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Entre a legalidade e igualdade tributária: o lado oculto - parte II

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Não pode o Judiciário simplesmente lançar mão de enunciados como “reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover integração de regiões em desenvolvimento” para criar direitos não previstos, pois representam argumentos vagos, genéricos e, flagrantemente, juízos políticos, sem qualquer pretensão normativa.

As ideias firmadas no presente devem ser vistas como continuidade daquelas desenvolvidas em Entre a Legalidade e Igualdade Tributária: O Lado Oculto[1]. No presente, em vez de me apegar mais a uma crítica epistêmica, tentarei traçar diretrizes e respostas que penso serem mais adequadas, utilizando-se, no caso, de um exemplo prático, a fim de desmistificar a forma enraizada de como a Igualdade vem sendo generalizadamente (mal)tratada.

A Lei Federal nº 8.387/1991 criou a Área de Livre Comércio de Macapá-AP e Santana-AP, com a finalidade de integrá-las ao resto do país e, assim, representar um instrumento de promoção do desenvolvimento da região e redução das desigualdades sociais, nos termos do mandamento constitucional do artigo 40 do ADCT[2]. Assim sendo, é condição prévia compreender como uma Área de Livre Comércio seria (é) uma ferramenta para desenvolvimento da região, interpretando-a em harmonia com o Direito, à luz do melhor ajuste institucional possível[3].

Sua própria Lei Instituidora (nº 8.387/1991) nos serve de guia, quando dispõe como finalidade promover o desenvolvimento das regiões fronteiriças do Estado do Amapá e de incrementar as relações bilaterais com os países vizinhos, segundo a política de integração latino-americana. Nesse sentido, respeitando a própria natureza de uma área de livre comércio, dessume-se que a promoção ao desenvolvimento da região se dará mediante a sua integração aos países vizinhos e demais estados do país. A contrario sensu, não dispõe (nem poderia) sobre a forma de como se dariam o incremento das relações internas entre as próprias sociedades empresárias da região. Sob a ótica tributária, isso implica que a Área de Livre Comércio não é uma área-de-comércio-livre-de-tributos de quaisquer espécies. Daí que, sendo coerente, qualquer desoneração fiscal só faz sentido se for vocacionada a atender à finalidade de uma área de livre comércio.

Consubstanciado nesse sistema de padrão público de normas tributárias especialmente criadas para a ALCMS, a Lei 10.996/2004 dispôs acerca de desoneração (alíquota zero) da PIS/PASEP e COFINS, incidentes sobre a venda de receitas de mercadorias destinadas ao consumo ou à industrialização na ZFM e ALC (art.2º). Sendo coerente com os diplomas e institutos aplicáveis, o Legislador teria margem de ação para desonerar referida fonte, uma vez que, equiparada à exportação, seria possível “imunizá-la”, analogicamente ao inciso I, §2º, art.149, da CRFB, ampliando, assim, o rol de direitos inicialmente cogitados.

Fossem assim as coisas, cada um auferiria benefícios específicos, segundo a lógica e finalidade integracionista do direito aduaneiro. Todavia, os Tribunais têm estendido benefícios para além disso, ao criar um desarrazoado favorecimento às empresas situadas na ALCMS[4], desonerando operações internas. Típica hipótese de privilégio odioso. E não só. Um verdadeiro desrespeito à Coerência e Integridade do Direito. Bem ou mal, o legislador manteve a coerência do conjunto de normas relacionadas à matéria. Não somente de acordo com a validade formal, mas, também, material, eis que inexiste direito fundamental ou limitação ao poder de tributar violados.

Só se poderia arguir quebra da igualdade, se, somente se, a conduta antijurídica (no caso, a legislativa) consubstanciasse um ato que desconsiderasse os contribuintes de modo igual “quando houver decisão política a respeito de como estes bens e estas chances são distribuídas”[5], ou se constatasse a proteção insuficiente[6] da norma resultante do enunciado do artigo 40 do ADCT. Em ambos os casos, todavia, seria imperioso se desincumbir do pesado ônus de afastar a inconstitucionalidade da norma, mediante as rigorosas técnicas de decisões constitucionais interpretativas existentes. Ou seja, não poderia se servir da igualdade como mero álibi a ser retoricamente utilizado, para justificar qualquer coisa segundo se pensa.

