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Ilegalidade e abuso de poder na investigação policial e administrativa, na denúncia e no ajuizamento de ação de improbidade administrativa.

Ausência de justa causa

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25/04/2005 às 00:00
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IV - O USO DA JURISDIÇÃO PELO PODER PÚBLICO DEVE SER RESPONSÁVEL

O Poder Público, em todos os níveis, possui como missão principal possibilitar à sociedade o seu desenvolvimento justo e honesto, em homenagem à segurança jurídica que deve inspirar a atuação dos países que marcham sob os desígnios da bandeira do Estado Democrático de Direito.

Exatamente por esse princípio legal o poder não é ilimitado, não podendo a lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da CF).

Desse modo, o Estado, no desempenho de sua finalidade de assegurar a ordem jurídica, não pode ser irresponsável na sua atuação, tendo em vista que, como parte, representado por um dos seus entes públicos, deve trazer para a sociedade a segurança de que não perseguirá pessoas ou grupos com a propositura de ações temerárias, que trazem no seu âmago o espírito da perseguição ou da vingança política.

A jurisdição é o poder que nasce direcionado para o Estado, para que ele possa fazer valer a segurança jurídica, uma vez que, através do Poder Judiciário, é o responsável pela estabilização das relações sociais, do cumprimento obrigatório das leis.

Assim, quando o Poder Público, responsável pela jurisdição, alça-se a condição de autor de investigação ou de ação judicial, ele terá que ter como finalidade a manutenção do postulado ético-jurídico da lealdade processual, onde o procedimento legal não poderá ser manipulado para viabilizar o abuso de direito.

Sobre a jurisdição, Liebman, [61] declinando o posicionamento da clássica escola de processualistas italianos, define:

"Muitas são as definições que se costumam dar sobre a jurisdição; recordamos duas, as mais importantes, que constituíram o tecido dialético do debate científico na Itália por muitos decênios. A primeira define a jurisdição como a atuação da lei por parte dos órgãos públicos a tanto destinados (Chiovenda). A segunda prefere por sua vez defini-la como a justa composição da lide (Carnelutti), entendo por lide qualquer conflito de interesses regulado pelo direito e por justa composição feita de acordo com o direito.

As duas definições, embora tenham sido no passado objeto de vivas discussões, podem hoje ser consideradas complementares: a primeira representa uma visão puramente jurídica do conteúdo da jurisdição, pois estabelece a relação entre lei e jurisdição, ao passo que a segunda considera a atuação do direito como o meio para atingir uma finalidade ulterior (a composição do conflito de interesses), procurando assim captar o conteúdo efetivo da matéria à qual a lei vem aplicada e o resultado prático, sob o aspecto sociológico, a que a operação conduz. Observe-se que a definição de Carnelutti, aceitável para a jurisdição civil e administrativa, já não o é tanto no que concerne à jurisdição penal."

Destarte, as jurisdições penal, civil e administrativa, não podem ser irresponsáveis, pois são instituídas para realizarem o pasmado do direito e da justiça, buscando preservar o bom servidor público, somente instaurados quando presentes indícios de ilícitos ou infrações disciplinares.

O direito sancionador, mais do que qualquer outro, não pode servir como um pretexto de injustiças pessoais, conforme o magistério de Eduardo Couture: [62]

"El derecho disciplinario presupone jerarquía y subordinación. Quien tiene la potestad jerárquica, puede imponer formas de conducta previstas en la ley, para asegurar el cumplimiento de la misma. El que está sometido a una subordinación debe obedecer y ajustar su conducta a lo preceptuado por el jerarca.

Pero en todo caso, la disciplina está a su vez jerárquicamente subordinada a la ley. No es posible, a pretexto de la disciplina, cometer una injusticia. La juridicición no se justifica por el orden, sino por la justicia (...) Pero en todos esos casos, el derecho disciplinario es derecho administrativo o derecho penal."

Muito embora o direito de o MP acionar seja considerado direito público subjetivo autônomo e abstrato, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, dentre outras, a lei pode estabelecer condições necessárias ao seu exercício, como forma de evitar abusos de direito, com a propositura de lides ou a instauração de procedimentos disciplinares inúteis, em que o pedido já nasce contaminado pela sua insubsistência. [63]

Nesse formato, dispõem o Código de Processo Civil (art. 267, VI) [64] e o Código de Processo Penal (art. 43) [65], em homenagem ao interesse público que quando não concorrer qualquer das condições da ação seu exercício é vedado.

