INTRODUÇÃO
A legalização de alguns tipos de drogas é pauta de frequentes debates no cenário brasileiro e mundial, tendo, dentro do contexto mundial, apresentado grandes avanços em governos com características mais liberais.
Diferente do que se encontra no discurso do senso comum, existem diferentes fatores favorecidos ou prejudicados a partir da taxação de ilicitude da substância psicotrópica, entre os quais está a saúde pública, diretamente afetada com a proibição da circulação e comercialização de algumas drogas.
Neste trabalho se pretende abordar a droga dentro do contexto da redução de danos como política incentivadora da saúde pública, observando pontos de vista de autores renomados ao assimilarem, de forma sólida, sobre os motivos que levam a crer que a descriminalização de alguns tipos de droga pode ser adotada como medida asseguradora de redução de mortalidade.
Pretende-se conferir também o contexto em que se inseriu a droga dentro da sociedade, abordando sobre o teor cultural existente nela, pois, como bem se sabe, desde os tempos mais remotos já existiam substâncias psicotrópicas sendo consumidas, seja com o intuito recreativo, religioso, medicinal, etc.
Outra importante variável que se aborda é a criminalização indistinta das drogas, levando a crer que há uma severa contradição do legislador brasileiro ao proibir determinadas substâncias e outras não, enquanto ambas possuem semelhante grau lesivo.
Neste mesmo sentido, será abordada esta mesma criminalização sob o olhar do legislador penal, que, juntamente do poder judiciário, mais uma vez sem critério razoável, aponta o usuário em grau similar ao traficante, enquadrando ambos na Lei 13.343/06.
A DROGA COMO FENÔMENO CULTURAL
O que leva o indivíduo ao consumo de drogas é pauta de inúmeras justificativas, no entanto, por mais que se delimitem causas, estas serão inesgotáveis no tempo em que se apontarem, e, principalmente, nos tempos que se prolongam, em razão da modificação dos tempos, costumes, enfermidades, problemas, etc. O consumo de drogas trata-se de um fenômeno cultural, não é possível determinar uma coletividade em algum determinado período na história que não tenha sido pautada por substâncias entorpecentes, seja na forma de ritual religioso, pelo uso recreativo, pela utilização medicinal ou até na utilização contra desafetos e inimigos. (FONSECA, 2005).
Ao tratar sobre o assunto Nowlis (1975 apud FONSECA 2005, p.18), explana sobre quatro modelos em que se pautam os discursos sobre drogas, o jurídico-moral, médico, psicossocial e sociocultural, sob a observação da própria droga, do indivíduo e do ambiente:
O Modelo jurídico-moral, compreende o usuário de droga como criminoso e procura resolver o “problema” através da repressão ao tráfico e controle do uso. Têm sido dispendidos volumosos recursos em políticas de repressão da oferta, com resultados limitados e mesmo duvidosos. Trata-se de um modelo defendido por uma parcela conservadora da sociedade. O Modelo médico compreende o usuário como doente. O indivíduo, vulnerável, adoece quando é atacado por um agente nocivo (a droga), podendo “transmiti-lo” a outras pessoas. O doente deve ser isolado e tratado. Em ambos os modelos apresentados o foco da ação é a substância e não o sujeito ou suas circunstâncias sócio-culturais. No Modelo psicossocial a escolha pelo uso ou não de drogas é encarado como um comportamento humano complexo, ligado a fatores sociais e culturais. O foco está na dialética indivíduo-meio, buscando compreender as motivações singulares do uso de drogas. Para o Modelo sócio-cultural, o meio é visto como o móvel primeiro do consumo da dependência, com especificidades definidas segundo o recorte social e cultural. Esses modelos não devem ser adotados isoladamente, pois cada um deles não é suficiente, por si só, para compreender e enfrentar os fenômenos envolvidos no consumo de substâncias. (grifo nosso)
Nítida expressão do contexto cultural em que se enquadra, é possível citar como exemplo período de 2400 anos atrás, sobre culto a Dionísio, o Deus do vinho, em que celebrações que passaram a ser conhecidas como “bacanais” eram realizadas em seu respeito (RIBEIRO, 2012); os povos Sumérios, por volta de 3200 a.C. tinham na cerveja “alimento importante, e seu consumo estava integrado à mitologia, religião e economia” (LABATE; GOULART; FIORE; MACRAE; CARNEIRO, 2008, p. 199).
