Artigo Destaque dos editores

Legalidade do decreto de ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros

Exibindo página 1 de 3
22/04/2005 às 00:00
Leia nesta página:

RESUMO

Em 27 de setembro de 2001 foi editado o Decreto Presidencial sem número que ampliou o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. A ampliação causou grande revolta entre as populações tradicionais da região, proprietários de terras e demais moradores, que se sentiram prejudicados ao verem suas terras atingidas pelo decreto. Uma associação civil de moradores e proprietários foi fundada em função da ampliação e quatro dos maiores possuidores de glebas da região impetraram Mandado de Segurança junto ao Supremo Tribunal Federal. Argumentaram que a lei que dava suporte ao decreto de ampliação carecia ainda de regulamentação. Alegaram, ainda, que não houve a consulta pública exigida por lei, assim como estudos técnicos também determinados pelo SNUC, Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Após a impetração do Mandado de Segurança o SNUC foi regulamentado e o Ibama, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, juntamente com o Ministério do Meio Ambiente, realizaram reuniões com os moradores da região, que continuaram demonstrando grande descontentamento. Daí veio o questionamento acerca do cumprimento formal dos pré-requisitos legais para a ampliação de uma unidade de conservação como aquela. Esse estudo verificou que estes pré-requisitos não foram cumpridos em três aspectos: a ausência de regulamentação da lei que disciplina ampliação de unidades de conservação, a falta da consulta pública conforme determinado pela mesma lei, e, principalmente, a inconstitucionalidade do decreto de ampliação. Chegou-se à conclusão de que a melhor solução para a questão será o encaminhamento de projeto de lei ao Congresso Nacional pela Presidência da República propondo a ampliação da área e mudança de sua finalidade, passando de Parque Nacional para Floresta Nacional, o que permitirá a permanência das populações tradicionais no local de acordo com o Plano de Manejo da unidade. O projeto de lei deve ser enviado depois de cumprida a exigência da consulta pública, dando cumprimento ao SNUC. A apreciação do projeto de lei pelo Congresso dará execução à Constituição Federal e permitirá ainda uma ampla discussão democrática do tema com a sociedade e as populações atingidas pela ampliação.


Palavras-chave: Direito Ambiental, unidades de conservação, ampliação, legalidade.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACTP – Associação Cidadania, Transparência e Participação;

ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade;

Art. – Artigo;

CF/88 – Constituição Federal de 1988;

CONPARQ – Conselho Consultivo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros;

Dec. – Decreto;

DJU – Diário da Justiça da União;

Exmo(a). – Excelentíssimo(a);

IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal;

Min. – Ministro ou Ministra;

MMA – Ministério do Meio Ambiente

MS – Mandado de Segurança;

ONG – Organização Não Governamental;

PGR – Procuradoria Geral da República;

PL – Projeto de Lei;

PNCV – Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros;

SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza;

STF – Supremo Tribunal Federal;

Unesco – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura.


INTRODUÇÃO

Desde sua criação em 1961, quando ainda se chamava Parque Nacional do Tocantins, o atual Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros teve seu tamanho diminuído duas vezes em função, principalmente, de insatisfação de proprietários de terras e moradores da região. Recentemente este parque foi ampliado, o que voltou a trazer à tona manifestações de descontentamento.

Com a ampliação o parque chegou a receber título de Patrimônio Mundial Natural concedido pela Unesco. No entanto, o decreto que ampliou o parque foi revogado por decisão do Supremo Tribunal Federal, apesar desta ainda não haver transitado em julgado.

A grande discussão que houve foi o confronto entre a preservação da natureza e a ocupação e propriedade das terras, principalmente no que diz respeito à valorização do aspecto humano na definição de unidades de conservação.

A metodologia utilizada foi a de investigação jurídico-teórica, enfatizando os aspectos conceituais, estruturais e doutrinários da questão. Através uma abordagem de pesquisa jurídica do problema, que possibilita uma comparação entre normas e doutrina do nosso sistema jurídico, chegou-se às conclusões apresentadas e que buscam dar as soluções definitivas para a questão.

