RESUMO: O presente estudo dedica-se a realizar uma análise as condições de trabalho semelhantes à escravidão contemporânea, triste realidade na sociedade mundial, embora tenha passado mais de um século da abolição da escravidão. A importância desse estudo se demonstrará em razão do desrespeito aos direitos humanos dos indivíduos, que em vista de condições financeiras e problemas sociais se sujeitam a situações que causam risco à saúde e segurança, delimitando algumas de suas espécies, discorrendo em especial sobre a escravidão por dívida, já que esta é uma das modalidades mais praticadas no território brasileiro. É de suma importância a pormenorização do Artigo 149 do Código Penal Brasileiro, que relata os elementos caracterizadores do trabalho com redução à condição análoga. O objetivo do trabalho será demonstrar que tais práticas ainda estão presentes em nossa realidade, demonstrando que a escravidão contemporânea ofende muito mais do que os direitos trabalhistas, mas principalmente a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, os quais são fundamentais em uma relação de emprego. Focando nesse aspecto, o presente trabalho se inicia com uma breve abordagem histórica desde a antiguidade até a atualidade para depois abordar a escravidão contemporânea brasileira, defendendo que a sua existência afronta a própria dignidade da pessoa humana e por isso deve ser prevenida e erradicada. No presente trabalho, o método de abordagem utilizado foi o hipotético- dedutivo, a técnica de pesquisa foi a bibliográfica, com a análise de dados e informações relevantes para dar suporte aos fundamentos levantados. Em relação aos métodos de procedimentos, foram utilizados o histórico, exploratório, descritivo, analítico e qualitativo. Por fim, serão abordadas as medidas com a finalidade de erradicação deste problema fortemente presente no Brasil.
Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana. Escravidão. Trabalho Escravo Contemporâneo.
SUMÁRIO:INTRODUÇÃO. 1 BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA.1.1 O significado de trabalho escravo contemporâneo. 1.2 Trabalho forçado. 1.3 Trabalho degradante. 1.4 Jornada exaustiva. 2 O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS A DE ESCRAVO CONTEMPORÂNEO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.. 2.1 Significado do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 2.2 O valor social do trabalho. 2.3 O dever do Estado na promoção da Dignidade da Pessoa Humana e do Valor Social do Trabalho. 2.4 Casos de trabalho em condições análogas a de escravo. 3 AS MODALIDADES DE ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA.. 3.1 Escravidão pelo trabalho infanto-juvenil. 3.2 Escravidão pela servidão por dívida. 4 DO COMBATE E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL. 4.1 Ação Civil Pública. 4.2 Papel do Judiciário. 4.3 Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). 4.4 PEC 438/2001 e a “Lista Suja”. 4.5 Plano Nacional de Erradicação. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Trata-se de um estudo teórico que versa sobre a escravidão contemporânea existente no Brasil, especialmente a escravidão por dívidas, como atitude que desrespeita a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho. Tem como escopo apresentar e analisar os aspectos envolvidos no trabalho escravo contemporâneo, bem como destacar a importância da busca por uma maior proteção aos trabalhadores, principalmente no que diz respeito às condições em que trabalham.
Primeiramente, o trabalho irá descrever uma breve abordagem histórica a respeito da escravidão no mundo, demonstrando seu início principalmente com os gregos e romanos na Antiguidade, visto que acreditavam que a escravidão era inerente àqueles que nasciam sem condições financeiras, e posteriormente, no Brasil, onde se iniciou no ano de 1500, com a chegada dos portugueses.
Dessa forma, o objetivo maior do estudo será demonstrar que, mesmo após muitos anos de abolição da escravidão pela Lei Áurea, no ano de 1888, assinada pela Princesa Isabel, infelizmente ainda existem tais condições, e ainda, demonstrar que o sistema capitalista incentiva esse modo de exploração, em razão do poder estar concentrado nas mãos de alguns, fazendo com que o restante se submeta a essas condições a qualquer valor.