Em relação a outros povos, os indígenas, a consumação de substâncias psicotrópicas está ligada iminentemente aos rituais que se perduram pelas gerações, a exemplo da substância denominada caxiri, que é uma espécie de licor extraído da mandioca fermentada, em que povos Karipuna, Galibi Marworno, Palikur, Galibi de Oiapoque e outros grupos indígenas da região sudeste das Guianas consomem, seja em festas de natureza religiosa ou profana. (LABATE; GOULART; FIORE; MACRAE; CARNEIRO, 2008).
Fica claro que as drogas, lícitas ou ilícitas, possuem, acima de qualquer coisa, caráter cultural, tratadas como substâncias que envolvem rituais religiosos, finalidade de servir como produto medicinal, ou mesmo com aspecto meramente recreativo e desinteressado de finalidade útil senão a dispersão de uma vida árdua de trabalho, como eram nos períodos das Cruzadas. (LABATE; GOULART; FIORE; MACRAE; CARNEIRO, 2008).
A REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DE SAÚDE PÚBLICA
Ao falar sobre a implementação da política de redução de danos, temos como pioneiro desta o ex-presidente do Colégio Real de Médicos do Reino Unido Sir Humphrey Rolleston, que a pedido do governo inglês, em 1926, produziu um documento que observava as necessidades do usuário de drogas, como bem descrito por Maurides de Melo Ribeiro (2012, p. 39):
Esse relatório foi produzido por solicitação do governo ingês e a política dele decorrente era basicamente pautada nas necessidades dos usuários de drogas e na “normalização” de sua vida cotidiana. Essa normalização implicava em diversas iniciativas como promover a administração da droga e seu monitoramento, por um médico, a esses indivíduos.
Tem como objetivo minimizar os danos causados pelo uso de drogas sem necessariamente retirá-la por completo do usuário, encara como aceitável, até certo ponto, seu consumo, reduzindo prejuízos e potencializando suas benesses, como é o caso do uso medicinal em tratamentos diversos e conscientizando acerca das responsabilidades inerentes à escolha em consumir o produto psicotrópico. (FONSECA, 2005).
Enquanto o atual modelo de combate às drogas se posiciona numa abordagem proibicionista-punitiva, a redução de danos se aprofunda na complexidade do que as drogas representam, com a sólida compreensão de que se trata de substância inerente ao ser humano ao longo da evolução histórica.
A ótica da nova abordagem é a de que se o cidadão usa drogas, ao menos que o faça com os menores danos possíveis à sua saúde, física e mental, à sua vida de relação, família, trabalho, sociedade, etc. e, finalmente, à própria comunidade em que vive. (RIBEIRO, 2012, p. 37)
Não se trata de uma ideia de anarquia, onde não há limites impostos aos pretendentes e usuários de drogas. na verdade, o caráter em que se apresenta a política de redução de danos vai no caminho contrário, aplicando exatamente uma certa regulação ao uso de substâncias entorpecentes, sem tolher por completo o usuário do contato com a substância, mas dosando seu acesso, permitindo o acesso através de materiais menos agressivos, possibilitando que este encontre o produto em locais habilitados para venda, causando, consequentemente, redução na procura pelo material fornecido pelo tráfico.
Um claro exemplo do que se concretiza através da adoção da política de redução de danos é o consumo de substâncias com características mais puras, longe da adição de produtos diversos indistintamente, que geralmente são vendidos pelo tráfico sem qualquer tipo de controle, gerando prejuízos ainda maiores aos usuários, fator que tem obrigado os que consomem algum tipo de entorpecente a aderirem ao programa de redução de danos, como bem descreve Maurides de Melo Ribeiro (2012, p. 37):
A polícia tem constatado uma diminuição dos índices de criminalidade conexos ao uso e comércio clandestinos de substâncias psicoativas, em função da adesão dos cidadãos que usam drogas aos programas de redução de danos.
Sob um olhar menos pretencioso e mais realista, Elize Massard da Fonseca (2005, p. 21) demonstra com clareza a dicotomia existente entre redução de danos e total abstinência:
A redução de danos tornou-se uma alternativa para as abordagens que visam à abstinência. Esta é uma estratégia que parte do princípio de que as drogas sempre estarão presentes na sociedade e adota uma postura pragmática: é melhor reduzir os danos, ao invés de tentar eliminá-los totalmente, o que é possível do ponto de vista de cada indivíduo singular, mas inviável ao considerarmos a dimensão coletiva.
Conforme perfeitamente descrito, nem nas mais otimistas análises se pode acreditar numa sociedade alheia à existência de substâncias psicotrópicas, no entanto, de forma moderada, definida e regulamentada, é possível promover a redução de danos pelo controle de produção, de ingestão e disponibilização dessa droga.
