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Ilegalidade e abuso de poder na investigação policial e administrativa, na denúncia e no ajuizamento de ação de improbidade administrativa.

Ausência de justa causa

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25/04/2005 às 00:00
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III – NECESSIDADE DE JUSTA CAUSA PARA INVESTIGAÇÕES PENAIS, DISCIPLINARES, BEM COMO PARA A AVERIGUAÇÃO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.

Após a verificação do item anterior se constata que, para romper o princípio da inocência, sem que haja violações a direitos (intimidade, honra, segurança jurídica e dignidade) de quem é investigado, é necessário uma "justa causa".

Este justo motivo é necessário para possibilitar o equilíbrio entre o dever de punir do Estado e a preservação do direito de intimidade e de liberdade do suposto infrator da norma positiva penal ou administrativa.

Justamente para manter esse equilíbrio, tanto o processo penal como o processo administrativo disciplinar devem buscar sempre o justo, que deriva do latim justus, e representa a justiça e o direito.

Pelo direito justo retira-se o abuso de poder do Estado, visto que a dignidade da pessoa é preservada pela norma jurídica. [29]

Nesse contexto, o justo deve identificar-se com o direito, visto que ele está unido ao honesto (correto).

Direito justo, para Karl Larenz, "es um peculiar modo de ser del Derecho positivo." [30]

Assim, para evitar a temeridade do poder, o direito elegeu uma justa causa para contrapor a causa genérica ou inconsistente, como elemento essencial da instauração de procedimentos penais ou administrativos.

Essa é a medida básica de segurança jurídica, para que não haja um retrocesso do Poder Público com denuncismos irresponsáveis, lembrando-se a época da ditadura militar, onde a existência de um fato punível era o mero juízo de valor negativo, desatrelado de prova ou de evidências. Bastava haver uma delatação, pouco importando a sua consistência, que da noite para o dia o cidadão cumpridor do seu dever jurídico passaria a ser um subversivo.

Estes tempos de ditadura contrária ao direito estão enterrados em nossa memória para não serem jamais revividos no cotidiano.

Dessa forma, como medida de segurança, para que alguém possa ser submetido a julgamento, deve existir a justa causa para a acusação, como dito por Maria Thereza Rocha de Assis Moura: [31]

"Tomando-o como sustentáculo, segue-se que, para que alguém possa ser submetido a julgamento, deve existir justa causa para a acusação, sob pena de esta se transformar em instrumento de coação ilegal, contra a liberdade jurídica do acusado, passível de ser mediada por meio de habeas corpus."

Nesse diapasão, justa causa é aquela "que é conforme o direito, (...) se o juiz recebe uma denúncia por fato atípico, cabível o remédio heróico, por falta de justa causa; se recebe uma denúncia sem lastro probatório, falta o interesse processual e, de conseguinte, justa causa. Aliás, a expressão ‘falta de justa causa’ é tão ampla que chega a abranger todas as outras hipóteses elencadas nos demais incisos do art. 648." [32]

Ensina Mirabete [33] que: "somente se justifica a concessão de habeas corpus por falta de justa causa para a ação penal quando é ela evidente, ou seja, quando a ilegalidade é evidenciada pela simples exposição dos fatos com o reconhecimento de que há imputação de fato atípico ou da ausência de qualquer elemento indiciário que fundamente a acusação. É possível, entretanto, verificar perfunctoriamente os elementos em que se sustenta a denúncia ou a queixa, para reconhecimento da ‘fumaça do bom direito’, mínimo demonstrador da existência do crime e da autoria, sem o qual há falta de justa causa para a ação penal. Há constrangimento ilegal quando o fato imputado não constitui, em tese, ilícito penal, ou quando há elementos inequívocos, sem discrepâncias, de que o agente atuou sob uma causa excludente de ilicitude. Não se pode, todavia, pela via estreita do mandamus, trancar ação penal quando seu reconhecimento exigir um exame aprofundado e valorativa de prova dos autos."