Para tanto, será necessário explicar o significado de trabalho escravo contemporâneo, ou seja, aqueles que estão submetidos aos seus senhores ou grandes empresários e aceitam condições miseráveis, em busca de melhores condições de vida e para o sustento de sua família; bem como fazer uma diferença entre trabalho forçado, trabalho degradante e jornada exaustiva. Com isso, pretende-se demonstrar a importância do trabalho enquanto um direito a todo ser humano e quais serão as consequências físicas e psicológicas para aqueles que têm sua liberdade desrespeitada. Além disso, irá considerar o motivo de muitos aceitarem essas condições precárias, mesmo que de forma voluntária.
Em seguida, a análise tratará do trabalho análogo ao de escravo, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como a vedação do trabalho escravo pela Constituição Federal, quando da enumeração dos consagrados princípios fundamentais, descritos em seu artigo 5º, quais sejam: a dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, garantia da liberdade e igualdade, asseverando que ninguém poderá ser submetido à tortura nem tratamento desumano ou degradante.
Portanto, visa abordar a dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho como elementos de inclusão social, defendendo que a dignidade da pessoa humana deve ser adotada enquanto valor fonte das relações humanas, principalmente das relações trabalhistas.
Isto posto, é necessário demonstrar que a realização do valor social do trabalho implica imediatamente na promoção da dignidade do homem, o qual o Estado tem o dever de promover e garantir a realização destes, garantindo ao trabalhador condições dignas de trabalho.
Posteriormente, fez-se uma breve análise a respeito de algumas das modalidades de escravidão contemporânea, destacando a escravidão por dívidas no Brasil e, enfim, demonstrar que a sua prática representa uma afronta à dignidade da pessoa humana e a todos os demais direitos humanos que são por ela fundamentados.
Finalmente, no último capítulo, serão abordados os mecanismos atualmente utilizados para o combate do trabalho análogo ao de escravo. Será verificado o cabimento da Ação Civil Pública, para a tutela de interesses difusos, coletivos, individuais e homogêneos, incluindo o papel do Judiciário, “Lista Suja”, PEC 43/2001 e o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Conclui-se abordando as atitudes tomadas pelo Brasil, para realizar o combate e a erradicação do trabalho escravo dentro de seu território.
No presente trabalho, o método de abordagem utilizado foi o hipotético- dedutivo, a técnica de pesquisa foi a bibliográfica, com a análise de dados e informações relevantes para dar suporte aos fundamentos levantados. Em relação aos métodos de procedimentos, foram utilizados o histórico, exploratório, descritivo, analítico e qualitativo.
Vale ressaltar que o objeto de estudo do presente trabalho é interdisciplinar, ou seja, o mesmo baseia-se em elementos sociais, antropológicos, históricos e jurídicos, sendo impossível a abordagem dessa temática sem a menção a outras áreas de estudo. Tal fato justifica a opção metodológica deste trabalho, pois é justamente o estudo interdisciplinar que introduzirá os elementos fundamentais necessários para o desenvolvimento do tema proposto.
1 BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA
O nascimento do trabalho escravo ocorreu em tempos remotos, nas cidades da Grécia e Roma, onde a escravidão sempre esteve na base da estrutura social, a partir da necessidade de mão de obra. Assim, surgiu uma classe de trabalhadores que eram submetidos a condições precárias de trabalho, em instalações inadequadas e até mesmo sofrendo agressões físicas. Ocorria, na verdade, uma luta pela sobrevivência das classes inferiores, tendo em vista que o trabalho se dava em troca de moradia e alimentação, mesmo que em péssimas condições.
Os gregos acreditavam que o trabalho escravo era necessário, ou seja, os pobres nasciam nessa condição e, por esse motivo, eram obrigados a serem escravizados. Para eles, a escravidão servia para satisfazer às necessidades de manutenção da vida. A Grécia foi a primeira civilização a adotar o trabalho escravo.
No início, o que era apenas servidão, tornou-se um meio de o proprietário de terras cobrar dívidas dos seus trabalhadores de modo a privar-lhes da sua liberdade, pois não havia outra solução senão pagar as dívidas com o esforço físico.