Pioneira de uma política mais liberal, em 1976 a Holanda sancionava lei promovendo tratamento diferenciado às drogas à proporção de sua potencialidade e risco, abordando diferente tratamento às drogas de menor risco, como maconha e haxixe, das drogas mais pesadas, tais como cocaína, heroína, anfetamina e LSD. (RIBEIRO, 2012)
Mesmo há tantos anos, o governo Holandês demonstrava que essa política de redução de danos não surge como uma liberação indistinta, mas como uma política regularizadora.
Ao tratar sobre o assunto, Elize Massard da Fonseca (2005, p. 20) assim define o conceito contemporâneo do tema:
A redução de danos, na sua acepção contemporânea (há versões bastante anteriores de utilização de conceitos e práticas similares, o que veremos mais adiante) representa uma estratégia de saúde pública originária da Europa e Austrália, que se inicia por volta da década de 80. Wodak (1998) a definiu como uma tentativa de minimizar as consequências adversas do consumo de drogas, do ponto de vista da saúde e dos seus aspectos sociais e econômicos, sem necessariamente reduzir esse consumo.
Sobre o tema, a Organização Mundial de Saúde (2003, p. 1 apud FONSECA, 2005, p. 20) assim compreende redução de danos em saúde pública como:
“Redução de danos em saúde pública é um conceito usado para descrever ações que tem como objetivo reduzir ou prevenir conseqüências negativas à saúde associadas a determinados comportamentos. Com relação ao uso de drogas injetáveis, a redução de danos tem por objetivo reduzir a transmissão do HIV através do compartilhamento de seringas não-estéreis e equipamentos para preparação da droga..”
Dentro do contexto mundial, enquanto se vem abordando o tema da descriminalização de algumas substâncias hoje apontadas como ilícitas, como forma de regulamentar e fomentar a saúde pública, no Brasil e em muitos lugares no mundo ainda se aborda a política repressiva indiscriminada, observando apenas a finalidade última de “combate ao tráfico”.
É difícil analisar as consequências da legalização de alguns tipos de droga e a adoção da redução de danos como medida a se adotar no Brasil, visto que, embora tenham sido medidas que obtiveram êxito em outros países, não pode simplesmente ser transplantado ao regramento jurídico brasileiro na expectativa de ter a mesma resposta positiva.
A CRIMINALIZAÇÃO INDISTINTA DAS DROGAS
Ao passo que se tem a possibilidade da implementação de uma política de redução de danos, é possível observar que a mera criminalização indistinta das drogas traz consigo certa instabilidade na população.
É, no mínimo, contraditório a taxação de produtos como o álcool e o tabaco como “drogas lícitas”, enquanto outras substância de igual potencial ofensivo são liberadas para venda indiscriminada, havendo apenas a proibição da venda para menores de 18 anos, no entanto, uma ineficaz fiscalização dessa regulamentação deixou quase em desuso limitação da venda das drogas permitidas.
Num outro desdobramento desta contraditória regulamentação, pode-se citar o crescimento da indústria farmacêutica ao passo que se presenciava a criminalização e o controle repressivo das drogas:
Há cerca de um século praticamente nenhuma droga, de uso medicamentoso ou não, era objeto de controle, quanto mais sujeita à criminalização. No entanto, ao longo do século XX, praticamente todos os países do mundo viriam a implementar políticas mais ou menos repressivas em torno do uso de certas drogas. Exceções à parte, tais políticas caracterizam-se pela criminalização da produção, do tráfico e do uso de drogas com propósitos não terapêuticos e pela crescente ampliação de substâncias consideradas drogas de uso ilícito. Por outro lado, foram os saberes médico-farmacológicos os nominalmente acionados, na grande maioria dos casos, para fundamentarem cientificamente tais políticas de repressão. Não é à toa que a criminalização de certo conjunto (de usos) de substâncias se deu em conjunto com a invasão farmacêutica e com o crescimento da importância social das atividades biomédicas. Também não é à toa que a restrição do sentido do vocábulo drogas tenha sido contemporânea desses processos. Daí que, em todos esses casos, as políticas de repressão a partir de então tornadas hegemônicas em torno das drogas consideradas ilícitas tiveram, nominalmente, um duplo fundamento: médico e jurídico. É por conta desse duplo fundamento que, ainda e, sobretudo, hoje, quando as medidas de repressão pura e simples começam a ser mais intensamente criticadas, seja pela ineficácia em fazer reduzir a demanda por drogas, seja pelos efeitos perversos oriundos de sua implementação – como o crescimento inaudito do crime organizado em torno da produção e do tráfico de drogas (máfias, cartéis, etc.) -, as alternativas oficiais atualmente em discussão tendem a tratar o problema nem tanto como sendo, apenas, da alçada jurídica, mas, também, da alçada da saúde pública: cadeia para produtores e traficantes, clínicas de tratamento para usuários. (LABATE; GOULART; FIORE; MACRAE; CARNEIRO, 2008, p. 54-55)
Sob uma ótica mais técnica do assunto, a Lei 11.343 de 2006 (BRASIL, 2006), que instituiu o sistema nacional de políticas públicas sobre drogas, em seu artigo 33 determina o seguinte:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
§ 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: (Vide ADI nº 4.274)
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa.