Assim, a Lei Processual adotou a teoria da substanciação, na qual é consagrado que não basta o autor afirmar a existência da relação jurídica, sendo também necessária a demonstração do fato concreto que deu azo à sua pretensão:

"A atividade jurisdicional, destinando-se a compor as lides, será exercida quanto a uma concreta relação jurídica, identificável por seus sujeitos e pelas coordenadas de tempo e lugar. O Juiz não emite comandos genéricos e indeterminados, tarefa esta própria do legislador. Extingue-se, sem julgamento do mérito, o processo cuja inicial limita-se a pleitear o reconhecimento de uma tese jurídica". [66]

Mantendo eficaz a teoria da substanciação, dispõe o art. 295, parágrafo único, II, do CPC, que a petição inicial será indeferida "quando da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão;".

O TJ/SC, na Ap. Cível nº 2001.008770-7, Rel. Des. Newton Trisotto, prestigiou a teoria da substanciação em ação popular, extinguindo a lide por falta de plausibilidade jurídica:

"Ação popular. Convênio entre Estado de Santa Catarina e instituição de ensino. Dispensa de licitação. Petição inicial. Teoria da substanciação. Imprescindibilidade da descrição dos atos lesivos ao erário ou atentatórios à moralidade pública. Extinção do processo. Em princípio, não pode ser extinto o processo, in limine, por fundamento relacionado com o mérito da causa. No entanto, em direito não há lugar para absolutos (Teori Albino Zavascki). Presta-se a ação popular para o cidadão pleitear a anulação de atos lesivos ao patrimônio público, no seu conceito mais amplo (Lei nº 4.717/65, art. 1º). Nela, o autor não visa à satisfação de um interesse individual; litiga como substituto processual da coletividade, na defesa de seus interesses. Se os fatos descritos na petição inicial revelam que o ato impugnado não é contrário à lei ou à moralidade administrativa, faltando, por isso, plausibilidade jurídica ao pleito, a sociedade destinatária da proteção legal não pode ser punida tendo que suportar os custos do processo que, nessa hipótese, pode ser julgado extinto liminarmente."

Ou pelas palavras de Luiz Wanderley Gazoto: [67]

"Mas o que nos interessa no momento é que a revelação da causa de pedir permite ao Juiz realizar o cotejo entre os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido e concluir se, realmente, o direito alberga a pretensão do autor, constatando a razoabilidade do exercício do direito de ação, tudo isso deixa patenteado que o exercício do direito de ação não é arbitrário, desvinculado da realidade concreta ou de fato que justifique o seu emprego, mas deve estar subordinado à existência do interesse legítimo e finalístico, manifestado na necessidade e na utilidade do provimento judicial."

É dever do Estado [68] zelar pela lealdade processual, não sendo permitido o ingresso de lide ou instauração de processo administrativo disciplinar temerário.

Posta a situação em foco, extrai-se que o poder de acionar ou de investigar possui limites, ele não é absoluto mesmo que ancorado na defesa do patrimônio público, do patrimônio social, do meio ambiente, do consumidor e dos bens e demais direitos que lhe são afetos, "precisa ser entendida e compreendida nos seus justos limites" [69], sem abusos ou distorções:


V – ABUSO DE PODER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DIREITO DE ACIONAR

O controle que o Ministério Público exerce sobre toda a coletividade é necessário para garantir a manutenção da democracia e do Estado de Direito que reina em nosso país.

Triste seria uma sociedade que não tivesse no MP a devida "blindagem" contra abusos e violências perpetradas pelo Poder Público.

Não se questiona o brilho dos notáveis componentes do parquet, pois é justamente neles que toda a população deposita confiança no combate à corrupção e na imoralidade que mancha a nação.

O Brasil é um país rico e agraciado no campo dos valores humanos. Sucede que, como todo país em via de desenvolvimento, a corrupção assola nosso sistema público, onde figuras nefastas enlameiam suas funções com negociatas e derramamento de dinheiro público, pago pelos sofridos contribuintes, combalidos pelo crescente aumento da carga tributária.

De nada adiantam os aumentos de impostos ou as reformas estruturais se não houver um arrocho na corrupção e no desperdício do dinheiro público.

Estes fatos são notórios e não necessitam de muitas linhas para convencer o leitor de que um dos grandes males do Brasil é a corrupção pública.

Ocorre que não podem ser generalizados todos os atos públicos, como se eles gozassem de uma presunção de ilegalidade. Nem que todos os agentes públicos são imorais e devassos.

A prudência é necessária para conferir uma dose de equilíbrio no direito de acionar, pois a ninguém é dado o direito de utilizar a via da ilegítima investigação penal/administrativa para atingir o homem público, sem que estejam presentes indícios ou justificações concretas e sérias, obtidas por meio lícitos, não decorrendo da criação da vontade de quem quer que seja.

