A atuação do delegado de polícia na prisão em flagrante delito e a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância

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03/05/2018 às 13:55
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4. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O princípio da insignificância, também denominado princípio da bagatela, consiste em postulado que orienta a atuação do Direito Penal apenas em lesões relevantes a bens jurídicos. A análise da matéria leva em consideração o caráter fragmentário e seletivo deste ramo do Direito, que apenas deve atuar quando outros regramentos, sejam eles civis, administrativos e outros, não forem suficientes para proteção ao bem jurídico tutelado. Fere a razoabilidade e proporcionalidade o uso de meio que aplica pena de privação de liberdade para um fato que trouxe repercussão lesiva irrelevante.

Entende a Doutrina Majoritária que Princípio da Insignificância ou Princípio da Bagatela originou-se do Direito Romano e tem por base a máxima "minimis non curat praetor", ou seja, o pretor (magistrado do caso) não cuida de questões insignificantes. Neste sentido, leciona o professor Rogério Greco, 2015, citando Maurício Antonio Ribeiro Lopes, que “ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador tem em mente prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social”.

Há quem entenda, entretanto, a exemplo de Maurício Ribeiro Lopes, citado em artigo de Karla Daniele Moraes Ribeiro, que “o Princípio da Insignificância teve origem, juntamente com o princípio da legalidade, durante o Iluminismo, como forma de restrição do poder absolutista do Estado”. Segundo (LOPES, 2000, p. 46):

 ....a Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Cidadão de 1789, em seu artigo 5°, implicitamente, consigna o Princípio da Insignificância, mostrando que a lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade, o que evidencia o desprezo às ações insignificantes.

O que não há dúvida é que o princípio da insignificância decorre do caráter subsidiário do Direito Penal, matéria regrada pelos ditames da intervenção mínima e da lesividade, segundo os quais na elaboração das leis o legislador deve tratar em sede penal apenas de lesões ou de ameaças de lesão que causem efetivo dano a bens jurídicos relevantes. O princípio da insignificância surge em momento posterior, quando da aplicação da lei pelo operador do direito, que agora irá fazer atuar o Direito posto abstratamente, afastando-o das hipóteses em que a lesão ao bem jurídico é ínfima. A insignificância da lesão aplicada ao caso concreto conduz a atipicidade (CABETTE, 2013).

No ordenamento Jurídico Brasileiro Penal não há previsão expressa do princípio da insignificância, sendo uma criação doutrinária já de larga aceitação jurisprudencial. O Código Penal Militar, entretanto, traz, em seus Artigos 209, § 6º e 240, § 1º, a possibilidade de o juiz considerar lesões levíssimas e furto de coisa de pequeno valor como infração apenas disciplinar, afastando a tipicidade.

Capez, 2009, em texto divulgado no site nominado Conteúdo Jurídico, esclarece com bastante propriedade:

Percebe-se, por derradeiro, que o princípio da insignificância constitui um relevantíssimo instrumento que possibilita ao operador do direito avaliar se determinada ação prevista como crime revestiu-se, no caso concreto, de conteúdo ontológico que a possa caracterizar como tal.

Tipos penais que se limitem a descrever formalmente infrações penais, independentemente de sua efetiva potencialidade lesiva, atentam contra a dignidade da pessoa humana.

É possível, assim, concluir que a norma penal em um Estado Democrático de Direito não é somente a que formalmente descreve um fato como infração penal, pouco importando se ele ofende ou não o sentimento social de justiça; ao contário, sob pena de colidir com a Constituição Federal, o tipo incriminador deverá obrigatoriamente selecionar, dentre todos os comportamentos humanos, apenas aqueles que realmente possuam lesividade social. Qualquer construção típica, cujo conteúdo contrariar e afrontar a dignidade humana,será materialmente inconstitucional, posto que atentatória ao próprio fundamento da existência de nosso Estado.

O Supremo Tribunal Federal vem acatando a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, desde que presentes a mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada. A Suprema Corte afastou ainda a possibilidade de aplicação do princípio em crimes cometidos com violência e grave ameaça, além de crimes praticados no âmbito de violência doméstica e familiar.

