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Ilegalidade e abuso de poder na investigação policial e administrativa, na denúncia e no ajuizamento de ação de improbidade administrativa.

Ausência de justa causa

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25/04/2005 às 00:00
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VI – NATUREZA JURÍDICA DO PRESENTE ABUSO DE DIREITO – CRÍTICA DO PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTOS INVESTIGATÓRIOS E DA AÇÃO PENAL E DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

O equilíbrio da sociedade consiste em ter a garantia de que o poder será manifestado dentro dos limites do ordenamento jurídico, do direito, da ética e da moral.

Deflui-se, que o abuso de poder é um vício no ato praticado por uma autoridade no exercício de um poder, deixando de atingir os seus objetivos, o bem público ou a finalidade de sua ação. Não se trata de uma atuação fora da lei, pois senão teríamos a ilegalidade, nem a usurpação de uma função, caracterizadora de um crime, porém, a atividade de um poder, não exercido com as cautelas devidas, que ultrapassa os limites da sua ação, nem sempre endereçado dentro das suas atribuições, [87] revela um excesso desproporcional do poder, invalidado pelo direito.

O inquérito policial poderá ser instaurado também pela polícia judiciária, desde que tenha infrações penais a serem apuradas (art. 4º, CPP), ou seja, não poderá ser um ato de prepotência ou de força da autoridade, visto necessitar também de uma justa causa.

Sendo que a denúncia ou a queixa deverá conter a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a classificação do crime (art. 41, CPP) e as provas que respaldam a aludida assertiva acusatória.

Não havendo plausibilidade legal, o MP não deve inibir-se, pois o seu dever com a sociedade é indelegável, tendo como funções institucionais, dentre outras, a de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial quando existam fundamentos jurídicos para tal (art. 129, VIII, CF). Assim, servirá melhor ao próprio Estado, quando o membro do parquet não solicitar a instauração de investigações natimortas, bem como deixar de sobrecarregar ainda mais o Poder Judiciário com lides temerárias, que somente consomem a paciência dos magistrados e trazem a dor para o agente público ou terceiro investigado ou acionado indevidamente.

Estes atos mancham o relevante papel social ostentado pelo MP, em um Estado Democrático de Direito, em afronta aberta ao art. 127, da CF, assim redigido:

"Art. 127 – O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis."

Ora, compete ao Ministério Público zelar pela segurança da coletividade, fiscalizando a execução da lei (art. 257, CPP). Esta necessária fiscalização da lei traz a importante missão do MP de ser um órgão neutro e imparcial, voltado para a manutenção do permanente cumprimento da legalidade, onde todos os cidadãos que cumpram as suas obrigações terão a garantia de ter a proteção do membro do parquet.

Esta é a natureza jurídica do abuso do poder do direito de invadir a intimidade das pessoas indevidamente, com investigações ou denúncias imotivadas, sem uma justa e devida causa.

Este extrapolamento das prerrogativas acusatórias, sem as cautelas legais, instituídas pelo ordenamento jurídico justamente para trazer a segurança jurídica para todos, caracteriza o excéss de pouvoir ou abuso do direito de invadir a vida das pessoas, com falsos denuncismos.

O Estado não pode permitir que se pratique atos visando a destruição dos direitos e liberdades consagradas ou a ampliar as restrições desses mesmos direitos e liberdades além dos limites previstos pelo ordenamento jurídico.

O ponto de partida em uma investigação consiste na verificação da existência dos motivos, resultantes de indícios de um ilícito criminal ou de uma infração disciplinar. Segue-se, imediatamente, a necessidade da apreciação do valor desses motivos, a fim de que possa a autoridade se orientar no tocante à necessidade de investigar ou até mesmo denunciar.

A regra de competência, [88] não autoriza o MP a promover a açodada investigação, com invasão indevida da vida privada das pessoas.

O já citado mestre Caio Tácito, [89] que tanto dignifica o direito público, em especial ao direito administrativo, define o desvio de poder como:

"O desvio de poder é a inconformidade entre o ato administrativo e a finalidade prevista na lei. A denominação dessa forma de nulidade tem um magnífico teor descritivo. E quando o agente se desvia do alvo obrigatório, em virtude do qual a lei o habilitou a operar, que a ação se torna ilícita e nenhuma."

Em outro magnífico trabalho, o já nominado expoente do direito administrativo, Caio Tácito [90] ensina:

"O desvio de poder é, por definição um limite à ação discricionária, um freio ao transbordamento da competência legal além de suas fronteiras, de modo a impedir que a prática do ato administrativo, calcada no poder de agir do agente, possa dirigir-se à consecução de um fim de interesse privado, ou mesmo de outro fim público estranho à previsão legal."

O abuso de poder aqui explicitado é aquele em que o membro do parquet mesmo possuindo a faculdade de solicitar a abertura de inquéritos administrativos disciplinares, usa o seu poder discricionário para um fim distinto do direito, que não permite a invasão de privacidade alheia sem um justo motivo.

E este justo e necessário motivo, como visto, interliga-se às condições eleitas pela lei para que o MP possa exercitar a obrigatoriedade da ação penal, da ação de improbidade administrativa e das respectivas investigações.

Sendo que esta prerrogativa não é absoluta, ela não está interligada aos poderes que a lei atribui ao MP e sim ao princípio da legalidade, suficiente para subtrair a atuação do fiscal da lei quando inexistentes as condições mínimas para o oferecimento da denúncia.

No Brasil é necessário que se afaste este dogma de que todos são suspeitos mesmo sem indícios de uma irregularidade, o MP estaria autorizado a aterrorizar quem quer que seja.

Tanto o Código de Processo Penal, como o CPC e os Estatutos dos Funcionários Públicos, bem como a lei de improbidade administrativa, estabelecem princípios para a instauração dos diversos procedimentos legais, justamente para inibir uma jurisdição irresponsável, sem substrato legal.

A doutrina francesa, que tanto influenciou o aprimoramento do combate ao desvio de poder público, pelo autorizado posicionamento de Laferriére, [91] estabelece:

"La desviación de poder constituye pues un abuso del mandato que el administrador ha recebido. El que comete adopta, bajo una falsa aparencia de legalidad, decisiones que lo le atañen y que están, así, incursos en una especie de incompetencia, sino por las prescripciones que imponem, sí, al menos, por el fin que persiguen."

O controle da forma dos atos do MP não lhe cerceia o seu importante papel social, apenas permite que não se perpetue o desvio de poder de denunciar, através do cotejo das condições da ação ou dos elementos de sustentação da própria base do ato ministerial.

Não representa, com isto, uma indevida intromissão do Poder Judiciário às prerrogativas do MP, visto que o desvio de poder retira a validade legal da atuação do membro do parquet.

Maurice Hauriou [92] define o desvio sub oculis como:

"El hecho de una autoridad administrativa que, cumpliend un acto de su competencia, observado las formas prescritas y sin cometer ninguna violación de ley, usa de su poder con un fin y motivos distintos aquellos por los cuales se la ha conferido el poder, es decidir, distintos al ben del servicio."

Laudadére [93] define de modo semelhante o desvio de poder:

"Existe desviación de poder cuando una autoridad administrativa cumple regularmente un acto de su competencia pero en vista de un fin distinto aquél por el cual podía ser cumplido el acto."

Também se agrega a esta corrente francesa de notáveis Beurdeley: [94]

"Un acto administrativo que haya sido adoptado por una autoridad competente, regular en la forma, que no comportaría ninguna violación de ley, estando dotado, así, de apariencia de legalidad, puede ser declarado, no obstante, ilegal, anulando o privado de sanción penal, si su autor ha usado de sus poderes con fin distinto a aquellos por los cuales le fueran conferidos tales poderes."

O vício de legalidade em causa encontra paradigma no Direito de outros países, não sendo mais tolerado na modernidade tais desvios por parte das autoridades públicas, aí incluídos os membros do MP, que possuem no princípio da legalidade e da impessoalidade, a que alude o art. 37, da CF, as devidas barreiras para uma atuação contrária a estes salutares princípios.

Espera-se não só a devida independência do MP, como o seu equilíbrio jurídico, necessário para construir uma sociedade livre e justa.

Assim, o princípio da obrigatoriedade da ação penal, bem como a investigação, cedem a realidade dos fatos, onde a falta de materialidade de um ato ilícito não pode elastecer o poder do MP, ao ponto de sufragar direitos e garantias do indivíduo.

O princípio da legalidade, como regra fundamental e indissolúvel, obriga o MP, não havendo um justo motivo, a pedir arquivamento de inquérito policial (art. 28, CPP):

"Para pedir o arquivamento, o órgão do Ministério Público apresentará a devida fundamentação, dando as razões do pedido (CPP, art. 28), as quais podem consistir ou em razões concernentes à inadmissibilidade da persecutio crimis (razões de legalidade para o arquivamento) ou em razões relativas a não oportunidade ou não conveniência do exercício da ação penal." [95]

Nós vamos mais além, pois entendemos que a falta de motivos retira a obrigatoriedade da investigação penal ou administrativa. A atuação do MP não é irresponsável ou aleatória, exigindo um mínimo de plausibilidade para o exercício das suas prerrogativas em investigar ou propor ações contra os agentes públicos, devendo ser submetido seus atos ao crivo do princípio constitucional da eficiência das instituições públicas, a que alude o art. 37, da CF, e dos instrumentos de que as instituições dispõem para atingir seus maiores interesses.

Por essa razão, não existindo indícios, ou provas e motivos determinantes, deve ser evitada a promoção da ação penal ou de qualquer investigação penal/administrativa:

"... sempre que algum fato fizer revelar que a promoção da ação penal não é conveniente para o bem público, o Ministério Público não deve encetar." [96]

A seguir, Luís Wanderley Gazoto, [97] com extrema felicidade, aduna:

"1) A ação penal pública é instrumento destinado à obtenção de um interesse público específico: a persecução penal de condutas criminais seriamente indesejáveis.

2) O interesse da persecução penal não é o fim maior do Estado e, por isso, sempre que colidir com outros interesses de maior relevância, deve ser a ele submetido.

3) Sendo mero instrumento e não finalidade em si, a ação penal pública somente pode ser movida se, razoavelmente, houver probabilidade de produzir os efeitos necessários.

4) A atividade ministerial de persecução penal deve ser considerada, em sentido amplo, como objetivo global e não particularizado em caso isolado.

5) Por isso, o Ministério Público como instituição política promotora da persecução penal, deve organizar-se para bem gerir as suas forças e, assim, atingir o interesse público de sua alçada.

6) Em sendo a atividade de persecução penal eminentemente administrativa, fatos concretos, como o excesso de demanda da atividade judiciária, devem ser considerados na avaliação do interesse e da utilidade da promoção da ação penal pública."

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Verificado o exercício irregular do MP, nasce o abuso de poder, tão combatido pelo saudoso Heleno Fragoso: [98]

"9. O abuso de poder ou a falta de legítimo interesse no exercício do direito de ação encontra nos processos políticos o campo mais propício para surgir. Assim tem sido ao longo da história."

Sobre a dignidade da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública, diz Afrânio Silva Jardim: [99]

"De forma indistinta, a abundante doutrina que trata do princípio em questão usa duas expressões, como sinônimas, para designar o dever do Ministério Público propor a ação penal condenatória. Fala-se em princípio da legalidade ou em princípio da obrigatoriedade.

Preferimos usar a expressão princípio da obrigatoriedade, a fim de tornar mais claro que o dever legal de o Ministério Público exercitar a ação penal, é, na verdade, uma decorrência do próprio princípio da legalidade, que, numa perspectiva mais ampla, informa a atuação dos órgãos públicos chamado Estado de Direito." (grifos originais).

Pelo princípio da legalidade, os membros do MP não podem exorbitar de suas atribuições, tendo em vista que como agentes públicos, só podem fazer o que a lei prevê, sendo certo, que o excesso ou desvio do poder de investigar ultrapassa o seu fim legal.

Hely Lopes Meirelles, [100] define bem o tema de uma forma geral:

"(...) enquanto na Administração Particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza."

Perfilha-se a essa corrente José Cretella Junior, [101] para quem:

"Legalidade é a obediência ao texto legal, implícita ou explicitamente, à letra ou ao espírito. Na realidade, o desvio de poder permite sancionar violações do espírito da lei que respeitam no entanto, a letra da lei (...) O espírito deve ser preferido à letra, na interpretação dum dispositivo de lei. A violação do espírito de lei constitui também violação da lei, motivo porque o desvio de poder é igualmente uma forma de ilegalidade."

E, segundo Norberto Bobbio: [102]

"... costuma-se falar em legalidade quando se trata de sua qualidade legal: poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente, o poder legal é um poder de está sendo exercido de acordo com as leis. O contrário de um poder legítimo é um poder de fato; o contrário de um poder legal é um poder arbitrário. Quem detém o poder não o exerce sempre de forma arbitrária, assim como nem sempre quem exerce o poder arbitrariamente é detentor unicamente de um poder de fato. Com base nesta acepção do termo de legalidade, entende-se por princípio da legalidade, aquele pelo qual todos os organismos do Estado, isto é, todos os organismos que exercem poder público, devem atuar no âmbito das leis, a não ser em casos excepcionais expressamente estabelecidos, e pelo fato de já estarem estabelecidos, também são perfeitamente toleráveis o exercício discricionário do poder, mas exclui o exercício arbitrário todo ato emitido com base numa análise e num juízo estritamente pessoal da situação."

Não resta dúvida, que o art. 129, II, da CF, estabelece, como função institucional do Ministério Público, dentre outras, promover medidas necessárias a garantia dos direitos assegurados pela Constituição (inc. II); promovendo a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (inc. III); requisitando diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial desde que indicando os fundamentos jurídicos legais de suas manifestações processuais (inc. VIII).

Estes deveres legais, estabelecidos pela CF, desautorizam a prática de atos contrários a eles, dissonante, portanto, da moralidade, eis que o MP não pode, como fiscal da lei, fazer "tábula raza" do princípio da legalidade e cometer atos excessivos, que transcendem aos seus deveres e deságuam no excesso de poder quando passa a desempenhar uma certa atividade processante, desvinculada de elementos de base de sustentação jurídica. Não resta dúvida que, para tais casos, haverá constrangimento ilegal sanável pela impetração do habeas corpus (art. 648, I, CPP), ou pela via do writ of mandamus.

Em abono ao que foi dito, Luis Wanderley Gazoto, [103] criticando o formalismo do Ministério Público, opinando pelo não oferecimento de denúncias que já nascem com o insucesso determinado:

"Dessa forma, não encontrando viabilidade prática para a obtenção de sucesso com determinada ação penal, o membro do Ministério Público, para atender ao interesse público, não deve oferece-la."

Funcionam essas considerações também para o cotejo da ação de improbidade administrativa, onde a falta de um ato ímprobo retira a faculdade do MP propor a respectiva ação.

Após a verificação de inúmeros abusos do direito de acionar do MP, registramos em nosso "O Limite da Improbidade Administrativa – O Direito dos Administrados dentro da Lei nº 8.429/92", 2ª ed., Ed. América Jurídica, Rio de Janeiro, todo inconformismo, visto que atos ilegais, que não causam lesão ao erário, constituídos de boa-fé, são tidos como devassos e ilegais.

Portanto, todos os operadores do direito, sem exceção, composta pelos Magistrados, Promotores, Advogados, Defensores Públicos, etc., devem se unir para evitar que os abusos de poder por parte de membros do parquet não enlameiam o bom nome desta vital e importante função pública.

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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Ilegalidade e abuso de poder na investigação policial e administrativa, na denúncia e no ajuizamento de ação de improbidade administrativa.: Ausência de justa causa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 657, 25 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6624. Acesso em: 5 mai. 2024.

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Título original: "Ilegalidade e abuso de poder na investigação policial e administrativa, na denúncia e no ajuizamento de ação de improbidade administrativa, quando ausente de uma justa causa".

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