Não é a relevância da criação ou alteração de uma unidade de conservação que é questionada, mas sim sua legalidade.


I. Histórico:

Em 11 de janeiro de 1961, através do decreto nº 49.875, seguindo proposta da Fundação Brasil Central através de carta datada de 4 de outubro de 1960, Juscelino Kubistschek, antecipando-se aos movimentos ambientais que na época ainda não eram significativos (a Declaração do Meio Ambiente de Estocolmo somente foi elaborada em 1972), criou o Parque Nacional do Tocantins, com área de 625.000 hectares (1).

Após a criação do parque, os antigos proprietários das áreas envolvidas continuaram a explorar os recursos naturais da região, embora suas terras estivessem dentro dos limites da unidade de conservação. Essa prática somada à forte pressão política e à falta de indenização dos proprietários obrigou o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, a propor uma grande diminuição dos limites do parque.

A portaria nº 42/1966 do Ministério da Agricultura designou uma comissão encarregada de examinar os problemas dos Parques Nacionais. Após percorrer praticamente todo o território nacional, apresentou em 1969 o relatório "Parques Nacionais e Reservas Equivalentes no Brasil", onde ponderam que:

Dada a grande extensão do Parque (n.a.: até então ainda Nacional do Tocantins), o terceiro em área, a comissão não teve a oportunidade de visitar a parte florestal, onde a mata e a fauna amazônica complementam a paisagem, tornando-o um parque bastante variado. No entanto, sugerimos um reexame da área, na parte da Chapada dos Veadeiros, em vista do problema econômico social advindo da criação do Parque sem a necessária aquisição de terras. Isso vem acarretando a diminuição de atividades agropecuárias e mineiras, tornando difícil a vida da população rural e a sobrevivência econômica do município de Alto Paraíso, hoje reduzido à área da cidade, pelo Decreto de criação do Parque (IBDF, 1969). (2)

Assim, entre 1972 e 1981 o perímetro do parque foi diminuído drasticamente. A nascente do Rio Preto, principal rio do parque, foi excluída, e o parque acabou atingindo o tamanho de apenas cerca de 65.000 hectares, praticamente 10,4 % de seu polígono original. Atingia, então, os municípios de Cavalcante, Nova Roma e Alto Paraíso de Goiás.

O então Presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, através do Decreto nº 70.492, de 11 de maio de 1972, diminuiu o parque de 625.000 hectares para 171.924 hectares, momento em que o nome "Parque Nacional do Tocantins" foi mudado para "Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros", pois os limites já não mais atingiam o rio Tocantins. A justificativa apresentada para a redução do parque na exposição de motivos nº 084, encaminhada pelo então Ministro da Agricultura ao Presidente da República, alega que "a reformulação dos limites do Parque, sem prejuízo das superiores finalidades da sua criação, atende ainda a imperativos econômicos e sociais, com a exclusão das principais áreas de atrito" (3).

O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros sofreu nova redução em 17 de novembro de 1981, através do decreto presidencial nº 86.596 assinado pelo presidente João Batista Figueiredo. Assim, o parque chegou a, aproximadamente, 65.000 hectares, ficando o município de Nova Roma fora dos limites do parque.

Na exposição de motivos enviada ao Presidente em 26 de março daquele ano, é argumentado que:

Novos estudos foram realizados na área atual do referido Parque Nacional e a soma destes, juntamente com os esforços científicos, tanto no âmbito do Estado como no Federal, apresentaram-nos resultados que demonstram a imprescindibilidade de propor nova modificação dos limites descritos no Decreto nº 70.492, de 11 de maio de 1972...

Em virtude de grande ocupação, que se processava na época do Decreto, e a instalação de projetos agropecuários para na área, a implantação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros não absorvia condições ideais para a sua efetivação, já que viria causar inúmeros problemas de aspectos sociais.