§ 3o Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.
§ 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Observando o caput do artigo em questão, não há maiores dificuldades para perceber que a criminalização da droga comporta desde o grande traficante ao pequeno consumidor, que traz consigo, tem em depósito ou guarda a substância ilícita.
Não se pode dizer razoável uma lei que aplica ao usuário igual penalidade que aplica ao traficante, inúmeras vezes incorrendo em prática indiscriminada, da apreensão de indivíduos que portam quantidades ínfimas de droga.
Outra importante questão a ser observada é que, além da criminalização indistinta das substâncias psicotrópicas, salvo os medicamentos, bebidas alcóolicas e tabaco, o judiciário brasileiro se utiliza de certa arbitrariedade ao tratar de casos enquadrados em “tráfico de drogas”, pelo que se pode observar na decisão monocrática do STJ abaixo transcrita:
RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 57.970 - MG (2015/0069115-5) RELATOR : MINISTRO ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP) RECORRENTE : RAPHAEL CARDOSO DE BARROS (PRESO) ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS DECISÃO Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus, com pedido de liminar, interposto por RAPHAEL CARDOSO DE BARROS contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que denegou o HC n. 1.0000.14.093 349-0/000, nos termos da seguinte ementa: HABEAS CORPUS - TRAFICO DE ENTORPECENTES - PRISÃO EM FLAGRANTE CONVERTIDA EM PRISÃO PREVENTIVA - DECISÃO FUNDAMENTADA - PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA DELITIVA - PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS DO ART. 312 DO CPP - GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA - APLICAÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO - INADEQUAÇÃO - CONCESSÃO DO WRIT POR PRESUNÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E PRISÃO PROCESSUAL - COMPATIBILIDADE - CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS - INSUFICIÊNCIA - AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA. 1. A presença nos autos de prova da materialidade e indícios suficientes da autoria dos delitos imputados ao Paciente aponta para a necessidade da manutenção da custódia cautelar, especialmente, para garantir a ordem pública, nos termos do estatuído no art. 312 do Código de Processo Penal. 2. A prisão preventiva se justifica pela presença dos requisitos do art. 312, do Código de Processo Penal, além da aplicação do art 313, caput e inciso I, do mesmo Diploma Legal, já que o delito em questão é doloso e punido com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro (04) anos. 3. As medidas cautelares diversas da prisão preventiva revelam-se inadequadas e insuficientes em face das circunstâncias do caso e da gravidade do delito. 4. É impossível fazer ilações sobre a perspectiva de pena in concreto, uma vez que a fixação desta, assim como do regime prisional decorre da ponderação dos elementos de prova a serem produzidos na instrução criminal e, além disto, esta é uma questão que dependerá da análise completa das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, no momento de prolação da sentença, sendo, portanto, inviável a concessão de Habeas Corpus por presunção. 5. A presunção de inocência não é incompatível com a prisão processual e nem impõe ao Paciente uma pena antecipada, porque não deriva do reconhecimento da culpabilidade, mas aos fins do processo, como medida necessária à garantia da ordem pública, à conveniência da instrução criminal e/ou para assegurar a aplicação da lei penal, razão pela qual não se há de cogitar em violação do mencionado princípio constitucional. 6. A existência de condições pessoais favoráveis, por si só, não é suficiente para autorizar a concessão da liberdade provisória, já que tais condições devem ser analisadas diante do contexto dos autos. V.V. CRIME DE TRÁFICO - PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA - PACIENTE PRIMÁRIO - QUANTIDADE PEQUENA DE DROGA - CONDIÇÕES PESSOAIS E CIRCUNSTÂNCIAS FAVORÁVEIS - POSSIBILIDADE CONCRETA DE APLICAÇÃO DO § 4º DO ART. 33 DA LEI N. 11.343/06 - DESPROPORCIONALIDADE DA MEDIDA EXTREMA - AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 312 DO CPP - LIBERDADE PROVISÓRIA - POSSIBILIDADE - CONCEDIDO O HABEAS CORPUS. - A prisão cautelar só pode ser decretada ou mantida se demonstrada a necessidade concreta da segregação provisória, mediante elementos