O Princípio da insignificância evita que se onere o aparelho Judiciário Criminal com fatos cujos resultados não assumem níveis suficientes de reprovabilidade, sendo considerados ínfimos ou irrelevantes, a ponto de terem-se como atípicas as condutas. Sobre o tema, decisão do STF em HC 120580 / MG - MINAS GERAIS:

Ementa: HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE DANO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. PREJUÍZO ÍNFIMO. CIRCUNSTÂNCIAS DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA. 1. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para se caracterizar hipótese de aplicação do denominado “princípio da insignificância” e, assim, afastar a recriminação penal, é indispensável que a conduta do agente seja marcada por ofensividade mínima ao bem jurídico tutelado, reduzido grau de reprovabilidade, inexpressividade da lesão e nenhuma periculosidade social. 2. O que se imputa ao paciente, no caso, é a prática do crime de dano, descrito no art. 163, III, do Código Penal, por ter quebrado o vidro da porta do Centro de Saúde localizado em Belo Horizonte em decorrência de chute desferido como expressão da sua insatisfação com o atendimento prestado por aquela unidade de atendimento público. 3. Extrai-se da sentença absolutória que o laudo pericial sequer estimou o valor do dano, havendo certificado, outrossim, o péssimo estado de conservação da porta, cujas pequenas lâminas vítreas foram fragmentadas pelo paciente. Evidencia-se, sob a perspectiva das peculiaridades do caso, que a ação e o resultado da conduta praticada pelo paciente não assumem, em tese, nível suficiente de lesividade ao bem jurídico tutelado a justificar a interferência do direito penal. Irrelevância penal da conduta. 4. Ordem concedida para restabelecer a sentença absolutória do juízo de primeiro grau, por aplicação do princípio da insignificância.

Também no mesmo Sentido decisão do STF em HC 126866 / MG - MINAS GERAIS, tendo como relator o Ministro Gilmar Mendes:

Habeas corpus. 2. Furto (artigo 155, § 4º, inciso IV, do CP). Bens de pequeno valor (sucata de peças automotivas, avaliadas em R$ 4,00). Condenação à pena de 2 anos e 4 meses de reclusão. 3. Registro de antecedentes criminais (homicídio). Ausência de vínculo entre as infrações. Não caracterização da reincidência específica. 4. Aplicação do princípio da bagatela. Possibilidade. Precedentes. Peculiaridades do caso. 5. Reconhecida a atipicidade da conduta. 6. Ordem concedida para trancar a ação penal na origem, ante a aplicação do princípio da insignificância.

O Ministro Celso de Mello em seu voto datado de 13/11/2012, em HC 115.239, cita as lições do professor Cezar Roberto Bitencourt:

O princípio da insignificância foi cunhado pela primeira vez por Claus Roxin, em 1964, que voltou a repeti-lo em sua obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal, partindo do velho adágio latino ‘minima non curat praetor’. A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade a bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado.


5. A ATUAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA NA PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO E A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Nos termos da Lei 12.830/13, o Delegado de Polícia, cujo cargo é exercido privativamente por bacharel em direito, deverá fazer análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias. As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado. 

Como técnico jurídico, o Delegado de Polícia, no exercício de sua atividade deve analisar as circunstâncias dos fatos trazidos para a sua análise, imediatamente, observando se a ação a ser atacada se reveste de elementos de tipicidade.

O Delegado de Polícia não está adstrito a uma análise meramente formal da lei, devendo aplicá-la no caso concreto segundo o seu convencimento pessoal, de forma fundamentada e levando em consideração as inovações doutrinárias e jurisprudenciais. Não se pode admitir uma autoridade estática, que exerça a mera atividade de subsunção da conduta à norma abstrata, senão razão alguma persistiria para se determinar como requisito de investidura no cargo o bacharelado em Direito.

Lauro Mario Melo de Almeida (ALMEIDA, 2015), em seu artigo: A Autoridade Policial e o Princípio da Insignificância, traz Julgado do Juiz de Direito do Estado de São Paulo Julio Osmany Barbin, sobre a discricionariedade das decisões técnicas e jurídicas de polícia judiciária da autoridade policial durante sua atividade profissional nos autos de nº 253/2002 da Corregedoria da Justiça, Comarca de Rio Claro/SP:

...que a autoridade policial incumbe, mercê de sua formação jurídica e, por exigência de requisitos para o ingresso na carreira policial, apreciar as infrações penais postas por seus agentes sob a luz do direito e sempre que tiver conhecimento de uma infração penal o delegado de polícia deve fazer uma avaliação, a fim de visualizar se se cuida de fato típico, como espelha a teoria da tipicidade, o “tatbestand” do direito alemão, ou não, daí procedendo de acordo com o que a lei regrar. Do mesmo modo, concluído que se cuida de ”fato típico”, incumbe ao delegado de polícia, por via da formulação de um juízo de valor, decidir se se trata de prisão em flagrante, em quase flagrante (flagrante próprio ou impróprio), flagrante preparado, ou se efetivamente, não houve flagrante. A formulação desse juízo de valor não tem regra matemática a ser seguida. Cuida-se de avaliação subjetiva, realizada com os supedâneos do conhecimento jurídico e da experiência, amealhada ao longo da carreira policial.

