O chefe da Escola de Viena, que é considerado o pai do “positivismo jurídico puro”, reagiu contra a ontogênese natural-histórico-sócio-cultural valorativa do direito, com a sua reine Rechtslehre (teoria pura do direito). Procurou expungir a jurisprudência, por isso, “de todos os elementos estranhos”, porque a “teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo”, onde descabem indagações de outra natureza que não a da normatividade(Teoria pura do direito).
É o que se denomina “pureza jurídica”, que considera “o problema do direito como um problema cientifico, de técnica social, e não um problema de moral”, tanto mais quanto “direito e justiça são dois conceitos diferentes” e “uma ciência do direito positivo deve claramente distinguir-se de uma filosofia da justiça”(General Theory of Law and State, 1949, pág. 5). Para Hans Kelsen, o Direito nada tem a ver com a Moral e, consequentemente, ciência do direito com filosofia da justiça; direito com justiça, não passando esta de um ideal irracional.
Há no ensinamento de Kelsen o monismo jurídico que identifica, de forma perigosa, Estado e Direito – um plus ultra de Hobbes e Hegel, podendo ensejar o totalitarismo seja de direita ou de esquerda.
Kelsen entendia que “igualmente é impossível justificar o Direito pelo Direito, a não ser que esta palavra seja empregada, uma vez no sentido de direito positivo, e outra vez no sentido de direito justo, de Justiça. Seria totalmente estéril a tentativa de legitimar o Estado como Estado de direito, querendo que todo Estado seja um Estado jurídico; se é que se entende que Estado de Direito é o Estado que tem uma ordem jurídica. Não podendo haver Estado que não tenha ordem jurídica, todo Estado é somente uma ordem jurídica; afirmação esta que não apresenta nenhum juízo jurídico de valor."
O direito normativo, na concepção de Kelsen, leva à concepção de um Estado visceralmente normativo, um feixe de normas.
Kelsen assegurava que “tanto o Direito como o Estado não podem ser de outro modo conhecidos senão como uma “ordem coativa da conduta humana sobre conceber juridicamente o Estado senão como o direito mesmo, o qual, como substrato espiritual objetivo, é ordem, portanto, objeto do conhecimento jurídico-normativo, e, como ato anímico-corporal motivado e motivador de outros, é poder, o poder do Direito.
O Estado, para Kelsen, é “ordem coativa da conduta humana”, “o direito mesmo”, e por isso, “poder, o poder do Direito” – que se manifesta através da normatividade, reveladora da realidade jurídica, fora do qual inexiste direito.
Um dos temas mais polêmicos da obra de Hans Kelsen é a “Grundnorm”.
A francesa Simone Goyard-Fabre (numa célebre obra sobre os fundamentos da ordem jurídica e a normatividade do edifício constitucional) assim expôs: "a 'Grundnorm', que é preciso supor, para determinar uma ordem jurídica, não é uma norma material caracterizada pela evidência ou pela força de seu conteúdo; ela traduz a exigência racional de acordo com a qual se dá a instituição do elemento fundamental das operações de criação do direito. Como tal, ela se distingue da Constituição no sentido do direito positivo: esta sim é determinada. A verdade é que, no edifício jurídico estatal, a Constituição (positiva) é o ponto de ancoragem de todas as regras estabelecidas no sistema, patamar por patamar, e no necessário respeito do dispositivo constitucional. Assim, Kelsen parece levar a tese constitucionalista ao seu mais alto nível de clareza lógica e filosófica; dá-lhe uma formulação lapidar: as pessoas devem comportar-se do modo que a Constituição prescreve".
A suposição da Grundnorm é a demonstração, por parte de Kelsen, de que a ciência do direito não pode eliminar o problema do fundamento do direito. Da mesma forma, demonstra a sofisticação de sua teoria, pois tal atitude implica a suposição de uma Urnorm (norma originária), isto é, de uma exigência lógica transcendental que indique de maneira evidente que determinada Constituição é por si só insuficiente para fundar a ordem jurídica. A ideia da norma fundamental, apesar de contestável, é bem construída pois assume que a norma fundamental não está "contida" numa ordem jurídica positiva, pois ela não é uma norma positiva (ou posta), mas uma norma pressuposta pelo pensamento jurídico.
Eis o argumento de Kelsen: "a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuna competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm). Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a essa norma jurídica".
Os tópicos principais da Teoria Pura se ilustram nas seguintes questões: a) a separação entre o direito e a moral; b) o positivismo e o jusnaturalismo como expressão de uma dicotomia enfraquecida, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Introdução ao Estudo do Direito – técnica, decisão dominação, 2008, p. 139); c) as funções do Direito e a teoria funcional; d) o positivismo jurídico e seu caráter autoritário e coativo; e) a questão da validade e da eficácia das normas em face dos pressupostos da validade, a norma jurídica isolada e o pertencimento ao sistema jurídico; f) a questão da validade e da justiça de normas e seu perfil objetivo; g) o formalismo como fator equivalente ao positivismo; h) os fundamentos teóricos do “Ser” e do “Dever Ser” e a questão do Direito Natural; i) a Supremacia da Constituição no sistema jurídico; j) a teoria da Norma Fundamental: sua aporia e filiação à doutrina de Kant; k) a faticidade e a autonomia do Direito Internacional; l) o domínio da interpretação das leis – a teoria da moldura e o poder do intérprete; m) a hierarquia das normas, do aluno de Kelsen, Adolf J. Merkl, e a dinamização do sistema jurídico; n) a interpretação das normas como ato de vontade.
