Admitindo a incidência da multa nas obrigações de fazer infungível e fungível, cf. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 13. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006. v. 2. p. 274. No mesmo sentido, cf. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 23. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 218. Há orientação diversa na doutrina, considerando que “no caso de obrigações fungíveis, se não houver prejuízo para o credor, o princípio da menor onerosidade possível da execução para o devedor (art. 620) imporá sua substituição pela prática do ato pelo próprio credor ou por terceiro (art. 633 e 634)” (GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 3. p. 73).
[8] Outra não pode ser a conclusão a partir do que dispõe o art. 466-A do CPC, in verbis: "Condenado o devedor a emitir declaração de vontade, a sentença, uma vez transitada em julgado, produzirá todos os efeitos da declaração não emitida".
[9] ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 111.
[10] Nesse sentido: MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2005. v. 2. p. 402. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 13. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006. v. 2. p. 274. GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 3. p. 74. Mas há orientação em sentido diverso, entendendo que o valor das astreintes deve ser destinado ao Estado. Cf. GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos tribunais, 1998. p. 205.
[11] Essa é a opinião de DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 235.
[12] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo código de processo civil comentado: artigo por artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2016. p. 949.
[13] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 9. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 588. No mesmo sentido, pode-se citar o seguinte escólio: "A multa, por ter caráter inibitório, deverá ser fixada em quantia alta, aos efeitos de levar o obrigado ao atendimento da obrigação e não ao pagamento daquela. Deve contemplar valor de tal ordem que seja um verdadeiro estímulo ao cumprimento da obrigação e não gerar o adimplemento da obrigação" (PORTO, Sérgio Gilberto. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos tribunais, 2000. v. 6. p. 121).
[14] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo código de processo civil comentado: artigo por artigo. Salvador: Editora Juspodivm, 2016. p. 950.
[15] A doutrina admite, sem restrições, a possibilidade de fixação das astreintes de ofício. Cf.: MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2005. v. 2. p. 403. DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 237. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 9. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos tribunais, 2006. p. 587.
[16] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2016. p. 371 e 372.
[17] GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 3. p. 73.
[18] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 13. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006. v. 2. p. 275.
[19] CUNHA, Leornado José Carneiro da. A fazenda pública em juízo. 3. ed. rev. ampl. e atual. Dialética: São Paulo, 2005. p. 125-127.