2. A APLICAÇÃO SUPLETIVA E SUBSIDIÁRIA DO CPC AOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS E NO ÂMBITO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS
Com o advento da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, que não somente revogou como trouxe novos dispositivos e conceitos, o Código de Processo Civil destinou um capítulo, constante do Livro I – Das Normas Processuais Civis, para tratar “Da aplicação das normas processuais”, disciplinando, dentre outras questões, o emprego de suas disposições nos processos eleitorais, trabalhistas e administrativos, conforme prescreve o artigo 15 do ordenamento supracitado:
Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
Inicialmente o referido dispositivo sofreu críticas no sentido de que o legislador teria restringido sua fala ao elaborar o texto da lei. Isso porque a aplicação supletiva e subsidiária foi entendida, em uma interpretação literal, apenas quando da ausência de normas regulamentadoras nos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, ou seja, ambas as expressões serviriam para explicar o mesmo fenômeno.
Nessa esteira, salutar se faz mencionar a interpretação de Teresa Arruda Alvim Wambier acerca da matéria:
O legislador disse menos do que queria. Não se trata somente de aplicar as normas processuais aos processos administrativos, trabalhistas e eleitorais quando não houver normas, nestes ramos do direito, que resolvam a situação. A aplicação subsidiária ocorre também em situações nas quais não há omissão. Trata-se, como sugere a expressão ‘subsidiária’, de uma possibilidade de enriquecimento, de leitura de um dispositivo sob outro viés, de extrair-se da norma processual eleitoral, trabalhista ou administrativa um sentido diferente, iluminado pelos princípios fundamentais do processo civil. A aplicação supletiva é que supõe omissão. Aliás, o legislador, deixando de lado a preocupação com a própria expressão, precisão da linguagem, serve-se das duas expressões. Não deve ter suposto que significam a mesma coisa, se não, não teria usado as duas. Mas como empregou também a mais rica, mais abrangente, deve o intérprete entender que é disso que se trata. (WAMBIER, 2015, p. 75, grifo nosso)
Contudo, o Deputado Efraim Filho, na função de Relator-Parcial da proposta legislativa, Emenda n.° 80/11 (Dep. Reinaldo Azambuja), que inseriu a expressão “supletiva” no projeto do novo CPC, no Relatório Parcial elaborado pela Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei n.º 6.025, de 2005, do Senado federal, e apensados, que tratam do Código de Processo Civil (revoga a lei n.º 5.869, de 1973), esclareceu que a “aplicação subsidiária visa ao preenchimento de lacuna; aplicação supletiva, à complementação normativa” (FILHO, 2012, p. 41).
Posteriormente, a Comissão Especial, em Parecer proferido aos Projetos de Lei n°s 6.025, de 2005, e 8.046, de 2010, ambos do Senado Federal, levados à apreciação do Congresso Nacional, tendo como Relator-Geral o Deputado Sérgio Barradas Carneiro, concluiu que “quanto à Emenda n.º 80/11, acolhe-se a proposta apenas para fazer incluir a previsão de que as disposições do CPC serão aplicadas supletiva e subsidiariamente” (CARNEIRO, 2012, p.353).
Por fim, o Congresso Nacional, em substitutivo aos Projetos de Lei n°s 6.025, de 2005, e 8.046, de 2010, e demais apensados, decretou a redação que hoje vigora no artigo 15, objeto de estudo deste capítulo.
A sutil diferença apontada pelo Deputado Efraim Filho foi trabalhada por Edilton Meireles, que delineou dois tipos de omissão legislativa: a absoluta ou integral, atinente à subsidiariedade, e a relativa ou parcial, relativa à supletividade.
De qualquer forma, podemos nos valer da ideia do que seria uma omissão absoluta (ou integral) e uma omissão relativa (parcial) para apontar essa diferença. Isso porque o próprio art. 15 do NCPC estabelece que somente "na ausência de normas [...] as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente". A omissão, portanto, tanto deve ocorrer para aplicação da regra supletiva, como para a regra subsidiária. (MEIRELES, 2014, p. 1-2)
A omissão absoluta, ou integral, diz respeito à ausência completa de previsão legal acerca de determinada matéria, ou seja, não há regra. Nesse contexto, ocorre a aplicação subsidiária da legislação processual civil visando preencher essa lacuna.
A aplicação subsidiária teria, assim, cabimento quando estamos diante de uma lacuna ou omissão absoluta. Ou, em outras palavras, quando omisso o sistema ou complexo normativo que regula determinada matéria [...]. Por esse fenômeno, a regra subsidiária se integraria à legislação (sistema) principal com objetivo de preencher o vazio deixado pelo corpo de regras que tratam de determinada matéria. Preencheria os claros do complexo normativo principal, com novos preceitos. (MEIRELES, 2014, p. 2)
De outra banda, a omissão relativa, ou parcial, verifica-se quando da existência de norma acerca de determinada matéria, no entanto, ela é incompleta. Sendo assim, a aplicação do CPC será supletiva, ou seja, com o intuito de complementar tal dispositivo.