No plano dogmático, pontifica o princípio da separação dos poderes e a diferença da natureza entre função legislativa e jurisdicional, adotado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme dicção da Emenda Constitucional n. 45/2004, que reconhece a competência do órgão para suspender eficácia de lei julgada inconstitucional. Também, um dos modelos de controle de constitucionalidade de leis, o concentrado, de extração kelseniana. Em que pese, a acentuada utilização da teoria de Kelsen nos segmentos do direito público, é no Direito Internacional que a doutrina de Kelsen é amplamente difundida, a partir dos sistemas monista e dualista que refletem seus corolários na dinâmica de internalização de fontes internacionais. Mas, nesse campo, o Brasil ainda conserva o predomínio do vetor dualista, no texto constitucional, não obstante as decisões que contemplam a temática dos Direitos Humanos.
Hans Kelsen, ao elaborar uma teoria do direito estanque da política e dos sociologismos - não a confunde com a realidade política e a dinâmica das questões jurídicas no Brasil de hoje.
Em sua obsessão de elaboração de uma ciência jurídica apolítica, Kelsen não toma partido de qualquer ideologia social ou política.
Kelsen levou o neo-jusracionalismo às suas últimas consequências. Mas era, sem dúvida, uma leitura neo-kantiana, que se distanciava de escolas como a de Radbruch(1878 – 1849), chamada de Baden, eminentemente valorativa e axiológica, que assim explicava o seu pensamento: “O primeiro ato do espírito consiste em reivindicar o próprio Eu, libertando-o de dados da experiência, contrapondo aquele a esta, e separando, assim, aquilo que é valor daquilo que é realidade. Assim ele aprende, já a pôr de parte a sua consciência valorativa.
Desse modo, aquilo que ele primeiro consegue extrair do caos da experiência, numa primeira atitude não valorativa, já a utilizá-la, conforme os casos. Deste modo, aquilo que ele primeiro consegue extrair dos casos da experiência, numa primeira atitude não valorativa, ou a-valorativa, é o reino da natureza, visto esta não ser mais do que a experiência, tal como ela se nos apresenta, depurada de todos os valores que o falseiam. Por outro lado, aquilo que ele, em segundo lugar, daí a extrai, numa segunda atitude – esta valorativa e oposta à primeira – é o mundo dos valores, ao aprender também conscientemente a escala das respectivas valorações, das normas e das relações entre elas. A primeira atitude, cega para os valores, constitui, quando metodicamente exercida, a essência do pensamento das ciências naturais; a segunda, a valorativa, constitui, quando, sistematicamente desenvolvida, a essência da chamada filosofia dos valores(Wertphilosofhie, nos seus três ramos: a lógica, a moral e a estética)”, como se ensinou Filosofia do Direito, tradução de Cabral de Moncada, Coimbra, 1947, 2ª edição, 1947, volume I, pág. 44).
O Movimento que teve início com John Austin(1790- - 1859), com a sua concepção de analytical jurisprudence, combinando razão e fato, para fazer uma separação nítida entre direito e moral, dentro da corrente utilitária de Benthan. Doutrina que “a ciência da jurisprudência se ocupa com leis positivas, ou simplesmente, com leis em sentido estrito, sem considerar a sua bondade ou maldade”(Lectures on Jurisprudence or the Philosophy of positive law, Londres, 1879, volume I, pág. 176).
Karl Bergbohm introduziu na Alemanha o pensamento austiniano, mas lhe deu nova substância, com a antinomia Rechtsinhalf versus Rechtsform – a luta do conteúdo do direito com a forma. A forma perdura enquanto o conteúdo pode variar. O fundamental era positividade do direito que se traduzia na forma, como única realidade objetiva e permanente, a coberto das controvérsias doutrinarias. O conteúdo do direito, ao contrário, oferecia “tais tipos que, dificilmente, poder-se-ia enumerá-los e, ainda menos, agrupá-los em exaustivas categorias generalizadas, tantos e tamanhos os interesses e aspirações em jogo, que variavam no tempo e no espaço. Seria impossível estabelecer princípios gerais, universalmente válidos, para informar a normatividade jurídica.
Por fim, Rudolf Stammler, em 1902, defendeu um direito natural de conteúdo variável (Naturrecht mit wechselnden Inhalte), isto é aquelas proposições jurídicas que, em relações juridicamente condicionadas contêm o direito teoreticamente justo. Neste sentido, considera que a lei tem de ser um meio justo para chegar a um fim justo, salientando até que se trata de uma coação para que se atinja a justiça.
No pensamento de Stammler havia a “vinculação bilateral atributiva”, que foi seguida por Miguel Reale, como vinculação bilateral-atributiva, que serve a sua teoria tridimensional do direito(fato, norma e valor).
Stammler(sub-escola de Marburg) defendia “a possibilidade de um direito objetivamente justo em seu conteúdo”, o que o levou a admitir um “direito natural de conteúdo variável; isto é, regras jurídicas tais que, debaixo de circunstâncias condicionadas empiricamente, contivessem o direito teoricamente justo(Wirtschalf und Recht nach der materialischen Gesthichsaufassung, Leipzig, 1896, s. 185). Esse “direito teoricamente justo” não era outro que o “direito natural de conteúdo variável, isto é, regras jurídicas tais que, debaixo de circunstâncias condicionadas empiricamente, contivessem aquele direito teoricamente justo” – concepção essa que renasceria, com Renard, ao estabelecer a noção de “direito natural de conteúdo progressivo”.
Para Stammler, o conceito definitivo de direito era “um querer vinculatório, autárquico, inviolável”(Lehrbuch der Rechtsphilosophie, III, Auflage, 1928, s. 93) que conservava algo de Kant, mas colimava o “ideal social”, consistente na organização de uma comunidade de homens de vontade livre, vivendo sob a inspiração da justiça, a retidão objetiva da vinculação de fins”.