Discriminação racial, desigualdade social e possíveis equívocos na ação afirmativa brasileira: análise crítica do pensamento de Carlos Alfredo Hasenbalg

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4 Classes sociais e geografia racial brasileira

Os negros entraram em maior número, vindos da África, para a monocultura do açúcar no Nordeste, entre Maranhão e Bahia, durante os séculos XVII e XVIII. Esse grupo se concentrou nos setores econômicos mais atrasados e em regiões com menor dinamismo industrial após a abolição.

Os negros que ficaram em regiões de franca industrialização, após a abolição, experimentaram ganhos socioeconômicos em poucas décadas, mas a maioria, que ficou no Nordeste, que até hoje não passou por uma revolução industrial, experimentou imobilidade econômica num contexto agrário de estagnação.

A industrialização cria graus relativamente menores de desigualdade racial, reduzindo parcialmente a desigualdade de oportunidades entre brancos e negros. O Sul brasileiro, assim como o Nordeste, usava trabalho escravo, mas, diferentemente do Nordeste, o Sul não produziu um modo de produção escravista ou senhorial, pois a introdução do trabalho escravo no Sudeste ocorreu tardiamente, a partir de 1850, com base em tráfico negreiro interno.

Esse tráfico interno fez com que a população de escravos no Nordeste fosse, no século XIX, diminuindo quantitativamente e qualitativamente sob a ótica da força laboral. Permaneceram na região apenas doentes, mulheres, idosos e escravos desqualificados. O resto foi para o Sudeste.

De toda forma, apesar desse tráfico interno, à época da abolição, a grande maioria da população negra permanecia, em grande parte, fora da região em que uma sociedade urbana e industrial estava em formação (Sudeste).

Havia mais brancos ao sul e mais negros ao norte, o que ajudou a perenizar a pouca mobilidade da maior parte da população de cor.

Houve uma segregação geográfica dos dois grupos raciais, ou seja, uma concentração desproporcional de não brancos no Brasil subdesenvolvido e de brancos no Sudeste, ou Brasil desenvolvido, o que marca a desigualdade de oportunidades de ascensão social após a abolição em face das características heterogêneas do território brasileiro sob ótica econômica.

Em 1950, 89% das mulheres negras empregadas fora das atividades primárias e industriais concentravam-se nos serviços pessoais, principalmente no emprego doméstico, com base em relações nem sempre assalariadas. Em resumo, a casa de família passa a ser a nova senzala.

Isso indica que mesmo após a igualdade meramente formal de 1888 o grupo branco continuou a se beneficiar colonialmente da presença dos não brancos, gozando de melhores possibilidades de evitar as ocupações mais desagradáveis e mal pagas.

Durante todo o século XIX, no Brasil, a cor da pessoa operava mais fortemente como critério negativo de seleção quanto mais próximo essa pessoa chega do ápice da hierarquia ocupacional. Estranha, sob enfoque cultural, a essa época, e talvez ainda hoje, o negro doutor ou executivo.                                              


5 Mobilidade social e raça

Passados mais de um século da abolição da escravatura no Brasil, os negros e mulatos brasileiros aglomeram-se nas posições subordinadas da estrutura de classes e nos degraus inferiores do sistema de estratificação social. A evidência empírica indica que os brasileiros não-brancos estão expostos a um ciclo de desvantagens cumulativas em termos de mobilidade social intergeneracional e intrageracinal.

Nascer negro ou mulato, no Brasil, significa estatisticamente nascer em famílias carentes. As probabilidades de fugir às limitações ligadas a uma posição social mais baixa são consideravelmente menores para os não-brancos do que para os brancos de mesma origem social.

Devido aos efeitos de práticas discriminatórias sutis e de mecanismos racistas mais gerais, os negros têm oportunidades educacionais mais limitadas que os brancos de mesma origem social. Por sua vez, as realizações educacionais dos negros e mulatos são traduzidas em ganhos ocupacionais e de renda proporcionalmente menores que os dos brancos.

Se os processos de competição social, envolvidos no processo de mobilidade social individual, calcados no mecanismo de mercado, operam em detrimento do grupo racialmente subordinado, então o enfoque da análise deve se orientar para as formas de mobilização política dos não-brancos e para o conflito inter-racial, uma vez que toda a opressão social de raça também gera uma neutralização política do negro.