Em Roma, o trabalho escravo era utilizado para concentrar mais riquezas nas mãos dos nobres, nesse sentido aduz Aldo Schiavone (2005, p.100) “O seu trabalho tinha como função manter e ampliar não só a riqueza econômica, mas também o status, o luxo e tudo aquilo que representava o modo de vida da nobreza romana”.
O surgimento do trabalho escravo em Roma se deu com a abolição da escravidão por dívidas na Grécia Antiga. Os trabalhadores eram tratados como propriedade dos senhores de terra e assim eram trocados como produtos, sem quaisquer direitos pessoais.
Em Roma, assim como na Grécia Antiga, também existia a servidão onde os servos, apesar de serem livres, estavam ligados aos donos das terras através do pagamento de uma renda ao proprietário.
Na Idade Média, o surgimento das corporações de ofício que monopolizaram a produção manufatureira deu origem aos escravos, os quais eram subordinados aos mestres.
A escravidão no Brasil teve início com a chegada dos portugueses no ano de 1500, os quais utilizaram a mão de obra escrava dos índios para que estes trabalhassem nos engenhos. Porém, devido às péssimas condições de vida a que eram expostos, alguns morreram em razão de doenças, sendo assim, os índios foram considerados insuficientes para exercer as atividades laborativas. Dessa forma, os portugueses passaram a traficar africanos para substituir os índios, pois sua capacidade laborativa era muito superior e assim desempenharam um importante papel na produção.
A escravidão era preservada pela Igreja Católica, ou seja, defendia que todos aquelas que desobedecessem a seus ensinamentos deveriam ser escravizados, como forma de punição. Nesse sentido, os jesuítas eram os responsáveis por contratar os escravos negros (COSTA, 1977. p. 21).
Inicialmente, os escravos negros exerciam suas atividades nas plantações da cana-de-açúcar e depois passaram a trabalhar na extração de minério e na exploração da madeira, com isso, os seus proprietários vislumbravam diminuir os custos da produção, mas também aumentar os lucros.
Segundo Adolfo Bezerra de Menezes (1869, p. 5), “o escravo não era considerado como uma pessoa, mas sim como uma coisa, não sendo mais que uma propriedade para seu possuidor, pois busca a retirada de todo o lucro possível”.
Esses escravos eram abrigados em senzalas escuras e sujas, e para evitar a fuga, muitas vezes eram acorrentados e castigados fisicamente. A jornada de trabalho era de quatorze a dezesseis horas por dia, em condições péssimas, enfrentando torturas físicas e psicológicas.
A condição de vida era tão ínfima que muitos para tentar se livrar da vida de escravidão, cometiam suicídio ao ingerir veneno ou enforcando-se. Algumas mulheres, quando ficavam grávidas, provocavam abortos para que seus filhos não se tornassem escravos quando nascessem. As fugas eram constantes. Alguns escravos procuravam o apoio de outros que moravam nas cidades, outros criavam comunidades de organização social e inúmeras alianças com outros grupos sociais, a essas comunidades davam-se o nome de quilombo. (COTRIM, 2002, p.221).
A Revolução Francesa, no ano de 1789, fez com que os burgueses ascendessem ao poder político e impusessem a ideia que o Estado deveria limitar suas funções apenas em manter a ordem política e social.
Segundo Arnaldo Sussekind (2000, p. 8):
Afirmando a igualdade jurídico-política dos cidadãos (todos são iguais perante a lei), a Revolução Francesa adotou o princípio do respeito absoluto à autonomia da vontade (liberdade contratual), cuja consequência foi a não intervenção do Estado nas relações contratuais (laissez-faire). Consagrou, assim, o liberalismo-econômico pregado pelos fisiocratas, com o que facilitou a exploração do trabalhador.
Com o advento da Revolução Industrial e das máquinas, houve uma progressiva substituição da mão de obra humana, principalmente a escrava, pois era necessário acelerar a produção. Tal fato foi responsável pela quebra da sociedade agrária e o sistema capitalista.
O capitalismo, como o passar dos anos, passou a buscar o trabalho assalariado e assim iniciou-se a abolição da escravidão.
