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Leitura de peças na instrução do tribunal do júri

Resumo:


  • A leitura de peças no Tribunal do Júri permite o acesso integral da prova ao Conselho de Sentença.

  • O legislador limitou as hipóteses de leitura de peças, restringindo a casos de provas cautelares, antecipadas e irrepetíveis.

  • A evolução dos métodos de apreensão da prova testemunhal trouxe maior fidedignidade, mas não substitui a oitiva da testemunha em plenário.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É restrito o número de peças que podem ser lidas durante a instrução no tribunal do júri, mas é preciso garantir que o jurado tenha acesso prévio a um mínimo de provas nesse momento processual.

Introdução

A sistemática processual penal reservada ao Tribunal do Júri sempre demonstrou inquietação ante a necessidade de a prova ser produzida não somente ao juiz togado, mas – e principalmente – fosse revelada, de maneira integral, ao Conselho de Sentença.

Entretanto, há evidências que seguramente não poderão ser renovadas no ambiente da sessão plenária. A fim de suplantar esse hiato, o legislador incluiu, no rito da segunda fase do procedimento escalonado, a leitura de peças.


Histórico

O Código de Processo Penal de 1941 previu a possibilidade de as partes (ou jurado) requerem ao Juiz-Presidente da Sessão Plenária que lesse as peças que entendessem necessárias e úteis para o julgamento.

Era a seguinte redação:

“Art. 466. Feito e assinado o interrogatório, o presidente, sem manifestar sua opinião sobre o mérito da acusação, ou da defesa, fará o relatório do processo e exporá o fato, as provas e as conclusões das partes.

§ 1º Depois do relatório, o escrivão lerá, mediante ordem do presidente, as peças do processo, cuja leitura for requerida, pelas partes ou por qualquer jurado.

§ 2º omissis

O sentido da norma, absolutamente plausível e coerente com o procedimento escolado, a pouco e pouco foi distorcido pelas partes, que solicitava ao magistrado a chamada leitura de “capa a capa”, o que despendia tempo precioso, cansava os jurados e tornava a sessão “fastidiosa”[1].

Dentre as mudanças trazidas na reforma de 2008, o legislador recrudesceu a norma relativa à leitura de peças, limitando as hipóteses de incidência, de modo a não mais permitir o abuso do direito de informar.

Consistiu então a nova redação nos termos a seguir apresentados:

Art. 473. Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária quando juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação.

§ 1º omissis

§ 2º omissis

§ 3º. As partes e os jurados poderão requerer acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e esclarecimentos dos peritos, bem como a leitura de peças que se refiram, exclusivamente, às provas colhidas por carta precatória e às cautelares, antecipadas ou não repetíveis.

Curioso notar que o Senado Federal propôs solução diversa à leitura de peças, junto ao Projeto de Lei nº 4.203/2001[2], a saber: seria permitida a leitura de qualquer peça processual, desde que tal procedimento não ultrapassasse o tempo de duas horas[3].

Em retorno à Câmara dos Deputados, todavia, o ilustre relator, então Deputado Federal Flávio Dino, em seu parecer[4], junto à Comissão de Constituição e Justiça e de cidadania, houve por bem retomar a redação inicial do Projeto de Lei, ante a seguinte fundamentação:

Quanto à leitura de peças processuais, a modificação xix se afigura equivocada, pois traria morosidade demasiada ao julgamento do Tribunal do Júri. Ora, a cada uma das partes já é destinado um longo tempo para sustentação oral. Havendo qualquer necessidade de se ler alguma peça processual, isso pode ser feito durante o tempo destinado à discussão, não havendo necessidade de se destinar mais quatro horas para a leitura de peças, o que representaria lentidão desnecessária.

De qualquer sorte, se, por um lado, a restrição à leitura de peças veio em boa hora, impedindo sessões plenárias – ainda mais – enfadonhas e burocráticas, forçoso admitir que, por outro, ela findou por limitar a construção de um acervo probatório lógico, que seja suficiente para que o acusado possa apresentar sua autodefesa de forma plena, bem como o Corpo de Jurados consiga ter acesso a todos os elementos de prova existentes nos autos antes do início dos debates.