Mais uma vez, registramos o elucidativo posicionamento de Maria Thereza Rocha de Assis Moura: [34]

"A justa causa para a ação penal de natureza condenatória, no direito penal brasileiro, não sobressai apenas dos elementos formais da acusação, mas, também e de modo principal, de sua fidelidade para com a prova que demonstre a legitimidade da acusação. 4.1. Desta conclusão emana que não basta que a peça acusatória impute ao acusado conduta típica, ilícita e culpável. A denúncia ou queixa deve guardar ressonância e estrita fidelidade aos elementos que lhe dão arrimo, sem o que não passará de ato arbitrário, autoritário, que a ordem jurídica não pode tolerar. 4.2. Segue, ainda, que a necessidade da existência de justa causa para a acusação serve como mecanismo para impedir, em hipótese, a ocorrência de imputação formal infundada, temerária, caluniosa e profundamente imoral."

Pois bem, a justa causa é a condição mínima erigida pela norma legal, pela jurisprudência e pela doutrina para que não ocorra uma acusação leviana e temerária, movida por interesses que não são jurídicos, totalmente desatrelado de provas e de fundamentos sérios.

Funciona a justa causa como condição da instauração de processo penal, processo administrativo disciplinar e, por fim, para a ação de improbidade administrativa, pois em todas estas situações jurídicas é atingido o status dignitatis do investigado.

Por esta razão, é necessário, pelo menos, um indício como condição da instauração desses procedimentos, para que eles correspondam a legalidade da acusação ou da própria investigação.

Indício, segundo o art. 239, do CPP, é considerado "a circunstância conhecida e provada, que tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou de outras circunstâncias."

Só existe a obrigatoriedade da instauração de um dos procedimentos legais já declinados quando presente a justa causa, resultante do fundamento da acusação, com a plena descrição dos fatos, acompanhados das provas, que mesmo superficiais, reforça a tese de que houve uma infração. A "probable cause" liga-se à existência de um juízo de probabilidade de condenação para justificar o nascimento do processo ou da investigação. Sendo que esse juízo inicial de probabilidade indica, mesmo que superficialmente, que houve um ato ilícito ou ilegal cometido pelo imputado, merecedor de uma persecução investigatória, para se buscar a verdade real dos fatos.

Sem esta base de sustentação, a acusação é insustentável, pois a subjetividade da opinio delicti não é um "cheque em branco", ela deve ser justa e equilibrada.

Não se pode violar o direito de qualquer pessoa por uma simples suspeita, sob pena de um constrangimento ilegal e distanciado do direito. Por isso é que a justa causa se pretende na qualidade da acusação, cotejada aos seus elementos de base de sustentação, devendo o acusador ter conduta ética, tendo em vista que a denúncia ou a acusação não podem servir como uma espécie de tortura para quem ostenta a condição de acusado.

O fundamento da acusação é um mínimo de plausibilidade, com uma increpação em termos de justa causa.

A ausência de justa causa impede a válida e legítima instauração de procedimentos penais [35] e administrativos, pois nada pode embasar o abuso de poder, decorrente de uma acusação arbitrária ou injusta, capaz de trazer dor para quem é injustamente colocado na condição de acusado.

Na atual fase do direito público não se admite mais atos desatrelados da legalidade, pois o poder deve ser exercido de forma equilibrada, trazendo a toda sociedade a devida paz e segurança jurídica, não sendo, via de conseqüência, um instrumento da opressão.

Ou, como diz o jus-filósofo da era moderna Alf Ross: [36] "O poder não é conferido às autoridades públicas para ser exercido como elas queiram, mas para ser exercido de acordo com as regras estabelecidas ou princípios gerais pressupostos."

Portanto: "A denúncia deve estar justificada nos elementos disponíveis existentes nas peças informativas que a acompanham. Se essas peças - inquérito policial e auditoria do Ministério do Trabalho – concluem induvidosamente pela inexistência de crime (peculato, no caso), não é dado à peça exordial, sem valer-se de elementos informativos adicionais, ou de uma interpretação jurídica válida do material recebido, optar pela propositura da ação penal. Constitui o habeas corpus via processual idônea para obter o trancamento de ação penal, quando a falta de justa causa - "conjunto de elementos probatórios razoáveis sobre a existência do crime e da autoria"(Vicente Greco Filho) - se mostra visível, independentemente do exame aprofundado e valorativo da prova. 3. Ordem de habeas corpus que se concede, para trancamento da ação penal, com extensão a co-acusado." [37]

