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Trabalho em condições análogas à de escravo contemporâneo

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22/09/2018 às 11:00
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4 DO COMBATE E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL

O Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em 11 de março de 2003 pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, elaborado por uma comissão especial do Conselho de Defesa os Direitos da Pessoa Humana, a qual fora criada em janeiro de 2002, reuniu 76 medidas a serem adotadas pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, por entidades e organizações civis e pela própria OIT, para combater e erradicar o trabalho escravo no Brasil.

Esse Plano, aliado a atuação de várias entidades governamentais e não governamentais, trouxe diversos avanços para combater a escravidão contemporânea, mas não foi totalmente executado. Nesse sentido, no livro II Plano para a Erradicação do Trabalho Escravo, de Leonardo Sakamoto (2008, p. 99), o Relatório apresentado pela OIT afirma que:

As entidades governamentais e não governamentais merecem o reconhecimento por avançarem na sensibilização e capacitação de atores para o combate a essa prática e na conscientização de trabalhadores pelos seus direitos, o que pode ser constatado pela porcentagem de metas cumpridas e cumpridas parcialmente (77,7%) do plano.

No mesmo livro (2008, p. 08), Paulo Vanuchi, Ministro Especial da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, destaca que:

O país pode se orgulhar do reconhecimento internacional que obteve a respeito dos progressos alcançados nessa área: 68,4% das metas estipuladas pelo Plano Nacional foram atingidas, total ou parcialmente, segundo avaliação realizada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT. Para se quantificar esse avanço, registre-se que entre 1995 e 2002 haviam sido libertadas 5.893 pessoas, ao passo que, entre 2003 e 2007, 19.927 trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados dessa condição vil pelo corajoso e perseverante trabalho do Grupo Especial de Fiscalização Móvel sediado no Ministério do Trabalho. Num balanço geral, constata-se que o Brasil caminhou de forma mais palpável no que se refere à fiscalização e capacitação de atores para o combate ao trabalho escravo, bem como na conscientização dos trabalhadores sobre os seus direitos.

A criação de um grupo especial de fiscalização móvel do Ministério do Trabalho e Emprego foi uma das metas alcançadas, libertando os trabalhadores escravizados após a confirmação da existência de trabalho desumano.

Houve ainda, no Judiciário, o aumento das ações civis públicas ajuizadas e outras ações que já obrigaram empresários, que se utilizavam do trabalho escravo, a pagar elevadas quantias a título de verbas trabalhistas e indenizações aos trabalhadores.

4.1 Ação Civil Pública

A Ação Civil Pública está prevista no artigo 129, inciso I da Carta Magna. Trata-se de um instrumento processual aplicada à defesa de interesses difusos e coletivos, mas também pode ser aplicada nas ações promovidas por entidades publicas e associações colegitimadas, conforme artigo 129, parágrafo 1º também da CRFB/88.

Portanto, caberá Ação Civil Pública quando houver necessidade de defesa de interesses difusos e coletivos atinente às relações trabalhistas, mas também em relação àquelas que decorrem de vínculo empregatício, sendo o Ministério Público do Trabalho um dos legitimados.

Uma vez comprovado o desrespeito aos princípios fundamentais previstos na Constituição Federal, é necessária a Ação Civil Pública como combate ao trabalho escravo, buscando a defesa dos direitos difusos, coletivos, individuais e homogêneos.

4.2 Papel do Judiciário

No Brasil, o Poder Judiciário não tem sido severo em suas decisões relativas à punição civil, penal e trabalhista dos praticantes da escravidão contemporânea. Essa realidade faz com que atos de violação aos direitos humanos e à dignidade do ser humano, sobretudo a escravidão contemporânea, fique desamparado. Tal fato gera no cidadão a sensação de injustiça.

A título de exemplo, o fato de que a maioria das decisões trabalhistas condena os empregadores a apenas efetuarem o pagamento das verbas trabalhistas devidas aos empregados, as quais lhe foram omitidas durante a relação laboral.