[...]a regra supletiva processual é aquela que visa à complementar uma regra principal. Aqui não se estará diante de uma lacuna absoluta ou do complexo normativo. Ao contrário, estar-se-á diante da presença de uma regra, contida num determinado subsistema normativo, regulando determinada situação/instituto, mas cuja disciplina não se revela completa, atraindo, assim, a aplicação supletiva de outras normas. (MEIRELES, 2014, p. 2)
Acerca da incidência do CPC em outros diplomas processuais, dentre os quais destaco os processos administrativos, em especial no âmbito dos Tribunais de Contas, objeto do presente trabalho, importante a lição de Elpídio Donizetti quando afirma, em relação ao artigo 15, que esse “dispositivo reitera a já reconhecida função integrativa das normas de direito processual civil” (DONIZETTI, 2017, p. 17). No mesmo sentido é o posicionamento de Humberto Theodoro Júnior:
Cabe ao Código de Processo Civil não apenas disciplinar a jurisdição civil, mas também funcionar como a principal fonte do direito processual no ordenamento jurídico brasileiro. [...] Cabe, pois, ao estatuto civil o papel de fonte de preenchimento de todas as lacunas dos outros diplomas processuais. (THEODORO JÚNIOR, 2017, p. 98, grifo nosso)
Curial a menção do autor quando da aplicação do direito processual civil como fonte dos demais diplomas processuais. De todo o exposto até aqui, o se verifica é a indubitável relação presente entre a disciplina do processo e o regime constitucional em que o instrumento do processo floresce.
Verdadeiros sustentáculos do Estado Democrático de Direito, os princípios basilares do processo estão previstos na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, dentre os quais destaca-se: o princípio da igualdade (art. 5.º, caput, e I, da CF/1988); do juiz natural (art. 5.º, XXXVII e LIII, da CF/1988), do devido processo legal (art. 5.º, LIV, da CF/1988); do contraditório (art. 5.º, LV, da CF/1988); da ampla defesa (art. 5.º, LV, da CF/1988); da publicidade dos atos processuais (art. 5.º, LX, da CF/1988); e da motivação das decisões judiciais, constante do art. 93, IX, da CF/1988.
Sob esse prisma, afirmam Eduardo Cambi e Gustavo Salomão Cambi que a disposição de princípios processuais na Constituição permite a identificação de uma base comum a todos os tipos de processo, constituindo este instrumento público como meio de concretização dos valores constitucionais.
A previsão de princípios processuais na Constituição tem o objetivo de possibilitar uma estruturação comum para os vários tipos de processo. Com isso, permite-se um tratamento unitário e isonômico do processo administrativo, civil e penal, uma vez que todos eles acabam sendo orientados pelos mesmos conceitos essenciais. Essa ‘base comum’ permite a melhor compreensão e concretização do ‘espírito constitucional’ pelos legisladores processuais e pelos operadores jurídicos.
Assim, o processo deixa de ser visto como um mero conjunto de atos que compõem o procedimento previsto nas leis, para ser considerado um instrumento de efetivação dos valores constitucionais. Dessa maneira, o mecanismo processual não pode ser concebido apenas como um instrumento técnico, voltado à resolução de um conflito de interesses, nem, muito menos, como um mecanismo neutro, sem preocupações teleológicas. O processo passa, então, a ser entendido como um instrumento ético que visa a concretização dos valores mais caros ao Estado Democrático de Direito, engendrados pelo constituinte. Por isso, também deixa de ser compreendido como mera técnica, estando profundamente influenciado por fatores históricos, sociológicos e políticos. (CAMBI; CAMBI, 2006, p. 4)
Desse modo, é possível concluir que, apropriando-se o processo civil dos valores constitucionais, bem como diante da influência desses princípios nos demais diplomas processuais, o estatuto civil também constitui fonte de preenchimento de lacunas, devendo, portanto, ser observado, nos termos do artigo 15 do CPC.
É cediço que, apesar das diversas interpretações constitucionais, prevalece o entendimento no sentido de ser o Tribunal de Contas órgão de extração constitucional, independente e autônomo, auxiliador do Poder Legislativo no exercício do controle externo. Sua competência administrativa-judicante, prevista no artigo 71 da Constituição Federal, o caracteriza como tribunal administrativo.
Do comparativo feito entre o processo administrativo de controle externo do Tribunal de Contas da União e os processos do Poder Judiciário, Odilon Cavallari de Oliveira aponta que:
Não obstante o processo administrativo, em particular o de controle externo, ter características que o distinguem, em certos aspectos, dos processos do Poder Judiciário, trata-se, de qualquer modo, da atuação estatal mediante a utilização de um instrumento comum, o processo, que, reconhecidamente, guarda pontos de convergência com os outros ramos do direito, seja pela sua forma de condução, seja pela incidência de alguns princípios processuais comuns. (OLIVEIRA, 2007, p. 63)
Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2013) caminha no mesmo sentido ao afirmar que, apesar das particularidades que caracterizam e diferenciam os processos judiciais e administrativos, ambos empregam um instrumento comum, qual seja, o processo, no desempenho da atividade estatal atinente à aplicação da lei ao caso concreto. Sob essa ótica, verifica-se que, embora regidos por princípios próprios, não deixam de observar aqueles previstos de forma expressa ou implícita na Carta Magna.