Hipóteses legais

A fim de restringir ao máximo as possibilidades de peças autorizadas para leitura, o legislador apontou três espécies de provas: as cautelares, as antecipadas e as irrepetíveis[5].

(a) Provas cautelares

Deve-se entender por provas cautelares os elementos probatórios provenientes de procedimentos cautelares tramitados durante a fase inquisitorial ou mesmo judicial.

São exemplos de provas cautelares: (i) materiais decorrentes de buscas e apreensões; (ii) autos de reconhecimento realizados por ocasião de prisões temporárias; (iii) mapeamento de ligações interligadas a partir da análise de resultado de quebras de sigilo de dados telefônicos; (iv) diálogos interceptados em escutas autorizadas judicialmente.

(b) Provas antecipadas

Segundo NUCCI, “provas antecipadas são as que pode perder, caso não sejam produzidas antes mesmo da fase instrutória adequada”[6].

A prova antecipada (cujo termo tecnicamente mais adequado parece ser “produção antecipada de provas”) já existia no Código de Processo Penal, em especial no artigo 366, quando cuidava da suspensão do processo e do prazo prescricional.

Diz o dispositivo:

Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.

Naturalmente, as provas somente devem ser produzidas de modo antecipado em caráter de máxima exceção.

O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já editou súmula sobre o assunto, restringindo a aplicação da referida norma:

Súmula 455: A decisão que determina a produção antecipada deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo.

Aury Lopes Jr[7]. apresenta requisitos básicos para implementação da prova antecipada, a saber:

(a) relevância e imprescindibilidade do seu conteúdo para a sentença;

(b) impossibilidade de sua repetição na fase processual, amparado por indícios razoáveis de provável perecimento de provas.

Assim, são exemplos de provas antecipadas: (i) oitiva de testemunha bastante idosa e acamada; (ii) inquirição de pessoa que esteja prestes a viajar para localidade remota no exterior.

(c) Provas irrepetíveis

Avaliando o contexto legal e considerando que o legislador não utilizaria palavras diferentes para indicar uma mesma circunstância, o conceito de prova não-repetível deve se sobrepor à sua intersecção com as antecipadas e as cautelares (afinal, elas também possuem um conteúdo que não mais se repetirá).

Nesse norte, provas irrepetíveis devem ser consideradas todos aqueles elementos de convicção que foram produzidos no curso do procedimento criminal e que restaram inviáveis de serem reproduzidos ao Conselho de Sentença por ocasião da Sessão Plenária.

No campo prático, o melhor exemplo de prova irrepetível diz respeito à testemunha ouvida em juízo que falece ou não é mais localizada para o dia do julgamento. Essa circunstância merece uma atenção especial, pelo que se passa a apresentar.


Da evolução dos métodos de apreensão da prova testemunhal

A inserção legal da evolução dos métodos tecnológicos de apreensão das provas testemunhais possibilitou o surgimento de uma gradação relacionada à colheita desses elementos.

Quando o juiz reduzia a termo as declarações de uma testemunha, o documento então gerado dizia respeito tão-somente a uma síntese daquilo que fora noticiado pela pessoa inquirida.

Em seguida a isso, a gravação (áudio) do mesmo depoimento certamente trouxe uma maior fidedignidade à produção da prova, na medida em que o conteúdo apreendido tornou-se completo e, além disso, poder-se-ia identificar vacilações, nervosismos, silêncios eloquentes, enfim, uma infinidade de sinais verbais que auxiliavam na construção dos sentimentos que reverberavam do personagem daquela voz.

Já em um patamar mais avançado, a filmagem (áudio e vídeo) do depoimento testemunhal trouxe ainda informações do que os meios de prova acima descritos, eis que, além do conteúdo e da voz, o destinatário (em especial, o jurado) tem acesso integral a gestos e sinalizações não-verbais, que robustecem sobremaneira a qualidade da prova.

De toda sorte, nenhuma dessas formas de apreensão da prova testemunhal alcançará a oitiva da testemunha presente na sessão plenária, até mesmo porque tal circunstância viabiliza às partes, ao juiz ou mesmo aos jurados a elaboração de questionamentos a serem por ela esclarecidos.