Ou, "se a denúncia se acha desprovida de qualquer base probatória, não se justifica, objetiva e concretamente, uma acusação séria. É muito pouco para submeter alguém às agruras de um processo penal a simples presunção da existência de um laudo técnico meramente referido em relatório de Comissão de Sindicância Administrativa, que seria comprobatório de fraude na obtenção de financiamento imobiliário, mediante avaliação superestimada do próprio agente financeiro, ainda mais quando não se sabe se, de fato, o documento existe." [38]

Deve, portanto, nesses casos, a denúncia ser trancada por falta de justa causa como bem disse o Min. Sepúlveda Pertence no HC nº 80.161-7: [39]

"Habeas-corpus: falta de justa causa para a ação penal: hipótese que, por imperativo da Constituição, há de abranger tanto a ilegalidade stricto sensu, quanto o abuso de poder, a fim de remediar a indevida instauração de processos penais não apenas por força de denúncias formalmente ineptas, mas também de denúncias arbitrárias e abusivas, porque manifestamente despidas do mínimo necessário de suporte informativo, ou, como sucede no caso, confessadamente baseadas em mera suposição do Ministério Público: denúncia que - a partir da suspeita de ter sido determinado imóvel de entidade estatal alienado por preço inferior ao seu valor real - afirma apoditicamente, sem sequer invocar qualquer base concreta, que "em casos como tais é certo o pagamento de propinas" e, sem mais, imputa aos acusados a prática de corrupção ativa e corrupção passiva."

Não apoiada em elementos que evidenciem a viabilidade da acusação, deve a denúncia ser rejeitada, [40] em homenagem ao respeito à dignidade humana e a intimidade, elementos indissolúveis dos direitos fundamentais do homem.

Na prática, existe uma preocupação de, na dúvida, promover ampla investigação, mesmo que desatrelada da plausibilidade jurídica.

Por isso, nos preocupamos em deixar expresso que suspeitas ou desconfianças, desatreladas de elementos de convicção, mesmo que superficiais, não podem e não devem prosperar em nosso sistema jurídico.

A ordem moral proíbe a acusação irresponsável, motivada por sentimentos impuros ou pessoais, cabendo lembrar a passagem do Sermão da Montanha de Jesus, invocado por Hans Kelsen: [41]

"Como exemplo de um tal ordenamento social refere-se geralmente a Moral, que precisamente por isso, se costuma distinguir do Direito, como ordem estatuidora de sanções. É uma ordem moral desprovida de sanções aquela que visa Jesus no Sermão da Montanha; em que rejeita decididamente o princípio de talião do Velho Testamento – responder ao bem com o bem e ao mal com o mal. ‘Vós tendes ouvido dizer olho por olho e dente por dente. Eu, porém, digo-vos que não deveis resistir ao mal’ (isto é, que o mal não deve ser retribuído com o mal). ‘Vós tendes ouvido dizer que devemos amar o nosso próximo (isto é, aquele que nos quer bem) e odiar o nosso inimigo (isto é, aquele que nos odeia). Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos...’ (isto é, não retribuais o mal com mal, fazer bem àqueles que vos fazem mal). ‘Pois se amais aqueles que vos amam (isto é, se apenas ao bem respondeis com bem), que recompensa tereis? Não faz também o mesmo o publicano?’ É evidente a recompensa celeste que Jesus se refere aqui. Também neste sistema moral do mais alto idealismo não está totalmente excluído portanto, o princípio da retribuição. Não é, na verdade, uma recompensa terrestre mas uma recompensa celestial que é prometida àquele que renuncia à sua aplicação no aquém, àquele que não retribui o mal com o mal nem faz apenas a quem lhe faz bem. E também a pena no além faz parte deste sistema, que rejeita a pena do aquém."