Seria necessário, portanto, percorrer um caminho certo, porém, tortuoso e com percalços, imprescindível. Nesse empreendimento, o “Princípio da Igualdade” deveria ser interpretado segundo uma perspectiva deontológica, correspondente à estrutura condicional “se, então”, e não axiológica, no sentido de uma busca por um estado de coisas ideal e atemporal fora do Direito. Com sua identificação a partir do emaranhado de regras que lhes diz respeito (ex. art.3º, I; art.6º; Art.150, II; art.194, art.195 etc.; todos da CR), e que, ao mesmo tempo, nele se sustenta[7]. Nesse momento, impor-se-ia observar, especialmente, ao que diz o texto constitucional, sob o ponto de vista de seus limites semânticos (em especial, do art. 40 do ADCT). Outrossim, impenderia concordá-lo com os correlatos Princípios e Regras Constitucionais, que limitam seu espectro de incidência (ex. Legalidade e Programação Orçamentária). Ademais, uma vez sendo espécie normativa, deveria considerar que a consistência material da expectativa de conduta condensada fosse ex ante facto, e não de maneira ad hoc. Enquanto sua aplicação, a partir dessas condicionantes exercitadas na concretude e entrelaçamento com o caso atual. Portanto, seria uma árdua tarefa que o intérprete deveria se desincumbir, se se pretendesse arguir inconstitucionalidade por violação à igualdade, sob pena de se estar criando direitos não previstos.

Desse modo, não poderia o Judiciário simplesmente lançar mão de premissas do tipo “reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover integração de regiões em desenvolvimento”, para criar direitos não previstos, pois representam argumentos vagos, genéricos e, flagrantemente, juízos políticos, sem qualquer pretensão normativa. Máxime em um ambiente democrático, não podemos coadunar com a ideia de que a presunção da constitucionalidade das leis possa ser ilidida ao bel-prazer do Magistrado. Os ideais de Justiça, Ética e Moral não se confundem com o Direito, ainda que possam nele ser introjetados. Só fazem sentido no e através do Direito, portanto.

Ao adotar um argumento não jurídico na interpretação de normas programáticas, para aplicá-las ao caso em exame, acaba-se criando um protecionismo odioso em relação à venda de bens e mercadorias locais. Contudo, pragmaticamente analisando, pela lógica mercadológica, conjectura-se, como possível impacto, medida compensatória e sancionatória, pelas empresas fora da ALCMS, a instaurar uma verdadeira guerra (anti)competitiva, em que o elo mais fraco sempre sairá perdendo. Sem falar da desestruturação e desnaturação da sistemática econômica (local, principalmente) e fiscal projetadas, a ocasionar danos irreversíveis à economia e à seguridade social. Tudo por conta de um equivocado prognóstico político - juízo este, inclusive, inadequado ao Poder Judiciário, por expressa proibição constitucional[8].

Esse tipo de decisão pragmaticista é sintoma do ranço da separação entre mundo real (ser) e mundo ideal (dever-ser), em que o pêndulo de importância ora pende mais para um, ora para o outro, ainda que inconscientemente. Ao não compreenderem a impossibilidade dessa cisão, projetam uma idealidade a ser buscada a qualquer custo, olvidando-se que a facticidade que buscam ajustar é a própria condição de possibilidade dessa concreção. De tão presos à ideia de um mundo perfeito, que pudesse ser extraído de uma norma, igualmente, perfeita, nem se dão conta de que esses privilégios fiscais deflagraram somente a concentração de mercado, onde poucas famílias o dominam, praticamente inviabilizando a entrada de novos agentes, até mesmo das grandes empresas do Brasil e de fora. E de que, mesmo com tamanhas benesses, não há socialização dos resultados, de modo que a população menos favorecida continua sofrendo com preços finais mais altos, que não refletem a desoneração. Essa ideologia os cegam a ponto de nem enxergarem inúmeros outros entraves que atravancam o desenvolvimento da região, que não têm como serem resolvidos apenas através do Direito. Definitivamente, não é à canetada que se resolverá a questão, ainda mais sob o imaginário obnubilado de que seja unicamente o tributo o responsável por todas as mazelas.