Com a alteração que ora se propõe, fica excluída a área já degradada, evitando-se tensões sociais, além de permitir que o Governo do Estado de Goiás promova maior desenvolvimento da região, com a implantação de projetos agropecuários e industriais na região de Alto Paraíso. (4)

Em Decreto Presidencial sem número de 27 de setembro de 2001, o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso ampliou novamente a área do parque para 235.000 hectares, passando a incluir áreas dos municípios de Terezina de Goiás e São João D’Aliança, além de Nova Roma, Alto Paraíso de Goiás e Cavalcante.

A nova ampliação causou revolta na população atingida, em particular nos proprietários de terras alcançadas, conforme pode ser conferido pela reportagem do jornal Correio Braziliense de 18.10.2001, intitulada "Revolta dos Fazendeiros":

(...) O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) está enfrentado a ira de agricultores, pecuaristas e de proprietários de áreas turísticas na região. (...)

"O Ibama não conseguiu nem indenizar os donos de terras desapropriadas na área original, como quer ampliar o parque ainda mais?", contesta o presidente do Sindicato Rural de Alto Paraíso, Jair Barbosa. (...)

Além dos problemas jurídicos no Parque da Chapada, há cerca de 200 famílias que moram em povoados dentro dos novos limites. O Tapa Olho é o maior, tem cem famílias, no município de Nova Roma. Esses povoados são habitados por posseiros antigos, alguns são Calungas, descendentes de escravos (quilombolas) que vivem em áreas vizinhas.

Os prefeitos criticaram a ampliação feita pelo Ibama. "Não aprovamos do jeito que foi feito. Não fomos ouvidos", queixa-se o prefeito de Alto Paraíso, Divaldo Rinco, que teme não poder fazer grandes melhorias na infra-estrutura da região para atender turistas.(5)

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

O decreto presidencial que ampliou o parque resultou, assim, em mobilização dos proprietários e população da área. Foi criada a ACTP (Associação Cidadania, Transparência e Participação) e quatro dos maiores proprietários de terras da região impetraram Mandado de Segurança questionando a validade do decreto e requerendo medida liminar para que não sofressem constrangimentos em função deste.

Houve grande especulação junto à população de que a ampliação tenha ocorrido como parte de um acordo do FMI, onde, havendo a titulação do parque como Patrimônio Natural Mundial pela Unesco, estaria sendo cumprido o pré-requisito para receber financiamentos e recursos para custear estudos científicos na região. (6)

Essa insatisfação e descontentamento somados ao Mandado de Segurança impetrado motivaram a presente monografia. O processo vem sido acompanhado por mim na qualidade de Diretor Jurídico da ONG Berço das Águas, que tem grande atuação na Chapada dos Veadeiros, e, desde o início do curso de Pós-Graduação, o tema me perseguiu, assim como a idéia de elaborar a monografia sobre a questão.


II. O Mandado de Segurança Impetrado

O Mandado de Segurança nº 24.184, impetrado por Aluísio Enéas Albuquerque e outros em 24 de janeiro de 2002, junto ao Supremo Tribunal Federal, requeria a anulação do decreto de 27 de setembro de 2001, sustentando que o decreto de ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros padecia de dois vícios: primeiro, não atendeu à Lei n 9.985/00, que no seu artigo 22, § 2º e 6º exige que a ampliação dos limites de uma unidade de conservação deva ser precedida de estudos técnicos e procedimentos de consulta pública. Segundo, que a referida lei careceria de exeqüibilidade, pois, exceto quanto ao art. 55, ainda não havia sido regulamentada.

A regulamentação foi editada somente pouco menos de oito meses após a impetração do Mandado de Segurança e onze meses após a edição do decreto. Em suas informações, a Presidência da República dizia que a consulta pública havia sido realizada através de reuniões com o Conselho Consultivo do Parque, CONPARQUE, de acordo com a regulamentação, mesmo que posterior.