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Há, por via de conseqüência, que se ter em mente as expressivas palavras do Min. Victor Nunes Leal quando do HC nº 42.697/STF, onde defendeu que a falta de justa causa gera abuso de poder do membro do parquet: "Tanto o substantivo abuso como o adjetivo justo são noções que não têm delimitação precisa, exata, milimétrica, incumbindo à jurisprudência, no exame de cada caso, verificar se ocorre o pressuposto da causa justa para fundamentar a restrição imposta ao paciente, ou se, ao contrário, está configurado o abuso de poder, que a qualifica como coação ilegal." [42]

A jurisdição deve ser responsável, sendo certo, que a regra da justa causa deve ser aplicada em todas as hipóteses legais que traga ao suposto infrator reflexos de ordem moral e social.

O inquérito policial ou a ação penal também figuram no contexto geral, onde a ausência de justa causa poderá vir caracterizada pelo divórcio entre a imputação dos fatos contidos na investigação e os elementos de convicção em que as autoridades competentes se apóiam.

A acusação resultante de imaginosa criação dos seus subscritores afasta a justa causa para persecução penal por falta de tipicidade.

Esta violência, mesmo perpetrada em sede de inquérito policial causa constrangimento ilegal de investigado, sendo lícita a impetração de habeas corpus para que seja trancada a ilegítima investigação: [43]

"(...) – o poder do MP para requisitar abertura de Inquérito Policial não é absoluto, exigindo um mínimo de provas e fundamentação jurídica." [44]

Inexistindo elementos mínimos para apuração de um ato ilícito, tanto faz ser no inquérito policial como na ação penal, pois a falta de justa causa acarreta o arquivamento de qualquer um dos tipos de investigação declinado.

Não entendemos como possa prosperar a instauração da ação penal sem um mínimo de elemento probatório acerca da autoria, bem como a respeito da materialidade do crime em tese a ser apurável.

Por igual, o inquérito policial também deverá vir precedido de um justo motivo para a instauração e o desenvolvimento da investigação:

"Ora, formular uma acusação, de que resulte um processo penal, sem que haja os pressupostos de direitos, como também os pressupostos de fato, para a ação penal, é caso, sem dúvida, de uso irregular do poder de denúncia, embora nem sempre fácil de demonstrar, porque o poder de denúncia não existe para atormentar os passos, para criar dificuldade aos seus negócios, para cercear sua liberdade de locomoção; a denúncia é um instrumento confiado ao Ministério Público para fazer atuar a lei penal, para defender a sociedade contra os criminosos, para reprimir os crimes que tenham sido cometidos. Se o resultado da denúncia é a sujeição de pessoa inocente à ação penal, em princípio, está caracterizado o abuso. Toda a dificuldade do problema consiste, para fins práticos, em verificar até que ponto pode ir o Poder Judiciário, na verificação das provas, para discernir se o Ministério Público agiu no uso regular ou irregular seu poder de denunciar." [45]

O processo penal afeta a dignitatis do cidadão, não podendo "o MP inventar que alguém praticou um crime e iniciar ação penal, ainda que a denúncia esteja revestida de todas as formalidades a que alude o art. 41, do Código de Processo Penal. O MP é, às vezes, fiel servidor dos interesses do Poder Executivo, e o governo estaria armado de um poder tirânico e intolerável se o MP pudesse, principalmente em processos políticos, iniciar ação penal com um ato de puro arbítrio e opressão. O MP não é uma espécie de inquisitor-mor que possa, a seu bel-prazer, denunciar quem bem entenda ou quem apraz ao Executivo (em cujo nome atua) perseguir." [46]

No processo administrativo disciplinar, a situação jurídica é a mesma, tendo em vista que a justa causa deverá estar presente também para a instauração de PAD contra o servidor acusado, sob pena de abuso de poder de investigar da Administração Pública.

O processo administrativo disciplinar deverá ser instaurado sempre que a autoridade pública tiver ciência de qualquer irregularidade funcional perpetrada por agente público. Mas essa ciência deverá vir composta por elementos que comprovam falta aos deveres da função, e não uma acusação genérica. [47]

Nessas condições, somente o exercício irregular das atividades funcionais do servidor público, que desencadeie em descumprimento a deveres ou inobservância a proibições, devidamente comprovados ou que existam forte indícios dessas infrações, é que deverão ser apurados: "O uso do poder disciplinar não é arbitrário: não o faz a autoridade quando lhe aprouver, nem como preferir." [48]

Ou, como averba José Armando da Costa, [49] sem o fumus boni iuris não há como se instaurar procedimentos disciplinares:

"A garantia do devido processo legal não só assegura ao funcionário a feitura do procedimento disciplinar previsto na lei (sindicância e processo ordinário sumário), como exige, por via de conseqüência, a existência de elementos prévios que legitimem tal iniciativa.