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Assim, mesmo nutridos de boas intenções, crentes de que estão (in)sensibilizando a norma pela (ir)realidade, sob a escusa de se promover a “redução das desigualdades sociais e regionais” e a “integração de regiões em desenvolvimento”, decisões desse jaez podem provocar, a médio e longo prazo, exatamente o oposto como resultado indesejável. No afã de se alcançar uma igualdade extraída do seu senso (imposto como) comum, estará, justamente, violando o Princípio da Igualdade. Especialmente, à sua faceta que impõe a tributação como dever fundamental, segundo a capacidade econômica, como forma de subsidiar os direitos constitucionais materiais de 2ª, 3ª e 4ª gerações, atendendo-se, ao final, a chamada Justiça Fiscal.

A Área de Livre Comércio, portanto, não se trata de um conceito que possa ser compreendido fora da linguagem jurídica - onde, conforme dito, há inúmeros limites interpretativos. Fugir disso é pensar que existe um sentido puro da coisa em si, a ser buscado pelo intérprete, como se fosse um fato a ser alcançado pela (pretensa) racionalidade humana. Assim, mister se conter na e pela normatividade, própria da autonomização do sistema jurídico.


NOTAS

[1] http://emporiododireito.com.br/leitura/entre-a-legalidade-e-igualdade-tributaria-o-lado-oculto

[2] Os Juízes de 1ª Instância têm se utilizado do mesmo tratamento que é conferido à ZFM, pelo TRF e STJ, para a ALCMS, muito embora não façam qualquer alusão ao art.40 da ADCT, tal como aqueles Tribunais. Disso, já decorre a má utilização dos precedentes. Seja como for, ainda que o ADCT diga respeito somente à ZFM, de onde poderia resultar intepretação ainda mais “restritiva” aos benefícios concedidos à ALCMS, penso que a norma constitucional sirva de importante marco interpretativo para uma resposta adequada.

[3] Ver GUNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. 2ed. Rio de Janeiro: Forense, p.268-275.

[4] Ao dispor sobre a matéria, o Legislador, em homenagem à Integridade do Direito, respeitou essa ordem das coisas, uma vez que o benefício concedido pelo Decreto nº 517/1992, regulamentando a Lei Federal nº 8.387/1991, previu um sistema segundo o qual  (i) de um lado, trouxe um benefício fiscal para os equiparados a exportadores, i.é, restrito às empresas situadas fora da Área de Livre Comércio quando vendem mercadorias para empresas situadas dentro da ALCMS; e (ii) de outro lado, para as equiparadas a importadoras, com a entrada de mercadoria estrangeira na com suspensão dos impostos especificados..

[5] Dworkin apud GUNTHER (2011, p.273).

[6] Ver STRECK, Lenio. BEM JURÍDICO E CONSTITUIÇÃO: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO (ÜBERMASSVERBOT) À PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE (UNTERMASSVERBOT) OU DE COMO NÃO HÁ BLINDAGEM CONTRA NORMAS PENAIS INCONSTITUCIONAIS. in: <http://150.162.138.7/documents/4899>

[7] Cf. item f), de AS SEIS HIPÓTESES DE QUE FALA LENIO STRECK EM SUA TEORIA DA DECISÃO. In: https://www.conjur.com.br/dl/seis-hipoteses-lenio-streck.pdf

[8] Especialmente porque o Judiciário possui caráter contingencial e, mais, com uma série de limites de ordem cognitiva (deficiência qualitativa e quantitativa de dados relevantes), motivacional (agir estratégico), temporal, representatividade etc.

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Sobre o autor
Antonio Carlos Sirqueira Rocha

Procurador da Fazenda Nacional Bacharel em Direito pela UFMG Pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUCMINAS Pós-graduando em Compliance e Gestão Tributária pela FBT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Antonio Carlos Sirqueira. Entre a legalidade e igualdade tributária: o lado oculto - parte II. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5419, 3 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65854. Acesso em: 21 nov. 2024.

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