Outrossim, impende consignar que a relação processual triangular no Tribunal de Contas é sui generis, uma vez que “a unidade técnica do TCU incumbida da instrução do processo e o próprio responsável posicionam-se em dois vértices (partes), enquanto o terceiro, destinado ao ‘Estado-juiz’, é ocupado pelo relator ou Colegiado competente (Câmaras ou Plenário)” (ZYMLER, 1997, p. 166).
Acerca da aplicação do artigo 15 nos processos administrativos dos Tribunais de Contas, importante constatar que antes mesmo de tornar-se norma cogente, a permissividade de se aplicar a lei processual civil, supletiva e subsidiariamente, nos Tribunais de Contas, para colmatar lacunas existentes, iniciou-se no Tribunal de Contas da União com a elaboração da Súmula n° 103, de 25 de novembro de 1976, determinando que:
Na falta de normas legais regimentais específicas, aplicam-se, analógica e subsidiariamente, no que couber, a juízo do Tribunal de Contas da União, as disposições do Código de Processo Civil.
Posteriormente, o Regimento Interno do Tribunal, aprovado pela Resolução TCU n° 155, de 4 de dezembro de 2002, alterada pela Resolução TCU n° 246, de 30 de novembro de 2011, admitiu o emprego das disposições do CPC de forma subsidiária, em seu artigo 298:
Art. 298. Aplicam-se subsidiariamente no Tribunal as disposições das normas processuais em vigor, no que couber e desde que compatíveis com a Lei Orgânica.
Acolhendo a orientação do TCU, grande parte dos Tribunais de Contas adotou, em seus respectivos regimentos internos, o posicionamento expresso no artigo supracitado. Exemplificando, temos o Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, objeto de análise deste estudo, que prevê em seu Regimento Interno, aprovado pela Resolução Normativa n° 002, de 04 de dezembro de 2002, com fulcro no artigo 401, inciso IV, o que segue:
Art. 401 - Este Regimento entra em vigor na data de sua publicação, observando-se, na sua aplicação, as seguintes regras processuais:
[...]
IV - os casos omissos ou dúvidas serão resolvidos mediante aplicação subsidiária da legislação processual civil ou, quando for o caso, por deliberação do Tribunal Pleno; (grifo nosso)
Corroborando o entendimento esposado inicialmente pelo TCU, foi a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal em análise do Mandado de Segurança n° 24.961-7, que reconheceu a aplicação subsidiária do CPC em processo administrativo do Tribunal de Contas:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE CONTAS. TOMADA DE CONTAS ESPECIAL: CONCEITO. DIREITO DE DEFESA: PARTICIPAÇÃO DE ADVOGADO. I. - A Tomada de Contas Especial não constitui procedimento administrativo disciplinar. Ela tem por escopo a defesa da coisa pública. Busca a Corte de Contas, com tal medida, o ressarcimento pela lesão causada ao Erário. A Tomada de Contas é procedimento administrativo, certo que a extensão da garantia do contraditório (C.F., art. 5º, LV) aos procedimentos administrativos não exige a adoção da normatividade própria do processo judicial, em que é indispensável a atuação do advogado: AI 207.197-AgR/PR, Ministro Octavio Gallotti, "DJ" de 05.6.98; RE 244.027-AgR/SP, Ministra Ellen Gracie, "DJ" de 28.6.2002. II. - Desnecessidade de intimação pessoal para a sessão de julgamento, intimados os interessados pela publicação no órgão oficial. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO DISPOSTO NO ART. 236, CPC. Ademais, a publicidade dos atos administrativos dá-se mediante a sua veiculação no órgão oficial. III. - Mandado de Segurança indeferido. (STF, Tribunal Pleno, MS n° 24.961-7, Rel. Min. Carlos Velloso, grifo nosso)
Demais disso, ainda que em uma análise perfunctória, importante destacar, também, que o emprego do Código de Processo Civil no âmbito dos Tribunais de Contas teve por fundamento o artigo 4° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto Lei n° 4.657/1942 – combinado com o artigo 140 do CPC:
Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (LINDB)
Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.
Parágrafo único. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei. (CPC)
Do exame dos dispositivos, observa-se uma vedação ao non liquet, expressão que, segundo Elpídio Donizetti (2017), reporta à Roma Antiga, época em que os juízes poderiam deixar de decidir uma controvérsia submetida ao seu julgamento.
Desse modo, buscando a utilização efetiva da lei processual civil nas Cortes de Contas, o método possível adotado foi a analogia, que, na lição de Maria Helena Diniz, consiste “em aplicar, a um caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado.” (DINIZ, 2005, p.112).
Isso posto, é possível constatar que a aplicação da lei processual civil ao processo administrativo no âmbito dos Tribunais de Contas era recorrente. Sendo assim, a inovação apresentada pelo novo CPC, prevista em seu artigo 15, quando da incidência de suas disposições nos demais diplomas processuais, em especial nos processos administrativos atinentes aos Tribunais de Contas, apenas evidenciou, expressamente, uma realidade processual já existente.