II.1. O Julgamento do Mandado de Segurança

O Ministro relator original, José Néri da Silveira, concedeu a liminar

tão só para que o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – Ibama, do Ministério do Meio Ambiente, não criem ‘aos impetrantes dificuldades, ou lhes façam exigências, ou lhes impeçam ação, que não pudessem ser criadas, impostas ou recusadas se as suas glebas não tivessem sido alcançadas pelo parque’.(7)

A Procuradoria-Geral da República manifestou-se favorável à concessão da segurança.

O Ministro Relator se aposentou e o processo foi redistribuído à Ministra Ellen Gracie Northfleet que, em seu voto, entendeu que:

Quando da edição do decreto de 27 de setembro de 2001, impugnado no presente mandamus, a Lei 9.985/00, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, o SNUC, ainda não havia sido regulamentado. A necessidade dessa regulamentação só foi implementada em 22 de agosto de 2002, com a edição do decreto 4.340, conforme se esclareceu da tribuna, oito meses após a impetração do presente Mandado de Segurança.

Por outro lado, a Lei nº 9.985/00, no seu art. 22, parágrafo 2º, 3º e 6º, exige que o processo de criação e ampliação de unidades de conservação deva ser precedido de estudos técnicos e de consulta pública.

As informações prestadas, e que eu fiz questão de incluir no relatório, não comprovam o atendimento da exigência quanto ao adequado atendimento da consulta pública. O parecer emitido pelo Conselho Consultivo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, instituído por portaria do Ibama de nº 82/2001, não pode, a meu ver, substituir a consulta exigida na lei, pois aquele Conselho não tem poderes para representar a população local.

Dessa forma, Sr. Presidente, quer em razão do decreto impugnado ter sido editado antes da regulamentação da lei, quer pela ausência da consulta pública, na forma do art. 22, parágrafo 2º, da Lei nº 9.985/00, é que concedo a segurança para declarar nulo o decreto de 27 de setembro de 2001, que ampliou os limites do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, ressalvada a possibilidade, evidentemente, de edição de um novo decreto. É como voto, Sr. Presidente. (8)

O voto foi acompanhado pela maioria dos Ministros, vencido apenas o Ministro Cezar Peluso, que entendeu que:

(...) com base no art. 5º do decreto regulamentador, embora posterior, que permite que a administração pública possa adotar outras formas de oitiva da população local, e de outras partes interessadas, sem se fixar em reuniões públicas especificamente.

Eu não vejo, com o devido respeito, ofensa ao direito líquido e certo. Eu denego a segurança. (9)

Assim, por maioria, o Tribunal concedeu a segurança para declarar nulo o decreto de 27 de setembro de 2001, que ampliou os limites do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, ressalvada a possibilidade de edição de um novo decreto. Essa possibilidade será analisada mais adiante.

II.2. A Consulta Pública

O Decreto nº 4.940 de 22 de agosto de 2002, que regulamenta artigos da Lei nº 9.985/00, regulamenta, assim, a consulta pública.

Maurício Mercadante, que não por acaso, proferiu parecer no Mandado de Segurança a favor dos impetrantes, no artigo Uma Década de Debate e Negociação: a História da Elaboração da Lei do SNUC, publicado em conjunto com vários outros articulistas na obra Direito Ambiental das Áreas Protegidas, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 195, discorre sobre toda a história de criação do SNUC. Descreve desde o amadurecimento da idéia na década de 1970, passando pelo anteprojeto, por sua transformação em projeto de Lei e sua tramitação no Congresso Nacional. Principalmente, explica a polêmica causada pelo deputado Fábio Feldmann, ao apresentar sua primeira proposta de substitutivo ao PL do SNUC em 1994.