A partir do momento que o acesso ao judiciário é uma garantia fundamental, que nem a lei pode excluir o direito à tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF), o Estado-Juiz, sempre que procurado não poderá se furtar de sua indelegável missão de fazer justiça. Sendo chamado a exercer sua jurisdição, aplicando o direito ao caso concreto, o Poder Judiciário verifica as condições da ação e emite um juízo de valor sobre o caso colocado em seu raio de responsabilidade.

Na prática, com uma atuação viril, o Ministério Púbico vem multiplicando o ingresso de ações civis públicas, aí abrangidas as ações de improbidade administrativa, muitas delas sem substância de sustentação, levando Rogério Lauria Tucci, com apoio em Kazuo Watanabe, a identificar que elas representam "autêntica panacéia geral para toda e qualquer situação":

"Realmente, as diversificadas atuações dos membros do parquet, tanto no plano federal, como no estadual, chegando a formular pedidos juridicamente impossíveis, a substituir, sem legitimidade, entidades de classe, e a agir sem o imprescindível interesse processual, têm, segundo entendemos, extravasado, consideravelmente, os lindes estabelecidos na legislação em vigor, de sorte a tornar a ação em estudo inadequada ao escopo perseguido pelo demandante". [70]

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Assim, nasce o abuso de direito do Ministério Público, quando propõe ações natimortas, em que inexiste o ato de improbidade administrativa, sendo improcedente por falta de tipicidade da conduta do agente público ou até mesmo pela inadequação da via eleita (§ 8º, do art. 17, da Lei nº 8.429/92).

Essa proliferação de ações ilegítimas não se encerra rapidamente, pois nosso sistema processual é extremamente perverso, com uma tramitação lenta, parece concebido para que o processo não termine, sangrando o réu da ação quase até a morte, pois a simples propositura de tão grave ação de improbidade administrativa é um ultraje para quem não deu azo ao seu enquadramento.

Do mesmo modo, acontece o mesmo fenômeno na esfera penal e na instância administrativa, onde elas são acionadas, em algumas situações, de maneira açodada e desqualificadamente, desatrelada da materialidade de uma conduta, além do divórcio das prova ou dos indícios.

O princípio da economia processual evita a exposição desnecessária das partes, satisfazendo o ideal de justiça quando se determina arquivamento dos procedimentos que não possuam substrato de viabilidade jurídica, caracterizados pelos abuso do direito de acionar.

O Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira lembrou que "o processo não é um jogo de esperteza, mas instrumento ético da jurisdição para efetivação dos direitos de cidadania". [71]

O STF, pelo voto do Ministro Celso de Mello, acentuou: "O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o postulado ético-jurídico de lealdade processual. O processo não pode ser manipulado para viabilizar abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das partes. O litigante de má-fé – trata-se de parte pública ou de parte privada – deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional dos juízos e dos tribunais, que não podem tolerar o abuso processual como prática descaracterizadora da essência ética do processo." [72]

Não obstante a morosidade do Judiciário, o abuso do direito de acionar do MP é verificado quando ele extrapola os limites de um direito em prejuízo de quem é colocado no pólo passivo da ação, injustamente, sem elementos de base de sustentação.

Nas precisas palavras do Des. Rui Stoco, em sede doutrinária, "o direito cessa onde o abuso começa". [73]

Assim, o exercício da prerrogativa de acionar encontra limites na esfera jurídica alheia que veda a utilização anormal de direitos.

Caio Mário da Silva Pereira, [74] sintetiza o sentido da expressão "abuso de direito":

"Abusa, pois, de seu direito o titular que dele se utiliza levando um malefício a outrem, inspirado na intenção de fazer mal e com proveito próprio. O fundamento ético da teoria pode, pois, assentar em que a lei não deve permitir que alguém se sirva de seu direito exclusivamente para causar dano a outrem."

Rui Stoco [75] também tece importantes considerações sobre o tema:

"Também se comporta o abuso na intenção ou no animus nocendi, quando o agente se inspira na intenção de causar mal a outrem (...). Do que se conclui que o indivíduo para exercitar o direito que lhe foi outorgado ou posto à disposição deve conter-se dentro de uma limitação ética, além da qual desborda do lícito para o ilícito e do exercício regular para o exercício abusivo.

Como se impõe a noção de que nosso direito termina onde se inicia o direito do próximo, confirma-se a necessidade de prevalência da teoria da relatividade dos direitos subjetivos, impondo-se fazer uso dessa prerrogativa apenas para satisfação de interesse próprio ou defesa de prerrogativa que lhe foi assegurada e não com o objetivo único de obter vantagem indevida ou de prejudicar outrem, através da simulação, da fraude ou da má-fé.