Somente em 13 de maio do ano de 1888 a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, declarou extinta a escravidão, proibindo a exploração do trabalhador, garantindo a não violação dos seus direitos.
Entretanto, no decorrer do estudo, será possível observar que, embora a escravidão seja um ilícito penal, a mão de obra é explorada de forma análoga. A abolição não previu a integração dos negros na sociedade e, infelizmente, como consequência, hoje existe o preconceito e discriminação dessas pessoas na sociedade.
O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a existência de trabalho escravo contemporâneo em seu território. Até o ano de 2014, aproximadamente 47 mil trabalhadores foram libertados de condições de trabalho análogas a de escravo.
Os direitos trabalhistas estão sendo mitigados em razão da busca excessiva por maiores lucros. A desigualdade social e a falta de instrução educacional tornam os trabalhadores pessoas frágeis, capazes de acreditar em falsas promessas e a não lutar pelos seus direitos. Vale ressaltar que o trabalho escravo contemporâneo não está ligado tão somente a questões raciais, mas também a fatores econômicos e sociais. Por isso é necessário distinguir a escravidão na antiguidade e nos dias atuais.
A escravidão contemporânea configura uma prática arcaica, desumana e ilegal, a mesma teve início com a busca pelo lucro exacerbado e pela desigualdade social, e, consequentemente, estimulou os trabalhadores a se sujeitarem a tais condições. Por fim, surge a necessidade de tomar medidas preventivas e punitivas para erradicação da exploração de trabalhadores.
1.1 O significado de trabalho escravo contemporâneo
Em 13 de maio de 1988 ocorreu a abolição da escravidão no Brasil através da Lei Áurea. Ocorre que, infelizmente, a assinatura dessa lei não foi suficiente para sanar os problemas presentes na sociedade. Em pleno século XXI ainda podemos encontrar trabalhadores submetidos a condições análogas a de escravo, também conhecida como escravidão contemporânea.
Nesse contexto, é necessário realizar uma breve diferenciação entre trabalho escravo e trabalho análogo à condição de escravo.
Existem diversas definições doutrinárias sobre o conceito de trabalho escravo, mas, em linhas gerais, pode ser conceituado como um trabalho forçado, mediante imposição do empregador ou mesmo de maneira voluntária pelo trabalhador que, somente depois, descobre o tipo de trabalho que estava exercendo.
Conforme Brito Filho (2005, p. 204):
Pode-se definir trabalho em condições análogas à condição de escravo como exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador.
Existem três formas coercitivas que podem ser impostas ao trabalhador, quais sejam: a) moral, onde o empregador atrai o trabalhador de forma fraudulenta; b) psicológica, onde há constante ameaça do explorador de violência contra o trabalhador e c) física, sofrendo castigos ou até assassinatos para que os mesmos não fujam.
O trabalho em condições análogas ao de escravo, por sua vez, é caracterizado por restringir a liberdade do trabalhador deixando de observar as condições necessárias para que o ser humano possa trabalhar dignamente, respeitando os seus direitos e garantias fundamentais.
A principal forma que mantem o trabalhador vinculado ao explorador é a existência de uma dívida, muitas vezes, interminável. É através dessa dívida que o trabalhador é explorado, pois não possui outro meio para quitá-la. Esse vínculo também pode ser caracterizado com a retenção de documentos, por exemplo.
A definição do trabalho escravo contemporâneo é encontrada no art. 149, do Código Penal Brasileiro:
Reduzir alguém à condição análoga a de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Nesse sentido, aduz Mirabete (2005, p. 184):
A vítima é privada da liberdade de escolha e a execução do trabalho decorre de uma relação de dominação e sujeição, contra a qual não tem a possibilidade de se insurgir. A conduta do agente pode ser praticada com violência ou grave ameaça, mas também mediante a criação ou o aproveitamento de circunstâncias que a impossibilitem de exercer a opção de não se submeter ao trabalho.
Assim, o trabalho análogo ao de escravo ocorre quando há um aproveitamento da situação vulnerável que o trabalhador é exposto, através de ameaças e punições físicas e psicológicas.