Não fosse a exigência desse pré-requisito, os procedimentos disciplinares - estribando-se em meros caprichos do administrador e podendo ser instaurados sem mais nem menos, isto é, sem a existência de indícios ou outros adminículos legais idôneos – a vida funcional do servidor público seria um constante transtorno recheado por uma insegurança jurídica. Daí porque o aspecto mais democrático e importante do devido processo legal é a exigência desse imprescindível requisito de iniciação processual (fumus boni iuris), sem o qual ficaria o servidor público à mercê das trepidações emocionais dos seus superiores hierárquicos, os quais poderiam, assim, infelicitar, importunar e desassossegar os seus subalternos como bem lhe aprouvesse, já que não estariam vinculados a esse pressuposto legal."

No curso dos anos tivemos ciência de alguns inquéritos administrativos genéricos, instaurados sem elementos de apoio, para, a posteriori, ser feita uma devassa na vida do servidor público, com o objetivo de apená-lo, mesmo que inexistentes indícios de irregularidades.

Além de discriminatório, esse tipo de conduta merece o devido repúdio por parte do direito administrativo, que não admite desvios ou excesso de poder por parte da Administração Pública.

Com veemência, Adilson Abreu Dallari, [50] indignado, faz forte coro contra essa conduta:

"Não é possível instaurar-se um processo administrativo disciplinar genérico para que, no seu curso se apure se, eventualmente, alguém cometeu falta funcional. Não é dado à Administração Pública nem ao Ministério Público, simplesmente molestar gratuitamente e imotivadamente qualquer cidadão por alguma suposta eventual infração da qual ele, talvez, tenha participado.

Vale também aqui o princípio da proporcionalidade inerente ao poder de polícia, segundo o qual só é legítimo o constrangimento absolutamente necessário, e na medida do necessário."

A seguir, o já nominado mestre arremata: [51]

"Repugna a consciência jurídica aceitar que alguém possa ser constrangido a figurar como réu numa ação civil pública perfeitamente evitável. Configura abuso de poder a propositura de ação civil temerária, desproporcional, não precedida de cuidados mínimos quanto à sua viabilidade."

Assim, deverá haver um mínimo de prova do cometimento de transgressão disciplinar por parte do servidor público.

Não basta apenas existir um fato ou uma suspeita, pois se torna necessário o fumus boni iuris para o início do procedimento disciplinar contra quem quer que seja.

Esse juízo de valor, mesmo que em sumaria cógnito, o Administrador Público é obrigado a fazer, sob pena de cometer excesso de poder.

Por isso é que, na dúvida, a prudência manda se apurar o fato tido como suspeito através da sindicância, onde não existe a figura do acusado, e o poder público pode, através de um procedimento sumário, onde é conferido o direito de defesa para o sindicado, promover a devida verificação da existência de indícios para a propositura do processo disciplinar.

A sociedade clama por uma justiça administrativa séria e que, antes de mais nada, respeite os direitos e prerrogativas dos acusados.

Não é lícito e nem factível que ainda ocorram acusações genéricas contra a honra de quem quer que seja. O direito não permite procedimentos de caráter aberto, sem que haja justa causa, contra agentes públicos que renderão ou não espaço na mídia contra seus nomes. [52]

Essa garantia de inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem das pessoas retira do administrador a discricionariedade de instaurar procedimento disciplinar contra servidor público sem um mínimo de indício ou plausibilidade de acusação. Não se admite a acusação genérica, sem justa causa:

"Com efeito, a necessidade de justa causa para a procedibilidade da denúncia tem o propósito de não submeter o indivíduo a uma situação que expõe sua reputação e imagem se não houver elementos suficientes consistentes que indiquem sua necessidade." [53]