A proposta de substitutivo apresentava significativas mudanças no texto original. O autor transcreve parte do relatório onde se faz a justificação das modificações apresentadas. E explica (grifos nossos):

Embora longa, a transcrição se justifica por dois motivos: por seu valor histórico e porque introduz o leitor na controvérsia que animou toda a discussão do PL nº 2.892/92 no Congresso. Ingressar nesta controvérsia é fundamental para entender o sentido da Lei nº 9.985/00.(10)

A controvérsia da qual o autor fala é justamente o aspecto humano. Transcrever alguns trechos deste relatório é apresentar a intenção do legislador ao elaborar a lei. Diz o relatório (grifos nossos):

Na perspectiva tradicional, criar uma unidade de conservação significa, em essência, cercar uma determinada área, remover ou – alguns diriam –, expulsar a população eventualmente residente e, em seguida, controlar ou impedir, de forma estrita, o acesso e a utilização da unidade criada. A preocupação básica, quase exclusiva muitas vezes, é com a preservação dos ecossistemas.

Essa radical intervenção do Poder Público sobre o domínio e a utilização da terra é, em geral, motivada pela necessidade de se manter determinadas áreas intocadas, tendo em vista sua importância ímpar, em termos científicos, culturais e, inclusive, econômicos, para as presentes e, sobretudo, as futuras gerações. Esses motivos são inegavelmente legítimos, defensáveis e justos. O problema, entretanto, é que, no processo corrente de criação de unidades de conservação, incorre-se, via de regra, em um equívoco fundamental: as unidades de conservação são concebidas e criadas a partir de uma decisão unilateral, de cima para baixo, como se fossem entidades isoladas, alheias e acima da dinâmica sócio-econômica local e regional. A visão conservacionista, a rigor, é incapaz de enxergar uma unidade de conservação como um fator de desenvolvimento local e regional, de situar a criação e gestão dessas áreas dentro de um processo mais amplo de promoção social e econômica das comunidades envolvidas. Conseqüentemente, as populações locais são encaradas com desconfiança, como se fossem uma ameaça permanente à integridade e aos objetivos da unidade, o que, nessas circunstâncias, isto é, nessa situação de isolamento e confronto, acaba se tornando verdade. A sociedade local, alijada do processo, sem possibilidades de participação e decisão – o que lhes permitiria conhecer e compreender melhor o significado e a importância de uma unidade de conservação –, percebe a intervenção do Poder Público como sendo um ato violento, autoritário, injusto e ilegítimo, e assume uma atitude de resistência, discreta algumas vezes, ostensiva outras.

Essa concepção tradicional do sentido e finalidade das unidades de conservação desenvolveu-se nos países ricos do norte, particularmente nos Estados unidos, cuja afluência permite que se mantenham intactas grandes áreas naturais. Naquele país, as unidades de conservação são percebidas, em grande medida, como sendo um complemento lógico de uma vida estressante mas de elevado padrão, que requer relaxantes fins de semana. Nos países de terceiro mundo, para onde foi exportada essa concepção, a situação é radicalmente diferente. Nossos parques e reservas estão rodeados, não raro, de pobreza extrema. Essas áreas sobrevivem a duras penas como ilhas em um agitado mar de pressões sociais.

Mas isso não é tudo. Estas áreas são também cobiçadas por setores economicamente poderosos, interna e externamente.

O resultado dessa situação é que a maior parte das unidades legalmente criadas no País só existe mesmo no papel. Os decretos de criação são verdadeiras obras de ficção jurídica. A grande maioria das unidades sequer foi regularizada fundiariamente. (11)

Mais adiante, o deputado Fábio Feldmann continua:

Diante de situações como essas, vem se desenvolvendo uma concepção nova sobre o papel das unidades de conservação que procura redefinir o manejo dessas áreas protegidas tendo em vista assegurar, ao mesmo tempo, a conservação da biodiversidade e a qualidade de vida das populações humanas. Essa mudança de perspectiva caminha em conjunto com a evolução do conceito de conservação e das estratégias de desenvolvimento. (12)

Assim, o substitutivo do deputado Fábio Feldmann produziu significantes modificações. Entre os objetivos do SNUC acrescentou-se