Diante de tal cenário, deve o Delegado de Polícia sim, exercer atividade cognitiva e não simplesmente forçar-se à aplicação literal do Direito posto. É neste contexto que se admite plenamente possível a aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado de Polícia em sede policial. Deve a autoridade policial, entretanto, agir com cautela, analisando todas as circunstâncias que envolvem o caso concreto, evitando aplicação nas hipóteses de ações cometidas com uso de violência, grave ameaça, nas hipóteses de violência doméstica e familiar, e outros que não caibam a aplicação do referido princípio.

Deverá a autoridade Policial, dentro da análise do desvalor que circunda a conduta, resultado ou ambos, verificar aspectos como o animus do agente, seus antecedentes e vida pregressa. Verificada todas estas circunstâncias se poderá fixar juízo valorativo que fundamentará decisão quanto à atuação em flagrante do agente ou despacho de atipicidade.

Assim, diante dos fatos, se deparando a Autoridade Policial com uma situação de flagrância em que vislumbre de imediato a incidência do princípio da insignificância, deverá, fundamentadamente, deixar de efetuar a prisão, diante da atipicidade do fato posto em exame, dando ciência da decisão ao Ministério Público, como titular da ação penal, isso na hipótese de crimes de ação penal de iniciativa Pública.

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Nos crimes de Ação Penal de iniciativa Privada ou Condicionada à Representação deverá a Autoridade Policial dar ciência de sua decisão para a vítima, que então recorrerá do ato, de forma interna, via recurso ao Chefe de Polícia (Art. 5º, § 2º do CPP), ou através de provocação do Ministério Público, agora como controlador externo da atividade de Polícia Judiciária.

Pensar de maneira diversa é ferir os ditames da celeridade e economia processual e no trato com a coisa pública, onerando e sobrecarregando excessivamente a máquina estatal, para situações cujo resultado jurídico se faz desvalioso e irrelevante.  O delegado de Polícia não está limitado à análise da tipicidade formal, senão nenhuma exigência técnica jurídica seria necessária para investidura no cargo, uma vez que subsunção do fato a lei pode ser feita por qualquer rábula.

Não fosse suficiente, o Delegado de Polícia, como primeiro garantidor dos direitos e garantias do indivíduo, no estado democrático de Direito, não deve privar, sem qualquer critério valorativo, a liberdade do cidadão em uma situação onde a própria ação penal está fadada ao insucesso. Em tal hipótese não se deve admitir a lavratura do Auto de Prisão em flagrante delito porque não houve a prática de crime.

Não se pode admitir que todo o aparato policial seja utilizado para atuar em uma situação onde sequer haverá justa causa para ação penal, o que já foi verificado de plano pela Autoridade Policial. O que é atípico para a Autoridade Policial também o será para a Autoridade Judiciária, afastando alguns posicionamentos de ordem subjetiva, razão pela qual o Delegado de Polícia deve fazer o filtro inicial daquelas situações concretas que reúnam elementos mínimos para ensejar justa a instauração da ação penal.

Mais ainda, não haverá qualquer prejuízo para o andamento do procedimento judicial, caso o representante do Ministério Público, titular da ação penal, deseje oferecer a denúncia e dar prosseguimento ao feito, haja vista que o inquérito policial é peça dispensável e todas as informações necessárias para o oferecimento da denúncia estarão disponíveis na delegacia de polícia e serão repassadas para que o Promotor de Justiça adote as medidas que entender necessárias, se manifestando favoravelmente com a não instauração do procedimento, requerendo a instauração e posteriormente seu arquivamento se assim entender, ou até mesmo requerendo novas diligências, e por fim, se estiver convencido da existência do crime, poderá oferecer a denúncia. Não será o encarceramento desnecessário, de alguém que não oferece risco à sociedade, envolvido em ilicitude ínfima e sem grande repercussão que nos fará enxergar a justiça, pelo contrário, nos fará proliferadores de injustiça, além do sufocamento desnecessário da máquina estatal, que já se encontra sobrecarregada, e o desprendimento de recursos para feitura de procedimentos natimortos, contrariando a celeridade e economia processual.

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Sobre o autor
José Marcio C. de Andrade

Bacharel em Direito. Aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB. Escrivão de Polícia Civil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso na Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Petrolina – FACAPE.

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