Ainda assim é preciso admitir ser incomparável uma oitiva reduzida a termo a uma filmagem do mesmo ato.

Nessas condições, a exposição de tais testemunhos também revela uma diferença considerável entre os métodos, construindo uma contradição perversa em que, apesar de haver uma qualificação no modo de produção da prova, sua exibição aos seus destinatários persiste restrita aos olhos da lei.


Leitura de peças como garantia da soberania dos veredictos e plenitude de defesa

Situação mais que comum no ambiente forense é a ausência de testemunhas quando da realização de atos processuais e – de igual maneira – em uma sessão plenária do tribunal do júri.

A lei prevê a possibilidade de adiamento do julgamento em casos específicos em que a testemunha indicada com cláusula de imprescindibilidade é intimada, mas não comparece[8].

De qualquer sorte, muitas vezes o bom senso prepondera e as partes abrem mão de insistir na oitiva ou mesmo pedir uma condução coercitiva, seja para não eternizar o julgamento, seja ainda por se cuidar de réu preso e pautas difíceis de organizar.

Quando isso se dá, melhor atitude a se tomar é autorizar seja o depoimento (porventura) já colhido em juízo daquela testemunha apresentado aos jurados no momento especificado da leitura de peças, como se prova irrepetível fosse.

Logicamente as partes poderão abordar aquele conteúdo durante suas falas, no momento previsto para os debates. Isso não se discute.

Entretanto, a exploração daquela prova já colhida, que terá peso significativo nas argumentações das partes, deve ser antecipada para que o jurado tenha conhecimento prévio – ainda durante a instrução em plenário – das circunstâncias trazidas pela testemunha, o que auxiliará na formação espontânea do íntimo convencimento, prestigiando assim o princípio constitucional da soberania dos veredictos.

Aliás, ainda sob a ótica dos princípios constitucionais, se o legislador preferiu transferir o interrogatório para depois de toda a instrução, com maior razão as provas devem ser desveladas ao Conselho de Sentença em momento anterior, a fim de garantir ao acusado a plenitude de sua defesa, ou seja, poderá assim expor sua defesa a partir de todo aparato probatório existente até então.


Outros aspectos relevantes da leitura de peças

Alguns pontos de vista relacionados à leitura de peças ainda merecem detida abordagem.

Em primeiro lugar, o legislador foi infeliz quando adotou o termo “leitura de peças” na mesma reforma em que já previa o uso de gravação da colheita de provas[9].

Nesse diapasão, parece mais acertado entender viável que, além de peças que possam ser lidas, outras provas também possam ser reproduzidas para o conhecimento do Corpo de Jurados.

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Outro ponto controverso é sobre quais depoimentos poderiam ser passados nesse átimo processual. NUCCI[10] sustenta que se poderia caracterizar como prova irrepetível depoimentos de testemunhas que ultrapassassem o quantitativo previsto na fase de especificação de provas (art. 422 do Código de Processo Penal).

Esse entendimento mostra-se equivocado, na medida em que a prova teria condições de ser repetida ao jurado, desde que a parte arrolasse a testemunha para ser inquirida em plenário.

Sobre o assunto, ensina Badaró[11]:

Porém, se uma testemunha for saudável, residente na comarca e sem nenhum impedimento para comparecer à sessão de julgamento, ou as partes a arrolam para prestar depoimento perante os jurados, ou ficarão impossibilitadas de ler seu depoimento.

Nesse contexto, considerar prova irrepetível tal depoimento prestado em juízo e, portanto, autorizar sua leitura (ou reprodução) na instrução em plenário configuraria uma burla na limitação legal de testemunhas a serem ouvidas durante a sessão, violação flagrante do artigo retromencionado[12].

Merece ênfase ainda a apreciação valorativa dos depoimentos de testemunhas ouvidas na fase inquisitorial e nunca mais localizadas.

Quanto a isso, a discussão não gira em torno de ser ou não irrepetível, mas sim – antes disso – se tal documento configura ou não uma prova efetivamente.