(...) proteger as fontes de alimentos, os locais de moradia e outras condições materiais de subsistência de populações tradicionais, respeitando sua cultura e promovendo-as social e economicamente, e proteger e valorizar o conhecimento das populações tradicionais, especificamente sobre formas de manejo dos ecossistemas e uso sustentável dos recursos naturais.(13)

Tais determinações acabaram não sendo acrescentados aos objetivos do texto final do SNUC. No entanto, acrescentou-se ao SNUC o art. 5º estabelecendo as diretrizes que o regeriam:

Art. 5º O SNUC será regido por diretrizes que:

(...)

III – assegurem a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação;

(...).(14)

Ou seja: está clara a intenção do legislador em proteger as populações que por acaso sejam atingidas pela criação, ou, no caso, alteração de uma unidade de conservação. Além disso: demonstra o desejo de que tais populações participem do processo de criação ou alteração e manejo da área protegida.

A Lei, quando editada, trouxe em seu art. 22, § 2º, a seguinte determinação:

Art. 22. As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público.

§ 1º (VETADO)

§ 2º A criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme o que se dispuser em regulamento.(15)

Diz o regulamento (dec. 4.340/02):

Art. 5º A consulta pública para a criação de uma unidade de conservação tem a finalidade de subsidiar a definição da localização, da dimensão e dos limites mais adequados para a unidade.

§ 1º A consulta consiste em reuniões públicas ou, a critério do órgão ambiental competente, outras formas de oitiva da população local e de outras partes interessadas.

§ 2º No processo de consulta pública, o órgão executor competente deve indicar, de modo claro e em linguagem acessível, as implicações para a população residente no interior e no entorno da unidade proposta.(16)

A Presidência da República em suas informações prestadas no Mandado de Segurança afirma que:

A consulta pública, conforme definida na Lei 9.985/00, objetiva apenas subsidiar a decisão do Poder Público e, independentemente de regulamentação, não tem nenhum caráter deliberativo.(17)

Realmente, se tratando de mera consulta, não haveria caráter deliberativo. No entanto o art. 5º da Lei citada determina que o SNUC será regido por diretrizes, entre outras, "que assegurem a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação". A mesma Lei diz no inciso XIII do art. 4º que é um dos objetivos do SNUC "proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente".

Ainda, o SNUC em seu art. 22, § 3º, diz que "no processo de consulta de que trata o § 2º, o Poder Público é obrigado a fornecer informações adequadas e inteligíveis à população local e a outras partes interessadas".

Dessa forma, fica evidente que a intenção da Lei é responder aos anseios da população em relação à criação, alteração e gestão das unidades de conservação, como evidenciado no substitutivo do deputado Fábio Feldmann ao PL do SNUC.

Cabe aqui destacar o voto do Eminente Sr. Ministro Carlos Britto no julgamento do Mandado de Segurança:

Abrir espaço de participação popular para decisões administrativas é homenagear, em última análise, a própria democracia, o que significa exatamente o prestígio das bases e não das cúpulas. A democracia cada vez mais é compreendida como esse movimento que o poder político assume que não é de cima para baixo, mas de baixo para cima. Digamos, assim, metaforicamente, Sr. Presidente: tirando o povo da platéia e colocando-o no palco das decisões que lhe digam respeito.(18)

O Ministro entendeu, portanto, que a consulta tem caráter deliberativo.

II.2.1. A Legitimidade do COMPARQUE

Paulo Affonso Leme Machado explica que, para a criação de unidades de conservação o Poder Público poderá ou não consultar a população, pois o SNUC excluiu da consulta pública a Estação Ecológica e a Reserva Biológica, que não é o caso analisado. Portanto, no caso, não há dúvida de que a consulta pública deve ser realizada.