Essa mobilização política como forma de implemento de iniciativas para maior mobilidade social esbarra no sistema político brasileiro, que combina repressão com relações de autoridade, carregadas de matizes paternalistas, como meio de impedir a articulação de demandas populares para inibir movimentos sociais – sejam eles de orientação racial ou de classe.

A mais importante conquista da mobilização política negra, na história do Brasil, foi a adoção de ação afirmativa de cotas raciais no campo educacional.

Mas essa solução para o quadro de desigualdade histórica que se comprova pelas análises feitas precedentemente nesse texto, passados mais de quinze anos do começo da sua adoção, tem mostrado resultados empíricos razoáveis? Essa é a pergunta a ser respondida no próximo tópico.


 6 Política de cotas raciais no Brasil

As ações afirmativas podem ser definidas como toda política de tratamento diferenciado que visa corrigir, na atualidade, distorções históricas entre agrupamentos sociais ligados entre si por uma característica basal, sobretudo distorções quantitativas.

Desde 1949, na sociedade indiana, há política de reserva de vagas em prol dos “intocáveis”, que representam a casta social menos privilegiada numa coletividade singularmente hierarquizada e sectarizada. Essas políticas permanecem até os dias atuais, mais de sessenta anos após a sua implementação, o que gera a indagação sobre qual a duração razoável de uma ação afirmativa.

As ações afirmativas, enquanto políticas públicas de igualização artificial das pessoas ganharam notoriedade a partir da década de 60 durante o governo Kennedy nos Estados Unidos. A intenção, numa época em que ainda se tentava executar o decidido no caso Brown (1954), era impedir a discriminação na admissão a empregos ou vagas educacionais. Não havia, nesse primeiro momento, a prática da reserva de vagas, o que poderia ser visto como reforço à doutrina separate but equal.

Kennedy foi quem propôs ao parlamento norte-americano a Lei de Direitos Civis, mesmo profetizando que a aprovação daquele diploma seria um golpe para o partido democrata em todo o sul dos Estados Unidos. A lei só seria aprovada em 2 de julho de 1964, já sob o governo de Lyndon Johnson.

A visita que Kennedy fazia ao Texas, em 1963, quando foi assassinado, tinha a ver com a prevenção de prejuízos políticos no Sul por conta das suas iniciativas para dar fim à discriminação contra não-brancos, sobretudo a propositura da Lei de Direitos Civis.

A profecia, contudo, concretizou-se. Em 1960, dos 15 Estados mais ao sul dos Estados Unidos o partido democrata obteve vitória em 9, incluindo o Texas. Na primeira eleição após a aprovação da Lei de Direitos Civis, em 1968, o partido democrata venceu apenas no Texas, desses mesmos quinze estados mais ao sul. É inevitável fazer a ligação entre esses dois resultados antagônicos e a aprovação da norma que deu início ao fim da segregação racial norte-americana.

De fato, quando se compara o mapa político-federativo dos Estados Unidos entre 1959 e 1969, verifica-se um “avermelhamento” rápido e geral de todo o Sul, o que demonstra ser verídica a tese de racismo estrutural na formação histórica norte-americana. Em outras palavras, nos Estados Unidos o racismo não se encerra em um cheque da Previdência Social ou uma vaga na Universidade, pois se estende a um mindset de que negros, por maior que seja o seu saldo bancário, são diferentes.

Ações afirmativas como conceito numérico passaram a ser adotadas, nos Estados Unidos, a partir do governo de Richard Nixon, o republicano que venceu as eleições de 1968, mas a política de reserva de vagas era vista, à época, como um racismo invertido que inclusive aumentava a dependência do negro em relação ao poder público.

O que não se antevia, à época, era a possibilidade inversa, ou seja, de que o Estado se tornasse refém da sua própria política pública. Esse tipo de benefício à minoria, quando implantado, dificilmente consegue ser extinto, e isso se explica por razões políticas. Essa “refenização” do Estado leva à eternização da prática, o que depõe contra seus próprios resultados. 

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Existe um esforço considerável para descrever tais políticas como temporárias, mesmo quando os fatos indicam a sua permanência e crescimento. Para Sowell as diferenças étnicas são universais e naturais, e não são estancadas por política de cotas, pois minorias com capacitações específicas tendem a ser super-representadas em áreas específicas de trabalho[7].