O Judiciário Trabalhista, por sua vez, não possui a competência para julgar os crimes decorrentes da prática da escravidão contemporânea, uma vez que tais crimes devem ser julgados pela Justiça Federal. Sobre isso, a jurisprudência pátria decidiu:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CRIMES DE REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO, DE EXPOSIÇÃO DA VIDA E SAÚDE DESTES TRABALHADORES A PERIGO, DE FRUSTRAÇÃO DE DIREITOS TRABALHISTAS E OMISSÃO DE DADOS NA CARTEIRA DE TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL. SUPOSTOS CRIMES CONEXOS. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA PARTE, PROVIDO. 1. O recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Federal abrange a questão da competência da justiça federal para os crimes de redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo, de exposição da vida e saúde dos referidos trabalhadores a perigo, da frustração de seus direitos trabalhistas e de omissão de dados nas suas carteiras de trabalho e previdência social, e outros crimes supostamente conexos. 2. Relativamente aos pressupostos de admissibilidade do extraordinário, na parte referente à alegada competência da justiça federal para conhecer e julgar os crimes supostamente conexos às infrações de interesse da União, bem como o crime contra a Previdência Social (CP, art. 337-A), as questões suscitadas pelo recorrente demandariam o exame da normativa infraconstitucional (CPP, arts. 76, 78 e 79; CP, art. 337-A). 3. Desse modo, não há possibilidade de conhecimento de parte do recurso extraordinário interposto devido à natureza infraconstitucional das questões. 4. O acórdão recorrido manteve a decisão do juiz federal que declarou a incompetência da justiça federal para processar e julgar o crime de redução à condição análoga à de escravo o crime de frustração de direito assegurado por lei trabalhista, o crime de omissão de dados da Carteira de Trabalho e Previdência Social e o crime de exposição da vida e saúde de trabalhadores a perigo. No caso, entendeu-se que não se trata de crimes contra a organização do trabalho, mas contra determinados trabalhadores, o que não atrai a competência da Justiça federal. 5. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 398.041 (rel. Min. Joaquim Barbosa, sessão de 30.11.2006), fixou a competência da Justiça federal para julgar os crimes de redução à condição análoga à de escravo, por entender "que quaisquer condutas que violem não só o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também o homem trabalhador, atingindo-o nas esferas em que a Constituição lhe confere proteção máxima, enquadram-se na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto de relações de trabalho" (Informativo no 450). 6. As condutas atribuídas aos recorridos, em tese, violam bens jurídicos que extrapolam os limites da liberdade individual e da saúde dos trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravos, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade do trabalho. Entre os precedentes nesse sentido, refiro-me ao RE 480.138/RR, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 24.04.2008; RE 508.717/PA, rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 11.04.2007. 7. Recurso extraordinário parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.

Cita-se, ainda:

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO Á CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. TRABALHO ESCRAVO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. CRIME CONTRA A COLETIVIDADE DOS TRABALHADORES. ART. 109, VI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo que visa à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. A existência de trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra a organização do trabalho. Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho. Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do Código Penal (Redução à condição análoga a de escravo) se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça federal (art. 109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo. Recurso extraordinário conhecido e provido.

Nessas decisões verifica-se que muitas delas são fundamentadas com conceitos internos, quando possui inúmeros de tratados e atos internacionais, também entendidos como normas de proteção aos direitos humanos e à dignidade humana.

Contudo, mesmo sendo competência do Judiciário Federal, o mesmo encontra dificuldades para atingir o objetivo de implementar os direitos humanos, limitando-se, na maioria das vezes, a julgar os casos que lhe são apresentados, como meros problemas internos, quando já são reconhecidos como verdadeiros crimes contra a humanidade.

Dessa forma, torna-se necessário que o Judiciário tome medidas mais efetivas para punir com maior severidade aqueles que praticam a escravidão contemporânea. Tais medidas são indispensáveis para manutenção da justiça, restabelecendo o equilíbrio desfeito em uma relação jurídica.