O autor explica que:

Além da consulta pública é necessária a elaboração de estudos técnicos para a criação (n.a.: e alteração) de unidades de conservação, visando esses procedimentos à localização, à dimensão e aos limites mais adequados para a unidade. Tais procedimentos, que serão especificados por regulamento, deverão obedecer, entre outros, aos princípios do interesse público, da motivação e da publicidade e, evidentemente, poderão ser objeto de ações judiciais, se desrespeitada a legislação pertinente. (19)

Aqui o autor cita o interesse público em sentido amplo, não dando importância deliberativa à consulta, ao contrário do que intencionava a Lei e como observou o Exmo. Min. Carlos Britto.

Verifica-se nos autos da ação que o Ibama realizou a consulta pública através de reunião com o COMPARQUE, Conselho Consultivo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. A Ministra relatora entendeu que:

As informações prestadas, e que eu fiz questão de incluir no relatório, não comprovam o atendimento da exigência quanto ao adequado atendimento da consulta pública. O parecer emitido pelo Conselho Consultivo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, instituído por portaria do Ibama de nº 82/2001, não pode, a meu ver, substituir a consulta exigida na lei, pois aquele Conselho não tem poderes para representar a população local.(20)

E completou ao responder a pergunta do Exmo. Sr. Min. Sepúlveda Pertence sobre qual seria a composição do COMPARQUE:

Eu não sei qual é a composição do Conselho. Ele decorre de indicação do Ibama, é formado por portaria do próprio órgão encarregado da delimitação do parque...(21)

Entendeu, portanto, que, por ser criado por portaria do próprio órgão encarregado pela delimitação do parque, tal Conselho não teria legitimidade para representar a população e satisfazer a obrigação de consulta pública.

O Advogado-Geral da União, completando a resposta ao Exmo. Sr. Ministro Sepúlveda Pertence, disse que o órgão era realmente criado pelo Ibama e que era de composição mista, composta de representantes de entidades civis e representantes da administração. Consultando-se os autos, pode-se verificar a composição. Apesar de não constar os nomes completos dos conselheiros, há elementos para se analisar sua constituição, além do que, a maior parte dos conselheiros assina a votação ao final do documento (22):

Presentes na Reunião Ordinária de 12 e 13 de setembro de 2001:

Rosa Lia – Representante do Ibama

Carmem – Suplente do Ibama

Roberto – Titular do Ibama

Eduardo – Titular da Amor

Antônio – Titular da Associação Comercial

Rosa – suplente da SERVITUR

Selma – suplente da ACECE

Anaildes – titular da ATECAN

Mauro – suplente da Prefeitura Municipal de Alto Paraíso

Luciano – titular da ACVCV

Julmar – suplente da OCA

Elias – titular da ASJOR

Horley – suplente da AMOR

José Nilo – Prefeitura Municipal de Colinas do Sul.

A AMOR, Associação Multiplicadora de Oportunidades de Redenção; a associação Comercial de Alto Paraíso; a SERVITUR, Associação de Guias Independentes da Chapada dos Veadeiros; ACECE, Associação de Condutores de Ecoturismo de Cavalcante e Entorno; ATECAN, Associação Terezinense Ecoturismo e Amantes da Natureza; ACVCV, Associação de Condutores de Visitantes da Chapada dos Veadeiros; OCA, ONG de Alto Paraíso; e ASJOR, Associação Comunitária de São Jorge (n.a.: distrito de Alto Paraíso que fica na entrada do parque), são todas sociedades civis independentes (informação verbal).

Percebe-se que de quatorze presentes, nove eram representantes de entidades civis. A cidade de Colinas do Sul, apesar de não ser atingida pela ampliação, mas dependente economicamente do turismo no parque, só teve um representante da administração. As outras cidades tinham a população bem representada. No entanto, as comunidades representadas pelo COMPARQUE, eram aquelas que faziam parte do antigo perímetro do parque, de 65.000 hectares. As cidades de Nova Roma e São João D’Aliança, que acabariam sendo atingidas pela ampliação, não tinham nenhum representante, nem da administração, tampouco da sociedade. A comunidade do Tapa Olho, população tradicional que também teve suas terras atingidas pela ampliação, não tinha nenhum representante. De acordo com Leon Frejda Szklarowsky (23), sobre os Conselhos Consultivos (grifos nossos):

Cada unidade de conservação do grupo de Proteção Integral (n.a.: caso do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros) disporá de um Conselho Consultivo, presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil, por proprietários de terras localizadas em Refúgio de Vida Silvestre ou Monumento Natural, quando for o caso, e, na hipótese prevista no § 2º do art. 42, das populações tradicionais residentes, conforme se dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade.