As capacidades específicas de uma pessoa tendem a ser intergeracionais, uma vez que a família é, na verdade, a esfera em que há maior difusão de cultura, de modo que as correções artificiais por parte do Estado tendem a ser esforços infrutíferos.

No Brasil, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ainda em 2000, foi a primeira a estabelecer um sistema de cotas, mas baseada em perfil socioeconômico, e não racial. A Universidade de Brasília, em 2004, foi a primeira a adotar reserva de vagas para negros, ou seja, a adotar o critério racial como diferenciador.

A lei federal nº 12.711, de 2012, acabou por uniformizar o critério racial entre as Universidades brasileiras, ao prever que metade das vagas sejam destinadas a concluintes do ensino médio em escolas públicas e, dessa metade, deva ser tirada uma quantidade de vagas, para negros, proporcional à população local de cor, conforme dados do IBGE.

De acordo com pesquisa da agência Hello Research, quando as cotas são sociais elas contam com aprovação de 54% da população total do país, considerada uma amostragem significativa e supra regional. Já quando se fala em cotas raciais, esse apoio decresce a 42%[8].

Um grande problema do sistema é a alta miscigenação brasileira e o procedimento de auto-declaração, em que o próprio candidato se julga branco ou negro, ainda que passe por uma avaliação externa.

No Brasil, em que o racismo é do tipo colonial, ou seja, baseado em aspectos econômicos, talvez essa não seja a melhor maneira de dar execução ao programa, pois o torna meio para manutenção de um status já historicamente favorecido, dentro da minoria.

Em outras palavras, quem acaba sendo mais privilegiado são aqueles candidatos que contam com mais recursos, materiais e imateriais, dentro do conjunto que se quer historicamente resgatar, não sendo incomum um monopólio das cotas por negros privilegiados sob a ótica socioeconômica.


Conclusão

Os estudos antropológicos e sociológicos de Carlos Hasenbalg e Florestan Fernandes apontam para a existência de uma segregação racial histórica no Brasil, mas de tipo diferente da ocorrente nos Estados Unidos. Enquanto o racismo no Brasil é do tipo colonial, nos Estados Unidos é do tipo estrutural.

De toda forma, em ambos os modelos se constata uma desigualdade histórica de acesso a oportunidades sociais entre negros e brancos, o que aponta para a necessidade de políticas públicas de resgate dessas desigualdades. A principal dessas políticas, na órbita nacional e internacional, tem sido as ações afirmativas, com reserva de vagas educacionais e de trabalho para os negros.

Contudo, os principais equívocos dessas políticas públicas têm sido não atentar para a possibilidade de criação de castas privilegiadas no conjunto minoritário que se quer resgatar e a “refenização” política do Estado quanto a essas ações, o que gera a sua eternização.

A eternização da ação afirmativa, por outro lado, depõe contra a sua própria eficácia no tempo e pode vir a gerar a oficialização da diferença, trazendo o risco de conflitos inter-raciais em momentos de crise, assim considerados os períodos em que sazonalmente as oportunidades sociais se escasseiam para todos.                        


Notas

[1] LOVEJOY, Paul E; RICHARDSON, David. The Business of Slaving: Pawnship in Western Africa, c. 1600–1810. The Journal of African History, 2001, n. 42, p. 67–89

[2] TANNENBAUM, Frank. Slave and citizen, 1947.

[3] Hoetink, H. Slavery and race relations in the Americas: comparative notes on their nature and nexus. Harper and Row: Nova York, 1973.

[4] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vol. I – O legado da raça branca. São Paulo: Edusp, 1965.

[5] HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. São Paulo: Humanitas, 1980.

[6] HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. São Paulo: Humanitas, 1980, p. 96-125.

[7] SOWELL, Thomas. Ações afirmativas ao redor do mundo: um estudo empírico sobre cotas e grupos preferenciais. São Paulo: É realizações, 2017, p. 20-40.

[8] 1274 pessoas em 70 cidades, incluindo capital e interior, nas cinco regiões do Brasil. Disponível em www.helloresearch.com.br. Acesso em 04.05/2018

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Requisito parcial para aprovação na cadeira de Jurisdição Política, do Doutorado em Direito do Uniceub/DF, sob os auspícios do Professor Luís Carlos Martins Alves Júnior

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