Outrossim, afirma José Cláudio Monteiro de Brito Filho (2004, p. 14):
Podemos definir trabalho em condições análogas à condição de escravo como o exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador. É a dignidade da pessoa humana violada, principalmente, quando da redução do trabalhador à condição análoga a de escravo. Tanto no trabalho forçado, como no trabalho em condições degradantes, o que se faz é negar ao homem direitos básicos que o distinguem dos demais seres vivos; o que se faz é coisificá-lo; dar-lhe preço, e o menor possível.
Hodiernamente, a escravidão está associada à facilidade de migração de pessoas e à má distribuição de renda. Infelizmente esse fato ainda pode ser encontrado em diversas regiões do mundo, quer seja em países em desenvolvimento, quer seja em países desenvolvidos.
São esses os mecanismos que coíbem a liberdade desses trabalhadores. Sem dinheiro, ameaçados e sem o conhecimento de seus direitos fundamentais e trabalhistas, os explorados ficam “presos” a um emprego em que enfrentam maus-tratos e péssimas condições.
O escravo contemporâneo está presente tanto na zona rural quanto na zona urbana, submetidos às mesmas condições de trabalho. Esse é um problema recorrente e grave, pois, em pleno século XXI e com tantas garantias legais, isso se torna um absurdo.
Atualmente, ainda existem trabalhadores que não recebem remuneração pelo seu trabalho ou quando recebe o valor é inferior ao que seria justo, vivem em moradias que oferecem riscos a saúde, não recebem auxílio médico e trabalham além do limite imposto pela lei, consequentemente não recebem hora extra dentre outras irregularidades.
Apesar de hoje não existir mais correntes ou senzalas, são inúmeros os relatos dos trabalhadores em condições de trabalho que remetem a uma escravidão contemporânea.
Portanto, essa condição diz respeito não apenas a aquisição de mão de obra, mas também ao uso e desprezo dos seres humanos, visando o aumento dos lucros e a redução de despesas.
Contudo, em 15 de outubro de 2017 foi publicada no Diário Oficial da União uma portaria do Ministério do Trabalho visando regulamentar a concessão de seguro-desemprego a pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão no Brasil e alterar a norma que criou o cadastro de empregadores que submetem indivíduos a essa situação, mais conhecida como "lista suja do trabalho escravo”.
A portaria define também o trabalho em condições análogas a de escravo trabalho forçado, jornada exaustiva e condição degradante.
Segundo o texto da portaria que foi publicada apenas poderá ser considerada escravidão a submissão do trabalhador sob ameaça de castigo, a proibição de transporte obrigando ao isolamento geográfico, a vigilância armada para manter o trabalhador no local de trabalho e a retenção de documentos pessoais. Dessa forma, essa mudança acarreta dificuldade na caracterização do trabalho escravo.
Contudo, a publicação dessa portaria gerou grande repercussão, principalmente por ser ilegal, afrontando os princípios da Carta Magna, bem como compromissos internacionais firmados pelo Brasil e condicionando o trabalho escravo apenas à restrição da liberdade de locomoção do trabalhador. Sendo assim, essa situação acaba dificultando a punição de flagrantes de pessoas em situações de trabalho escravo.
O Ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, afirmou que a portaria possui o objetivo de dar segurança jurídica e objetividade à atuação do auditor-fiscal.
Diante disso, o Supremo Tribunal Federal emitiu decisão que suspendeu os efeitos da portaria, mas há a discussão se a mesma será revogada ou não.
1.2 Trabalho forçado
Exigir o trabalho ou serviço de uma pessoa através de ameaças de punições de qualquer natureza pode ser caracterizado como trabalho forçado ou obrigatório, conforme a Convenção nº 29 da OIT, no artigo 2º, item I: “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”.