Para situar-se no campo da normalidade e da licitude não basta estar legitimado pela legislação existente e asseguradora de direito.

Impõe-se fazer uso adequado do arsenal legislativo existente e não dele prevalecer e utilizá-lo para fim ilícito ou pretensão subalterna.

Pode-se usar a lei permissiva em vigor, de forma aparentemente adequada para obter fim ilegítimo ou não permitido pelo consenso nacional, hipótese em que se irá detectar o abuso no exercício do direito".

Irineu Strenger conceitua abuso de direito: [76]

"Abuso de direito é o ato realizado, com apoio em preceito legal, que causa dano a interesse não especificamente protegido pelo ordenamento positivo, manifestado pela lesão a princípios éticos e sociais, objetiva ou subjetivamente, mediante adequação entre o intencional e o sentido da lei."

O abuso do poder, no campo do direito administrativo, é espécie do gênero do abuso do direito.

In casu, abusa do direito quem ajuíza a ação com o rótulo de proteger a probidade administrativa e esquarteja o direito do agente público em ser acionado se não cometer ato ilegal ou combatido pelo ordenamento jurídico.

Como fiscal da lei, o MP possui a missão indelegável de proteger o interesse legítimo, mesmo que ele represente uma oposição aos entes de direito público.

A sua responsabilidade perante a sociedade não se dissolve quando o MP não é autor de denúncia [77] ou de ação de improbidade administrativa. Pelo contrário, aumenta o peso da responsabilidade, tendo em vista que o MP possui na denúncia os elementos que foram colhidos no inquérito policial sem o crivo do contraditório, aumentando o rigor técnico que deve ser o preponderante para a verificação de um ato ilícito, mesmo que em tese.

Na via da ação de improbidade administrativa, existe a figura do inquérito civil público, bem como a sindicância que antecede o processo disciplinar. Todos estes instrumentos legais servem como ferramentas para o MP aquinhoar dados e fatos e arquivar os casos em que não existem provas ou indícios contra os acusados, acionando aqueles que realmente restarem provados.

Por isso é que combatemos veementemente os procedimentos genéricos [78], instaurados sem elementos de indícios, mas com a direção certeira de tentar encontrar alguma ou suposta falta funcional.

Acusação genérica [79] possui o esteio de configurar o abuso do direito de acionar, pois é defeso tal procedimento, que exige um mínimo de indício da existência de um fato reprimido pelo ordenamento jurídico.

Pensa igual Adilson Abreu Dallari, [80] que discorre sobre a ilegalidade cometida pela Administração Pública e pelo Ministério Público quando eles estabeleceram procedimentos genéricos, visando encontrar algo contra o agente público:

"Fazendo uma comparação, no campo do direito administrativo, pode-se dizer que o inquérito civil está para a ação civil pública, assim como a sindicância está para o processo administrativo. Não é possível instaurar-se um processo administrativo disciplinar genérico para que no seu curso se apure se eventualmente alguém cometeu alguma falta funcional.

Não é dado à Administração Pública, nem ao Ministério Público, simplesmente molestar gratuidade e imotivadamente qualquer cidadão por alguma suposta eventual infração da qual ele talvez tenha participado.

Vale também aqui o princípio da proporcionalidade inerente ao poder de polícia, segundo o qual só é legítimo o constrangimento absolutamente necessário e na medida do necessário."

A seguir, o citado mestre arremata: [81]

"Repugna a consciência jurídica aceitar que alguém possa ser constrangido a figurar como réu numa ação civil pública perfeitamente evitável. Configura abuso de poder a propositura de ação civil temerária, despropositada, não precedida de cuidados mínimos quanto à sua viabilidade.

A realização ou não do inquérito civil, como providência preliminar à promoção da ação civil pública, pode ser um importantíssimo indicador do nível de correção da conduta do agente do Ministério Público, da sua maior ou menor diligência no exercício de suas funções.

A experiência prática tem revelado a ocorrência desagradavelmente freqüente de ações civis públicas totalmente despropositadas, que poderiam ter sido perfeitamente evitadas se o promotor público tivesse tido a mais mínima e elementar das cautelas, que é simplesmente ouvir o suposto infrator."

Essa atuação abusiva frente ao direito que o MP possui de fiscalizar não é absoluta, ela necessita de um respaldo fático/legal, pois do contrário, o Poder Judiciário estará apto a reparar o direito do agente público lesado.