4.3 Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)

A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 626, afirma que “incumbe às autoridades competentes do Ministério do Trabalho, ou àquelas que exerçam funções delegadas, a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho”.

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Portanto, a fiscalização do cumprimento das normas de proteção ao trabalho caberá ao Auditor Fiscal, a qual será exercida pelo Poder Público. Senão vejamos o que diz a Convenção nº 155 da OIT sobre o assunto:

Art. 9º, II: O sistema de controle deverá prever sanções adequadas em caso de infração das leis ou dos regulamentos.

Art. 10: Deverão ser tomadas medidas para orientar os empregadores e os trabalhadores com o objetivo de ajudá-los a cumprir com suas obrigações legais.

Assim sendo, torna-se necessário o controle das normas relacionadas à saúde e segurança, devendo ser impostas sanções em caso de infração. No mesmo sentido, a Convenção faz menção à importância da orientação aos parceiros sociais.

O artigo 160 da CLT corrobora com esse entendimento afirmando que “nenhum estabelecimento poderá iniciar suas atividades sem prévia inspeção e aprovação das respectivas instalações pela autoridade regional competente em matéria de segurança e medicina do trabalho”.

4.4 PEC 438/2001 e a “Lista Suja”

A PEC nº 438 de 2001 foi criada pelo Senador Ademir Andrade no ano de 1999, mas a mesma só foi aprovada em 27 de maio de 2014 por unanimidade pelo plenário do Senado. Esse projeto de emenda à Constituição determina a expropriação de imóveis urbanos e rurais onde seja verificada a exploração de trabalho escravo ou em situação análoga à escravidão.

Essa proposta foi alavancada após o assassinato de auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego, em Unaí/MG. Essas pessoas foram mortas mediante uma emboscada enquanto investigavam uma denúncia de trabalho escravo em fazendas da região de Minas Gerais.

A “Lista Suja”, por sua vez, consiste em um cadastro de empregadores que são flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à de escravos. Esse instrumento é uma das principais medidas utilizadas para coibir essa prática no país. Quando um nome é incluído nessa lista, as instituições suspendem os financiamentos.

Os órgãos responsáveis pela lista são o Ministério do Trabalho e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, a mesma é atualizada semestralmente. Os empregadores têm o direito de se defender administrativamente em primeira e segunda instâncias. A exclusão do nome da lista ocorre se não houver reincidência e for efetuado o pagamento de todos os autos de infração após dois anos.

Destarte, para que não haja ilegalidade nessa ação, antes da inserção do nome do infrator na Lista Suja, lhe é assegurado o direito à ampla defesa, mas a responsabilidade administrativa é autônoma com relação à criminal. Dessa forma, a “lista suja” é considerada um importante instrumento ao combate e erradicação do trabalho escravo contemporâneo.

4.5 Plano Nacional de Erradicação

O Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo foi criado em 2005, trata-se de um acordo entre empresas e entidades privadas para afastar a possibilidade de uso de mão de obra escrava na fabricação ou fornecimento de seus produtos e serviços. O pacto tem como objetivo a formalização das relações de trabalho de todos os fornecedores das empresas signatárias, exigindo o cumprimento das obrigações previdenciárias, assistência à saúde e garantias de segurança ao trabalhador.

Apesar de a adesão de empresas a esse plano ser voluntária, as que descumprem os requisitos são publicamente afastadas. Essas empresas que participam do pacto também devem aplicar restrições comerciais em caso de identificação de fornecedores e pessoas que utilizem trabalho escravo.

Desde a assinatura do Pacto, um número significativo de empresas tem seguido os compromissos, restringindo os negócios com quem utilizou trabalho escravo, implantando medidas de rastreamento de produtos e realizando a capacitação dos seus funcionários para enfrentar o problema.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Ismaela Freire. Trabalho em condições análogas à de escravo contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5561, 22 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65768. Acesso em: 25 abr. 2024.

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