A OIT define como ocorre o trabalho forçado:
Em termos gerais, os incentivos ao tráfico de pessoas entre países mais pobres e países mais ricos podem ser assim descritos. Em termos de oferta, muitas vezes como consequência dupla do declínio de oportunidades de emprego e crescentes aspirações de consumo, têm aumentado os incentivos para a migração não só das zonas rurais para centros urbanos, mas também de países menos ricos para os mais ricos. Nos países mais ricos, parece constante a demanda de mão de obra disposta a aceitar empregos inseguros e mal pagos, muitas vezes de natureza sazonal. As pessoas naturais de países mais ricos recusam-se, compreensivelmente, a aceitar empregos difíceis, degradantes e perigosos. Mas, como os países mais ricos levantam cada vez mais barreiras à migração legal e regular, elementos criminosos aproveitam da oportunidade para ter mais lucros. Alguns intermediários cobram pesadas somas de candidatos à migração para viabilizar ilegalmente a travessia de fronteiras, e outros usam práticas coercitivas e falazes para ganhar ainda mais no local de destino. Em suma, o tráfico de pessoas é uma reação oportunista a tensões entre a necessidade de migrar e as restrições de natureza política para permitir o mesmo.
Para a OIT existem dois tipos de trabalho forçado: o que é determinado pelo Estado e o outro é determinado pelo setor privado. O primeiro corresponde ao trabalho imposto aos militares, a participação compulsória em obras e ao trabalho forçado nas penitenciárias; já o segundo corresponde ao trabalho mediante exploração sexual e econômica.
Em 18 de janeiro de 2017, Ronaldo Nogueira, ministro do Trabalho, assinou o documento que ratifica o Protocolo a Convenção 29 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) que combate o trabalho forçado.
Esse documento estabelece que os países-membros, que fazem parte do tratado, orientem os empregadores para que busquem identificar e prevenir os riscos que o trabalho forçado oferece ao trabalhador.
Segundo a OIT, a maioria dos casos de trabalho forçado envolve mulheres e meninas, especialmente em atividades domésticas ou de exploração sexual. Estatisticamente, mais de 20 milhões de pessoas são submetidas a condições análogas à de escravo no mundo.
Diante disso, sempre que o trabalhador for forçado a desempenhar funções em condições degradantes, que violem seus direitos mediante ameaça e agressão física ou verbal, está configurado o trabalho em condições análogas a de escravo contemporâneo.
1.3 Trabalho degradante
O trabalho que desrespeita os direitos fundamentais dos indivíduos, onde o trabalhador não possui qualquer garantia de segurança e saúde, além de sofrer violência física e psicológica, configura o chamado trabalho degradante.
Nesse sentido, aduz Brito Filho (2005, p. 27):
Aquele em que há falta de garantias mínimas de saúde e segurança, além da falta de condições mínimas de trabalho, de moradia, higiene, respeito e alimentação. Tudo devendo ser garantido em conjunto, ou seja, a falta de um desses elementos impõe o reconhecimento do trabalho em condições degradantes.
Portanto, o trabalhador possui o direito de exercer seu trabalho com o mínimo de respeito à sua saúde e segurança para que não seja caracterizado o trabalho degradante.
Segundo Mirabete (2005, p. 184), quem submete o trabalhador a essas condições precárias de trabalho pratica crime:
Nesses casos, ainda que existente uma relação trabalhista, há abuso na sua exigência do trabalho pelo agente, quer quanto à sua quantidade, quer quanto às condições propiciadas para a sua execução. Por condições degradantes entendem-se os aviltantes ou humilhantes, não apenas em geral consideradas, mas também em face das condições pessoais da vítima, que afrontam a sua dignidade.
O trabalho degradante viola principalmente a dignidade da pessoa humana, visto que esse princípio é o mais importante consagrado pela Constituição Federal de 1988. Sendo assim, o direito à liberdade é mais um dos aspectos utilizados para caracterizar o trabalho escravo.
Vale ressaltar que essa análise é de suma importância, pois a Carta Magna defende como direito dos trabalhadores a redução dos riscos que o trabalho oferece, utilizando normas sobre saúde, segurança e higiene, nos termos do artigo 7º, inciso XXII:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
[...] XIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei.
Para verificar a existência de trabalho degradante, se faz necessária uma análise dos limites de exposição dos trabalhadores. Portanto, nos termos do artigo 189, da CLT temos:
Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos.