O direito repudia o seu exercício abusivo, não bastando o MP ingressar com investigações criminais, mandar instaurar o procedimento disciplinar ou com a ação de improbidade administrativa e defender com isto o seu interesse ativo de ver os fatos apurados. E nem tampouco impressiona o argumento de que o indeferimento da inicial cerceia-lhe a sua ampla atuação, pois o abuso de direito é verificado quando inexiste o mínimo requisito de viabilidade do ato ministerial.

Nestas situações, o órgão do MP estará desautorizado a invadir a intimidade e a honra de quem quer que seja.

Não existe um superpoder que possa atuar acima do bem e do mal, como dito pelo Min. Celso de Mello, nas entrelinhas do voto no MS nº 23.452/RJ:

"Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revestem de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção por parte dos órgãos estatais de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição.

O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantia de terceiros." [82]

Seguindo as disposições do CPC e do CPP, a Lei de Improbidade Administrativa permitiu que pelo § 11, do art. 17, em qualquer fase do processo, reconhecida a inadequação da ação de improbidade administrativa, o Juiz extinguirá a ação.

Essas normas processuais, instituídas para afastar ou estancar o uso arbitrário do poder são a mínima garantia de que o mau uso das prerrogativas públicas, não terão um prazo de longa validade perante o direito.

Heleno Fragoso [83] assinala, com propriedade o abuso de poder do MP:

"Não se cogita aqui de ilegalidade: a denúncia pode ser formalmente incensurável. Cogita-se, isso sim, de abuso de poder, ou seja, de desvio de deveres do próprio ofício, na prática arbitrária de um ato legal. Há abuso de poder quando o funcionário se serve ilegitimamente de faculdades ou de meios de que legalmente pode dispor. O abuso de poder é, em suma, o mau uso de poder na denunciação, quando o MP, inteiramente fora da realidade e sem qualquer elemento de convicção, inicia o procedimento criminal."

Não se pode perder de vista que as leis penais são protetoras da liberdade e da igualdade individual, representando o tipo penal uma garantia de permissão das condutas contrárias ou diferentes de sua hipótese expressa, [84] o que nos leva a ressaltar a grande importância dos limites materiais do ius puniendi do Estado, visto que o direito penal somente deverá intervir para proteger bens jurídicos tutelados, sendo limitado o poder punitivo através da imputação objetiva.

O desvio do direito penal para satisfazer sentimentos políticos, viola a moral, segundo pensamento de Hanz Welzel: [85]

"Tão pronto quanto o Estado se vale dessas intervenções (ou de outras de igual gravidade), para atingir objetivos que estão fora do direito penal, eventualmente para alcançar fins econômicos ou de organização e até para lutar contra sentimentos políticos, rompe a força geradora da moral contida nas normas penais, e desvia ao direito penal pelo caminho de uma simples medida de intimidação."

Assim, o poder punitivo do Estado somente é acionado para proteger a sociedade, punindo o ato arbitrário, cometido com expressa violação às normas legais:

"El poder punitivo del Estado dirigido a la protección de la convivencia de las personas en la comunidad no puede ser ejercido de cualquier modo o sin consideración a su alcance." [86]

Assim sendo, quando não estiverem presentes os elementos legais que autorizam a investigação policial ou administrativa, faltará legítimo interesse do Poder Público para formular uma acusação.

O uso irregular de poder atormenta as pessoas e traz insegurança para toda a sociedade.

Ou, como dizia Hobbes Leviatã (I, 10 e 14), o poder atraente induz o indivíduo ao exercício ilimitado da força do poder.

Portanto, sem justa causa, as pessoas não podem ser atormentadas por um suposto ilícito, pois a liquidez e certeza de que existe um mínimo de indício de prova sobre um determinado fato ou ato é o elo necessário para dar início a uma investigação penal, administrativa ou através da própria ação de improbidade administrativa. Sem a existência de condicionamentos, que são os elementos de base de apoio da denúncia ou da investigação (justa causa ou uma plausível justificativa jurídica), o poder de invadir a intimidade das pessoas é abusivo e necessita de um freio aos possíveis exageros e a exacerbações. E é através do direito, da norma jurídica existente, que o agente e o sujeito do poder, devem manter continuidade e estabilidade da ordem social.

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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Ilegalidade e abuso de poder na investigação policial e administrativa, na denúncia e no ajuizamento de ação de improbidade administrativa.: Ausência de justa causa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 657, 25 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6624. Acesso em: 28 mar. 2024.

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Título original: "Ilegalidade e abuso de poder na investigação policial e administrativa, na denúncia e no ajuizamento de ação de improbidade administrativa, quando ausente de uma justa causa".

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