“Castigá-lo-ei, pois, e soltá-lo-ei” (Lucas, 23:16). A sentença proferida por Pilatos se constitui num evidente exemplo do efeito prático da real motivação que fundamenta os decretos cautelares segregatórios, cujo boom no contexto judiciário atual erige a cada dia um Estado Policialesco, a despeito do já fragilizado Democrático de Direito (ZAFFARONI, 2001).
A punição, antes consequência condenatória, legitimada, em tese, pelo juízo exauriente de culpa, agora, é o meio para se legitimar o processo, pouco importando a improvável condenação ou a evidente absolvição. Ao contrário disso: prende-se sumariamente exatamente porque, também numa análise sumária, já se sabe que não se logrará uma pena legítima – daí porque “castiga-se logo, ainda que para soltar depois”.
Para se sustentarem aos olhos dos espectadores, os atores encenam os atos, um a um, com a mesma sistematização de outros casos. O convite? Um indício. Seu mensageiro? Um delator para subsidiar a persecução. A partir daí, com um título criativo se desenrola a operação investigativa, em que malabarismos argumentativos jurídicos são usados para requerer cautelares, juntamente com mágicas de colheita e validação de provas. O réu, por vezes alheio ao teor do depoimento de seus delatores (ou mesmo à identidade do tertius ignotus), a origem das provas, ou, ainda, surpreendido por sua condução ou mandado de busca, é o palhaço que resta para a montagem do picadeiro.
A quem satisfaz o espetáculo? Ora, o escopo das decisões não é outro senão o de aparar a sede salivante que escorre daqueles que clamam por repressões imediatas e duras a qualquer tênue sinal de infração das normas - uma população espectadora alimentada pelo pão das decisões ergastulares, amassado por autoridades heroicas[1]. No coliseu do processo penal, o réu é atirado às feras, as quais também são seus julgadores a lhes devorarem preventivamente a liberdade, a dignidade e o estado de inocência.
Não é preciso ser julgado para sofrer dos efeitos da prisão e da pena antecipada, quando o processo se constitui numa via crúcis, em que o acusado sofre mais do caminho para o calvário do que na própria cruz. As prisões preventivas se familiarizam nos espaços midiáticos da rotina do cidadão brasileiro, sob a velha roupagem dos floreios argumentativos das noções abstratas de ordem pública, conveniência da instrução criminal e outros conceitos de um código processo penal parnasiano, constituindo o que Michel Foucalt denomina de “o grande espetáculo da cadeia” (FOUCALT, 2013, p. 248), relacionado “com a antiga tradição dos suplícios públicos”. (idem, ibidem).
Da manhã à noite, cidadãos são estimulados a acreditarem no caos social e que os males possuem responsáveis expiatórios. A decretação de prisões e as centenas fases de investigações policiais remodela o entretenimento da sociedade, interessada nos showdiciários – noticiários sobre as decisões do judiciário, invertendo a lógica de que o Direito deve se aproximar do cidadão, para a aproximação do cidadão interessado pelo Direito, não pelo conhecimento jurídico, mas pelo conflito deste mundo particular.
Nesse espetáculo, ninguém é mais vitimado do que aqueles que estão sob o foco da investigação. Foi assim com o ex-Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, exposto ao escândalo de uma operação policial por meio de uma delação, com prisão decretada para ser solto logo depois e colher os frutos da execração pública, do desprezo da comunidade, do incessante foco dos holofotes midiáticos e das restrições incompreensíveis de que sequer ingressasse no recinto universitário. Ele também não escapou à espetacularização do calvário processual criminal.
Os impactos psicológicos do processo penal foram sensivelmente sentidos no investigado, culminando na fatalidade do seu suicídio. Se mesmo nas prisões, a grande ocorrência de suicídios já é “um bom indicador sobre os graves prejuízos psíquicos que a prisão ocasiona” (BITENCOURT, 2004, p. 197), não é diferente com as cautelares que segregam indiscriminadamente os sujeitos acusados - a prisão, seja qual for, é uma “máquina deteriorante” (ZAFFARONI, 2001, p. 135).
No bolso do ex-Reitor foi encontrado um bilhete onde estava escrito: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!” O suicídio do Reitor evidencia, às escâncaras, a necessidade que nossa sociedade tem em discutir a exasperação dos instrumentos mais criminais, mais rigorosos e restritivos à liberdade próprios do Estado Policial no qual se encontra.
Lamentar a fatalidade é, mais do que nunca, incitar o debate sobre o papel da mídia nas funções judiciais e a trágica faceta da politização do processo penal brasileiro, que agrada a sanha punitiva de interessados determinados e entretém os menos perceptíveis sobre a armadilha a qual se tornou o sistema jurídico. Armadilha essa em que amanhã pode cair qualquer um de nós. Se para o gestor de uma Universidade a prisão cautelar foi considerada necessária como demonstração do poderio totalitário estatal, para aqueles desconhecidos das classes sociais mais vulneráveis, o império da lei pode ser sempre mais severo. “Porque, se ao madeiro verde fazem isto, que se fará ao seco?” (Lucas 23:31).
Referência
BITENCOURT, Cezar Roberto, Falência da pena de prisão: Causas e alternativas. São Paulo: Editora Saraiva, 2004.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. 41º. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
SÁ, Alvino Augusto de. SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
Nota
[1] A linguagem jornalística, ao utilizar argumentos romanescos na sua narrativa, apresenta personagens como vilões, heróis ou vítimas. Assim, os fatos noticiosos são tratados como meros conflitos entre forças antagônicas: uma força heroica e outra vilã. (SÁ, SHECAIRA, 2008, p. 55).