No mesmo sentido temos o artigo 193, da CLT:
São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado.
A OIT entende que toda forma de trabalho escravo é degradante, porém nem toda forma de trabalho degradante é escravo. A diferença entre esses dois conceitos está na liberdade, ou seja, quando há trabalho forçado e restrição da liberdade, estaremos diante do trabalho escravo. Contudo, se não houver afronta ao direito a liberdade, mas existir condições que possam prejudicar a saúde do trabalhador, por exemplo, constitui trabalho degradante.
Entretanto, o Código Penal, no artigo 149, tipifica como crime sempre que houver a redução do indivíduo à condição análoga a de escravo.
Dessa forma, quando houver o desrespeito aos direitos dos trabalhadores, violando sua dignidade e liberdade, estará caracterizado o trabalho degradante.
1.4 Jornada exaustiva
A Consolidação das Leis do Trabalho estipula, em regra, uma jornada de trabalho de 08 horas diárias e 44 horas semanais, podendo acrescentar duas horas suplementares de acordo com os artigos 58 e 59 da CLT:
Art. 58 - A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.
Art. 59 - A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho.
Porém, em muitos casos, esse limite é desrespeitado e a jornada é excedida. Quando essa jornada é exaustiva, o trabalhador fica exposto a uma série de problemas, principalmente em relação à saúde. Além disso, seu convívio familiar e os momentos de descanso e lazer acabam sendo prejudicados por essa jornada que transcende o limite imposto na lei, causando o dano existencial.
Cabe ressaltar que não é apenas a extensão das horas de trabalho que caracteriza uma jornada exaustiva, mas também com o ritmo e produtividade que é obrigado a realizar o labor.
O dano existencial ocorre quando uma conduta do empregador é capaz de impedir ou prejudicar que o trabalhador realize atividades importantes para o seu bem estar, deixando de descansar físico e emocionalmente.
Dessa forma, em 04 de novembro de 2015, em uma importante decisão de um Recurso de Revista nº 10347420145150002, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) confirmou o entendimento de que uma jornada exaustiva configura um episódio de dano existencial, senão vejamos:
INDENIZAÇÃO POR DANO EXISTENCIAL. JORNADA DE TRABALHO EXTENUANTE. O dano existencial consiste em espécie de dano extrapatrimonial cuja principal característica é a frustração do projeto de vida pessoal do trabalhador, impedindo a sua efetiva integração à sociedade, limitando a vida do trabalhador fora do ambiente de trabalho e o seu pleno desenvolvimento como ser humano, em decorrência da conduta ilícita do empregador. O Regional afirmou, com base nas provas coligidas aos autos, que a reclamante laborava em jornada de trabalho extenuante, chegando a trabalhar 14 dias consecutivos sem folga compensatória, laborando por diversos domingos. Indubitável que um ser humano que trabalha por um longo período sem usufruir do descanso que lhe é assegurado, constitucionalmente, tem sua vida pessoal limitada, sendo despicienda a produção de prova para atestar que a conduta da empregadora, em exigir uma jornada de trabalho deveras extenuante, viola o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, representando um aviltamento do trabalhador. O entendimento que tem prevalecido nesta Corte é de que o trabalho em sobrejornada, por si só, não configura dano existencial. Todavia, no caso, não se trata da prática de sobrelabor dentro dos limites da tolerância e nem se trata de uma conduta isolada da empregadora, mas, como afirmado pelo Regional, de conduta reiterada em que restou comprovado que a reclamante trabalhou em diversos domingos sem a devida folga compensatória, chegando a trabalhar por 14 dias sem folga, afrontando assim os direitos fundamentais do trabalhador. Precedentes. Recurso de revista conhecido e desprovido.
Em síntese, podemos concluir que há duas formas de caracterizar a jornada exaustiva: seja pelo critério quantitativo, com a superação do limite imposto na lei ou pelo critério qualitativo, quando houver pressões físicas e psicológicas ao trabalhador, mesmo que não haja a extensão das horas permitidas no limite legal.