Tendo em vista toda a doutrina especializada acerca do valor do inquérito policial para a ação penal, não há como valorar um depoimento colhido naquela fase administrativa como uma prova efetiva e suficiente para uma condenação, podendo ele até ser considerado irrepetível, mas jamais uma prova em si.


Considerações finais

Concebida com o intuito de permitir aos julgadores leigos acesso a toda prova processual, o instituto da leitura de peças foi desviado do seu nobre objetivo, passando a servir como meio de alongar as sessões do tribunal do júri, tornando-as ainda mais enfadonhas.

A legislação de 2008 propôs um termo a esse abuso de direito, restringindo significativamente as hipóteses de peças que porventura possam ser lidas, notadamente as provas antecipadas, cautelares e irrepetíveis.

De toda sorte, mister registrar que houve um avanço na maneira de se apreender os depoimentos testemunhais prestados em juízo; e a reprodução de tais peças em plenário não é hábil a substituir a ausência de uma testemunha em plenário, mas acaba por compensar – em alguma medida – tal lacuna.

Impedir a exibição desses depoimentos nessa fase processual acarretaria em adiar esse conteúdo para a fase de debates, dificultando o entendimento da prova produzida para o Conselho de Sentença e, mais do que isso, prejudicando o exercício da plenitude de defesa.

Por fim, o instante da leitura de peças também não pode servir para complementação de testemunhas não arroladas na fase da especificação de provas (artigo 422 do Código de Processo Penal), sob pena da retomada do abuso do direito, o qual o legislador buscou inibir com as mudanças legislativas de 2008.


Referências bibliográficas

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy, et alii. As Reformas no Processo Penal, São Paulo: RT, 2008.

ESPINOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Anotado – vol. IV, Campinas: Bookseller, 2000.

SENADO FEDERAL, projeto de Lei nº 4203/2001, disponível em https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=543383&filename=PSS+1+CCJC+%3D>+PL+4203/2001, (acessado em maio/2018).

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2012.

NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.


Notas

[1] Termo cunhado por Espíndola Filho (cf. fl. 506)

[2] O Projeto de Lei nº 4.203/2001 foi publicado sob a forma da Lei nº 11.689/2008, responsável por alternar e modernizar o procedimento do tribunal do júri no Código de Processo Penal.

[3] Art. 473. Omissis.

§3º. As partes e os jurados poderão requerer acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e esclarecimento dos peritos, bem como a leitura de peças processuais.

§4º. Será de, no máximo, 2 (duas) horas o tempo destinado a cada parte para a leitura de peças

[4] https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=543383&filename=PSS+1+CCJC+%3D>+PL+4203/2001

[5] Posteriormente, houve a previsão legal da produção de tais hipóteses de prova também para o procedimento comum ordinário (decorrente da Lei nº 11.690/2008), em especial na redação do artigo 155 do Código de Processo Penal, que hoje assim dispõe:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas das provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 178.

[7] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2012, p. 608.

[8] Art. 461. O julgamento não será adiado se a testemunha deixar de comparecer, salvo se uma das partes tiver requerido a sua intimação por mandado, na oportunidade de que trata o art. 422 deste Código, declarando não prescindir do depoimento e indicando a sua localização.

§ 1o Se, intimada, a testemunha não comparecer, o juiz presidente suspenderá os trabalhos e mandará conduzi-la ou adiará o julgamento para o primeiro dia desimpedido, ordenando a sua condução.

§ 2o O julgamento será realizado mesmo na hipótese de a testemunha não ser encontrada no local indicado, se assim for certificado por oficial de justiça.

[9] Art. 475. O registro dos depoimentos e do interrogatório será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, eletrônica, estenotipia ou técnica similar, destinada a obter maior fidelidade e celeridade na colheita da prova.

[10] Cf. fl. 178-179.

[11] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy, et alii. As Reformas no Processo Penal, São Paulo: RT, 2008, p. 179.

[12] Nunca é demais repisar que tais depoimentos poderão ser usados e abusados durante os debates orais, se tão necessários assim o forem para a construção ou desconstrução da culpa lato sensu.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Daniel Bernoulli Lucena. Leitura de peças na instrução do tribunal do júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5853, 11 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66619. Acesso em: 22 dez. 2024.

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