A falta de justa causa afasta a figura do possível delito, tendo em vista a ausência do ato ilícito. O STF vem retirando do Ministério Público o poder de instaurar inquérito policial sem um mínimo de plausibilidade ou de justo motivo, trancando-o:

"Habeas Corpus. Inquérito policial instaurado pelo fato de vereadores terem recebido importâncias em virtude de lei municipal que veio a ser considerada inconstitucional pelo Tribunal de Contas do Estado, conhecimento parcial, com base na letra d do inciso i do artigo 102 da Constituição, já que, no caso, não há sequer conexão determinadora do deslocamento da competência. Sendo o fato que deu margem à instauração do inquérito policial manifestadamente atípico, é de trancar-se esse inquérito por falta de justa causa.

Habeas Corpus conhecido quanto ao paciente que atualmente é deputado federal, e deferido com relação a ele." [54]

"(...) Ausência de tipicidade penal – Falta de justa causa – Trancamento de IPM – Pedido deferido. O trancamento do inquérito policial pode ser excepcionalmente determinado em sede de habeas corpus, quando flagrante – em razão da atipicidade da conduta atribuída ao paciente – a ausência de justa causa para a instauração da persecutio criminis. Nos delitos de calúnias, difamação e injúria, não se pode prescindir, para efeito de seu formal reconhecimento, da vontade deliberada e positiva do agente de vulnerar a honra alheia. Doutrina e jurisprudência. Não há crime contra a honra, se o discurso contumelioso do agente, motivado por um estado de justa indignação, traduz-se em expressões, ainda que veementes, pronunciadas em momento de exaltação emocional ou proferidas no calor de uma discussão. Precedentes." [55]

Diante de todos esses elementos legais e jurisprudenciais, a Administração Pública deverá instaurar procedimento disciplinar contra agentes públicos para verificar a possível prática de infringência disciplinar, desde que exista um mínimo de provas ou materialidade do cometimento de ato ilícito.

Corroborando o que foi dito, a Lei nº. 9.874/99, que regula o processo administrativo federal, veda as medidas restritivas além daquelas que sejam estritamente necessárias, bem como a segurança jurídica:

"Art. 2º - A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo Único – Nos processos Administrativos serão observados, entre outros os critérios de:

I – Atuação conforme a Lei e o Direito;

..............................................................................

IV – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público."

Assim sendo, em respeito ao mandamento da inviolabilidade da honra e da imagem do agente público, só deverá ser instaurado o procedimento administrativo disciplinar quando haja um fundamento razoável, pois sem justa causa o inquérito é natimorto.

A "concepção de Estado se assenta basicamente na idéia de segurança. Tanto na proteção prática e na fiscalização da liberdade, o Estado usa de sua autoridade. Isso explica porque, entre justiça e segurança, o Estado optará pela última, base de sua existência." [56]

Necessariamente deverá estar presente o justo motivo não só para a propositura de ação penal, como também para instauração do processo disciplinar correspondente, pois nessa última situação também não se admite a turbação da honra, da intimidade e da imagem do servidor público, que possui na CF o antídoto necessário para curar chagas de injustiça perpetradas pelo Poder Público.

Sem justa causa para a instauração de processo administrativo disciplinar, não estará legitimado o poder público em promover procedimento genérico ou com falsa motivação, para apurar inexistente falta funcional.

A evolução do direito administrativo traz a segurança jurídica como um dos traços marcantes dos dias atuais. Não se admitindo mais que a força do arbítrio prevaleça a qualquer modo.

A presunção de inocência [57] milita em favor de todos, não podendo ser descartada no procedimento disciplinar, pois compete à Administração provar a irregularidade ou a culpa do servidor. [58]

Sendo assim, necessário se faz que haja justa causa na instauração do processo disciplinar, pois senão o mesmo será inapropriado, pronto para ser fulminado pelo Poder Judiciário.

Por fim, na ação de improbidade administrativa, de que trata a Lei nº 8.429/92, também ela deverá ser instaurada após a perquirição de um justo e plausível motivo jurídico, sendo desaconselhável a sua utilização de uma forma descontrolada.

A imprensa tem noticiado uma proliferação de ações de improbidade administrativa contra agentes públicos, que rendem espaço na mídia para o subscritor da lide.