Ou seja, a comunidade tradicional da região do Tapa Olho, citada na reportagem do Correio Braziliense sobre a revolta dos fazendeiros (24), além de outras, como os povoados do Brejão, Amendoim e Cor Mari (25), não tem representatividade no Conselho do Parque. Da mesma forma, as cidades que não faziam parte do Conselho Consultivo do parque e que foram atingidas pela ampliação não tinham representantes no órgão. Portanto, o CONPARQUE não era parte legítima para cumprir o requisito de consulta.

Além disso, o CONPARQUE emitiu parecer de nº 002/2001 (26) onde os Conselheiros membros de sociedades civis dizem ter sido induzidos a assinarem a ata da reunião sem saber que seu propósito seria subsidiar a ampliação do parque, cujo decreto foi editado duas semanas após a reunião.

Também diz o art. 22, parágrafo 3º da Lei do SNUC: "no processo de consulta de que trata o parágrafo 2º, o Poder Público é obrigado a fornecer informações adequadas e inteligíveis à população local e a outras partes interessadas". (27) (grifos nossos)

Certamente, a simples consulta ao CONPARQUE não supre esta necessidade. Assim, somente pela falta de consulta pública adequada, o decreto de ampliação do parque já seria ilegal.

Só que, além da falta de consulta pública adequada, a regulamentação do SNUC somente foi editada em 22 de agosto de 2002, quase onze meses após a edição do decreto de ampliação, e quase oito meses após a impetração do Mandado de Segurança.

II.3. A Regulamentação

A Lei do SNUC foi editada fazendo ressalva em seu parágrafo 2º do artigo 22 que a consulta pública (28) deveria ser "feita conforme se dispuser em regulamento". Ora, se a Lei carecia de regulamentação para ter eficácia, não poderia servir como base para o decreto de ampliação do parque antes de ser regulamentada. Tendo sido o decreto editado antes da regulamentação, perdeu sua "concretude", como frisado no voto do Exmo. Sr. Min. Marco Aurélio, já que "a própria lei tinha o regulamento como essencial".

II.4. Os Estudos Técnicos

Além da consulta pública, devem ser procedidos, também, os estudos técnicos, como citou o autor. Os impetrantes do Mandado de segurança alegavam que tais estudos não haviam sido cumpridos. No entanto, analisando-se os autos da ação, verifica-se que houve a comprovação de diversos, importantes e suficientes estudos técnicos. Diz o Parecer da Procuradoria-Geral da República:

Compulsando-se a documentação vinda dos autos, juntamente com as informações prestadas pela autoridade impetrada, verifica-se que fora atendido o dispositivo legal, no que tange aos ‘estudos técnicos’, empreendidos, como se vê, às fls 257/258 por diversos órgãos do Ministério do Meio Ambiente, que concluíram pela necessidade de ampliar a proteção do cerrado, na região da Chapada dos Veadeiros, assegurando a permanência de importante ecossistema local. (29)

Assim, não ficou evidenciada a ausência de estudos técnicos, pelo contrário.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rodrigo Bulhões Pedreira

advogado em Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDREIRA, Rodrigo Bulhões. Legalidade do decreto de ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 654, 22 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6612. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada como exigência final do curso de Pós-graduação Lato Sensu em Direito Ambiental e Recursos Hídricos da Universidade Cândido Mendes, sob orientação da professora Maristela Chicharo de Campos.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos