Conclusões
Nossa primeira conclusão é de que a crise no Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro era e é real, mas não apresenta os pressupostos jurídicos para a declaração de estado de calamidade pública, visto que não se configurou a imprevisibilidade, além do que a autoridade responsável, o Ministério da Saúde, representando a União, concorreu de forma expressiva para a sua deflagração.
Por conseguinte, sem a fundamentação da calamidade pública, queda sem base a requisição de bens e serviços públicos do Município que, como demonstrado, é claramente inconstitucional, somente podendo ser aplicada durante a excepcionalidade do Estado de Defesa.
Todavia, alguém poderia argüir que, apesar de juridicamente frágil, e independentemente de a quem caiba a responsabilidade, a requisição dos hospitais municipais e municipalizados era efetivamente necessária, devido à referida crise e à ameaça à saúde dos cidadãos, valor maior que deveria ser preservado. Assim, se justificaria a interpretação teleológica defendida pela AGU, e o sentido do texto constitucional, apesar de se referir apenas à propriedade particular, deveria ser ampliado para abranger também os bens e serviços públicos.
Lembremos que, ao se aceitar tal hipótese, teríamos como conseqüência a violação de outro valor relevante, a autonomia municipal, princípio essencial ao nosso Estado Democrático de Direito, nos termos da Constituição de 88.
Temos aqui uma circunstância em que se contrapõem dois valores constitucionais relevantes, o direito à saúde e o princípio da autonomia municipal, e aparentemente a priorização de um nos levaria obrigatoriamente a atentar contra o outro. Em tais situações, devemos analisar de forma minuciosa o caso concreto, e ponderar, diante dele, os referidos valores, de forma a identificar se a solução adotada é a melhor, e se é aceitável juridicamente.
Para tanto, deve-se utilizar o chamado princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, que, como nos ensina o professor Luís Roberto Barroso, consiste na aplicação sucessiva de três critérios, que são:
(...) (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos (BARROSO, 2001, p.223/4).
Assim, devem ser feitas três perguntas, correspondentes aos critérios referidos, sempre que nos colocamos diante de casos como o que está em estudo. Caso a resposta seja negativa em qualquer delas, a solução proposta deverá ser rejeitada.
A primeira pergunta é: existe adequação da solução ao problema, ou seja, a solução proposta resolve o problema? Se não resolver, não há porque avançar para as demais questões, e tal proposta deve ser de pronto eliminada.
A segunda pergunta é: a solução atende ao critério da necessidade, ou seja, ela é necessária, não existindo outra solução também adequada mas menos danosa? Se existir outra solução com menos conseqüências negativas, aquela proposta inicialmente considerada deverá ser portanto rejeitada.
E finalmente, a terceira pergunta é: mesmo sendo tal solução adequada, mesmo sendo a que causa menos prejuízos aos valores em questão, ela é proporcional ou razoável, ou seja, vale a pena, os benefícios que proporciona são superiores aos danos que causa? Se a solução a princípio adotada, mesmo sendo adequada, mesmo sendo a menos danosa, trouxer mais ônus do que bônus, não deve ser aceita.
Apliquemos pois estas perguntas à nossa situação.
1) As medidas propostas no Decreto são adequadas, solucionando, pelo menos quanto às suas conseqüências mais imediatas, a crise no Sistema Único de Saúde no Município do Rio de Janeiro? Embora acreditemos que não, vamos aceitar que existe tal possibilidade, visto que não pudemos ainda avaliar seus efeitos concretos, respondendo, portanto, de forma positiva a este quesito.
2) Considerando que tais medidas são adequadas, elas são necessárias, inexistindo forma menos danosa do que o citado Decreto para implantá-las? Aqui devemos responder com segurança de forma negativa. Mesmo que consideremos, por hipótese, as ações definidas pelo Decreto como adequadas e eficazes, elas poderiam ser implementadas sem a expedição de ato tão agressivo e violador da autonomia do Município do Rio de Janeiro como é o Decreto do Presidente da República.
Revisemos as medidas concretas decorrentes do Decreto:
a)Desabilitação do Município do Rio de Janeiro quanto à Gestão Plena do Sistema Único de Saúde: já demonstramos que tal medida poderia ser concretizada por mera portaria do Ministério da Saúde;
b)Requisição dos Hospitais Federais Municipalizados (Lagoa, Andaraí, Jacarepaguá e Ipanema): estes hospitais foram transferidos para o Município por termos de cessão firmados pelo Ministério da Saúde. Ora, o Município queria desde o início devolve-los à União, bastando por conseguinte que o Ministério da Saúde informasse ao Município seu interesse em tê-los de volta. Se não objetivasse uma retomada definitiva, o Ministério poderia suspender temporariamente a cessão dos mesmos. Antes que alguém diga que tais soluções apresentam deficiências jurídicas, o que é possível, já que não dispomos da íntegra dos termos de cessão, temos absoluta certeza de que a criatividade jurídica que produziu o Decreto encontraria as devidas soluções, com facilidade.
c)Requisição dos Hospitais Municipais (Miguel Couto e Souza Aguiar): aqui, efetivamente, não há nenhum meio juridicamente viável que permita à União assumir a gestão dessas unidades. Aliás, nem o Decreto.
d)Como medida adicional, mas que foi apresentada como uma das soluções para o chamado estado de calamidade pública, temos a instalação dos Hospitais de Campanha das Forças Armadas: sua utilização poderia ser feita a qualquer tempo, sem a necessidade do Decreto, desde que o Ministério o solicitasse ao Ministério da Defesa.
Desta forma, podemos concluir que todas as ações desenvolvidas pela União, com a coordenação do Ministério da Saúde, para enfrentar o declarado estado de calamidade pública, poderiam ser efetivadas sem a expedição do Decreto, com exceção da requisição dos dois hospitais municipais.
É evidente que a exclusão desses dois hospitais não significaria redução expressiva no impacto das referidas ações, sempre na hipótese de que as mesmas se mostrem eficazes. Até porque poderia ser compensada com ações que incrementassem a produção e a disponibilidade de leitos e serviços de emergência nos hospitais federais ainda sob controle do Ministério da Saúde, como já exposto.
Desnecessário, como podemos constatar, aplicar a terceira pergunta, para rejeitar a solução expressa pelo Decreto.
Nossa segunda conclusão, em conseqüência, é de que a expedição do Decreto desrespeitou o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, sendo totalmente dispensável para a aplicação das ações que o Ministério entendeu imperativas, já que as mesmas poderiam ter sido realizadas por meios que não agrediriam a autonomia municipal. A eficácia ou não de tais ações é irrelevante.
Nossa terceira conclusão, que decorre das anteriores, é de que não cabe a proposta de interpretação teleológica defendida pela AGU; devendo o instituto da requisição permanecer restrito à propriedade particular, como sempre esteve e como estabelece com clareza nossa Constituição Federal. É insofismável que a inclusão de bens e serviços públicos violentaria o princípio da autonomia municipal e o princípio federativo, motivo pelo qual a Carta Magna reserva tal hipótese para o Estado de Defesa, por natureza excepcional e restritíssimo.
Cabe finalmente avaliar qual a real natureza do Decreto. Ele é inconstitucional por determinar requisição de bens e serviços públicos, declara estado de calamidade pública sem respeitar os requisitos legais necessários para tanto e, além de tudo, é desnecessário, já que suas medidas poderiam ser realizadas por outros atos não viciados de inconstitucionalidade e ilegalidade.
Acima de tudo, ele tem uma essência que, após a análise de seus elementos, fica desnudada e permite que apresentemos nossa quarta conclusão: o Decreto nº 5.392, ao contrário de resultar na mera requisição de bens e serviços do Município do Rio de Janeiro, representa verdadeira intervenção da União, do Governo Federal portanto, em órgãos públicos municipais.
Tal intervenção se caracteriza pela subtração dos hospitais mencionados no Decreto à órbita de gestão da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Dentre os efeitos decorrentes, temos a quebra da hierarquia que preside a relação entre os servidores e seus superiores. O sistema hierárquico é uma das notas distintivas da Administração Pública, como nos ensina Carvalho Filho:
Do sistema hierárquico na Administração decorrem alguns efeitos específicos. O primeiro consiste no poder de comando de agentes superiores sobre outros hierarquicamente inferiores. Estes, a seu turno, têm dever de obediência para com aqueles, cabendo-lhes executar as tarefas em conformidade com as determinações superiores (CARVALHO FILHO, 2002, p.49).
Ora, a partir do momento em que a União se apodera dos hospitais, passam seus prepostos a exercer o comando sobre os servidores que neles atuam, exigindo-lhes o correspondente dever de obediência. Embora o discurso dos representantes do Ministério da Saúde seja de que não interferem na gerência das unidades, atuando apenas no sentido de agregar recursos materiais e humanos indispensáveis ao seu funcionamento, é evidente que tal atuação, exercida sem prévia autorização de seus gestores e da Secretaria Municipal de Saúde, e sem que os mesmos lhe possam opor resistência, caracteriza o efetivo exercício do comando, até porque o próprio Decreto determina a requisição dos "bens, serviços e servidores" referentes àqueles hospitais.
Aliás, é como intervenção que o Decreto tem sido tratado pela imprensa, e como interventores os agentes que assumiram os hospitais. E é do que realmente se trata.
E, sendo assim, é uma situação de extrema gravidade. A Constituição da República veda explicitamente e de forma cabal qualquer intervenção da União em Municípios, e só permite, conforme seu art. 34, a intervenção da União em Estados em casos muito específicos e determinados, dentre os quais, como que por ironia, assegurar a observância do princípio constitucional da autonomia municipal!
Mesmo nos casos permitidos, a cautela em utilizar o instrumento da intervenção deve ser extrema, já que é um ato excepcional cujo abuso pode colocar em risco nossa frágil democracia em construção. Os alertas quanto a esse perigo sempre são reiterados pela doutrina. Como um em muitos exemplos, temos Simões Filho:
A Magna Carta estipula severos pressupostos materiais (ou eventos fáticos) e formais para sequer se cogitar de interferência tão visceral no basilar princípio da autonomia local e, sem rígida tipificação desses quesitos, a situação não se encartando, taxativamente, no figurino constitucional, há é abuso ou desvio de poder, a ser obviado pelo Poder Judiciário (SIMÕES FILHO, 2005).
(...)
A intervenção federal nos Estados (ou a estadual, nos Municípios), sendo de extrema excepcionalidade, requer toda cautela e avaliação fora de projetos localizados de poder, sectários, ou fora de circunstanciamentos emocionais (SIMÕES FILHO, 2005).
(...)
Sendo exceção, a intervenção federal impõe interpretação restritiva, vinculada ao rigor histórico dessa medida no texto fundamental brasileiro, não se admitindo entendimento simplificado, nem podem seus fundamentos, ou pressupostos, tanto materiais como formais, receber caracterização incerta, ao sabor de preferências ou variações de vontade pessoal; ao contrário exigem identificação taxativa, absolutamente tipificada, em cada hipótese de intervenção, sob pena de contrafação da Federação e de banalizar-se um instituto que se destina a preservar a Federação, quando sob demonstrado risco de destruição, não assim a unidade federada, em si mesma (SIMÕES FILHO, 2005).
Ao nos debruçarmos sobre os fatos que analisamos, percebemos claramente a seriedade de suas conseqüências. Estão em jogo os fundamentos do Estado de Direito, que aparece cristalino na definição de Novais:
Estado de Direito será, então, o Estado vinculado e limitado juridicamente em ordem à protecção, garantia e realização efectiva dos direitos fundamentais, que surgem como indisponíveis perante os detentores do poder e o próprio Estado (NOVAIS, 1987, p. 17).
A sua construção foi baseada na limitação dos atos arbitrários de um poder sem legitimidade nem compromisso com o interesse geral. E, para proteção da cidadania diante do poder, foi erigido o princípio da legalidade, apresentado em toda a sua profundidade pelo professor Celso Antônio Bandeira de Mello:
O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina.
Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize (MELLO, 1999, p. 63).
(...)
Assim, o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedece-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito brasileiro (MELLO, 1999, p. 59/60).
(...)
No Brasil, o princípio da legalidade, além de assentar-se na própria estrutura do Estado de Direito e, pois, do sistema constitucional como um todo, está radicado especificamente nos arts. 5º, II, 37 e 84, IV, da Constituição Federal. Estes dispositivos atribuem ao princípio em causa uma compostura muito estrita e rigorosa, não deixando válvula para que o Executivo se evada de seus grilhões. É, aliás, o que convém a um país de tão acentuada tradição autocrática, despótica, na qual o Poder Executivo, abertamente ou através de expedientes pueris – cuja pretensa juridicidade não iludiria sequer a um principiante – viola de modo sistemático direitos e liberdades públicas e tripudia à vontade sobre a repartição de poderes (MELLO, 1999, p. 60/61).
Acrescentamos que a intervenção atinge também os hospitais federais municipalizados, visto que estavam sob gestão do Município, legitimada por termos de cessão firmados pelo Ministério da Saúde, os quais não foram denunciados nem suspensos pela União.
Nossa quinta conclusão é que, ao praticar violenta e arbitrária intervenção no Município do Rio de Janeiro através de Decreto inconstitucional, a União atentou contra as bases do Sistema Único de Saúde, pondo em risco essa construção de cunho essencialmente democrático e que visa garantir o direito à saúde para todos os cidadãos. Ao contrário do que apregoam seus representantes, o Governo Federal colocou em risco todo um sistema baseado no reconhecimento da autonomia dos entes federados e da participação popular, por meio de uma medida de força totalmente desnecessária e de eficácia altamente duvidosa.
Depois que a União realizou tal intervenção, quem intervirá na União para impedir a consumação dessa violência? Somente o Poder Judiciário, através do Supremo Tribunal Federal, guardião primeiro da Lei Maior, poderá coibir este ato arbitrário, antidemocrático e violador do Estado de Direito.
Entendemos que todos aqueles realmente preocupados com a implantação efetiva e definitiva do Sistema Único de Saúde devem refletir sobre a gravidade deste ato, e tentar extrair desse momento lições que nos permitam avançar na consolidação do Estado Democrático de Direito.