In casu, o abuso de direito se verifica quando o poder público exerce a sua faculdade de acionar agente público, com base na Lei de Improbidade Administrativa, sem que haja um mínimo de indício da prática de um ato devasso.

Para situarem-se no campo da normalidade e da licitude, não basta a parte estar legitimada pela legislação para utilizar-se da via judicial, pois é necessário um mínimo de materialidade de determinado fato ilícito/devasso, sob pena de estar caracterizada a intenção de causar mal a outrem.

Ainda mais quando se verifica que a Lei de Improbidade Administrativa causa danos irresgatáveis para os agentes públicos injustamente processados.

Mesmo que o Agente Público seja inocentado a posteriori, ao término da morosa lide, o dano à sua imagem e a moral ficam entranhados no meio social que ele convive, pois a cada dia que passa existe a dor de quem se vê alçado à injusta condição de réu.

Por essa razão, a ação de improbidade administrativa deve ser proposta após a inequívoca evidência de que a irregularidade funcional vislumbrada, em tese, constitui ato de devassidão, enquadrável na Lei nº 8.429/92.

Em boa hora, o § 6º, do art. 17, da Lei nº 8.429/92, exige que a ação de improbidade administrativa seja instaurada com documentos ou justificações que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade ou com razões fundamentadas na impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas.

Ação temerária, sem provas ou elemento de convicção do julgador, deve ser rejeitada. [59]

A ação de improbidade administrativa traz para o réu graves conseqüências de ordem moral e jurídica.

O seu pleno exercício deve ser manejado de forma responsável, pois a ninguém é dado o direito de invadir a honra e a privacidade de quem quer que seja.

A ação de improbidade administrativa deve ter, no mínimo, indícios de que o ato administrativo hostilizado infringiu condutas descritas como ímprobas.

Não se concede um exercício abusivo do direito de acionar.

Por esta razão, o legislador impôs que a ação de improbidade administrativa será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes capazes de fazer acionar a máquina judiciária.

Indício provem do latim indicium, significando rastro, sinal, vestígio.

Os indícios representam as circunstâncias que se mostram para a comprovação do fato tido como verdadeiro por determinada pessoa.

De Plácido e Silva, [60] no seu consagrado Vocabulário Jurídico, nos dá a seguinte definição:

"Nesta razão, os indícios são circunstâncias que se mostram e se acumulam para a comprovação do fato, assim tido como verdadeiro. Entre as circunstâncias indiciárias e o fato a ser provado deve haver certa harmonia, a fim de que se possa compor como perfeita a prevenção delas gerada. Assim devem os indícios ser graves, precisos e concordantes. A gravidade se refere à verossimilhança deles, em virtude do que se possa induzir a existência do outro fato. Precisos, porque o que é vago, indeterminado, indefinido, sentido que se empresta ao impreciso, não podem ter força de indício."

O mínimo que se exige para o ingresso da ação de improbidade administrativa é uma justa causa, mesmo que ela se apresente com elementos no fumus boni iuris, pois sem elementos materiais ou justificativa plausível não pode o MP devassar a vida do agente público sob o sólido argumento de tentar encontrar indícios de uma pseudo-infração à ordem jurídica.

O uso do poder de acionar não é arbitrário e não se abriga nos humores ou na preferência da autoridade responsável pelo ajuizamento da lide. Exige-se um mínimo de plausibilidade jurídica no ingresso da ação de improbidade administrativa.

Assim, a ação deverá ser rejeitada quando inexistente o ato de improbidade administrativa, de improcedência da ação ou da inadequação da via eleita (art. 17, § 8º, da Lei nº 8.429/92)

Na falta de plausibilidade jurídica, com a rejeição da ação, o Magistrado afasta pedidos absurdos ou impróprios que não guardem correlação com o rito escolhido.

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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Ilegalidade e abuso de poder na investigação policial e administrativa, na denúncia e no ajuizamento de ação de improbidade administrativa.: Ausência de justa causa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 657, 25 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6624. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Título original: "Ilegalidade e abuso de poder na investigação policial e administrativa, na denúncia e no ajuizamento de ação de improbidade administrativa, quando ausente de uma justa causa".

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