idôneos constantes dos autos. - Não se pode admitir a manutenção da prisão cautelar do paciente se a digna autoridade judiciária não demonstrou concretamente a presença dos requisitos contidos no art. 312 do CPP, sendo que a gravidade em abstrato do delito e a periculosidade extraída de elementos não comprovados, não constituem fundamentação apta para sedimentar uma medida tão gravosa como a prisão preventiva. - No caso, verifica-se ser desarrazoada e desproporcional a manutenção da prisão preventiva do paciente que é primário e foi preso em virtude da apreensão de quantidade pequena de drogas, pois, mesmo que condenado pelo crime de tráfico de drogas, provavelmente será abarcado pelo § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06, de modo que a custódia provisória seria, ao final, medida mais gravosa que eventual condenação sofrida nos autos da ação principal (fls. 76/77). Extrai-se dos autos que o recorrente foi preso em flagrante pela suposta prática do delito tipificado no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, tendo a prisão sido convertida em preventiva. No presente recurso, alega-se que a prisão carece de fundamentação concreta, pois não estariam presentes quaisquer dos requisitos autorizadores do art. 312 do Código de Processo Penal. Sustenta-se que a segregação foi decretada com base na mera gravidade abstrata do delito. Requer-se, em liminar e no mérito, a revogação da prisão. É o relatório. Decido. Na hipótese em análise, não vislumbro a presença conjunta do fumus boni iuris e do periculum in mora. Assim, ausentes os requisitos autorizadores, para a concessão da medida liminar. Ademais, a matéria ora ventilada implica o exame da idoneidade e razoabilidade das razões adotadas pelas instâncias ordinárias, providência inviável em análise preliminar dos autos. Por se tratar de antecipação meritória, a alegação deve ser oportunamente analisada pelo douto Colegiado. Diante do exposto, indefiro a liminar. Solicitem-se informações ao Juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Ribeirão das Neves/MG (Ação Penal n. 0231-14.038.550-2). Após, ouça-se o Ministério Público Federal. Publique-se. Intimações necessárias. Brasília, 09 de abril de 2015. MINISTRO ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP) Relator (STJ - RHC: 57970 MG 2015/0069115-5, Relator: Ministro ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), Data de Publicação: DJ 15/04/2015) (grifo nosso)
Além do sério risco de pôr um inocente na cadeia, um mero usuário que, por equívoco ou arbitrariedade será enquadrado como traficante, incorre-se no iminente perigo de transformá-lo num indivíduo completamente revoltado com a desproporcionalidade do sistema de políticas públicas sobre drogas e com a sociedade num todo.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, é possível observar que o contexto histórico em que se insere demonstra que as drogas não apenas possuem um caráter desordeiro ou delinquente, como muitas vezes é taxado, mas, mais que isso, se imiscuiu em razão de características culturais e históricas repassadas por gerações.
A respeito da redução de danos como política de saúde pública, fica claro que a adoção de medidas legalizadoras de determinados tipos de substâncias não visa a uma situação de completa anarquia e alheia a qualquer tipo de limitação ou organização, pelo contrário, é a partir dela que finalmente se faz possível a implementação de um controle das drogas.
Neste mesmo sentido, é possível observar a redução de danos não como medida possível, mas necessária, tendo em vista que, nem mesmo o mais otimista dos idealizadores da política totalmente repressora às drogas vê a possibilidade de dissipar seu uso por completo, em razão de sua existência ter se enraizado nos povos desde os primórdios da humanidade o seu consumo.
É possível concluir também pela observância de desproporcionalidade ao tratar da criminalização das drogas. É, no mínimo, contraditória a proibição total da comercialização de determinadas drogas enquanto outras são dispostas nas prateleiras de supermercados livremente.
Da mesma forma, não se faz razoável atribuir ao indivíduo que usa, porta ou está guardando quantidade irrisória de droga, o mesmo critério daquele que se enquadra efetivamente como traficante.
Observando a arbitrariedade com que se resguarda o judiciário brasileiro em suas decisões, transforma a Lei de Drogas num instituto ainda mais penoso àqueles indivíduos com potencial lesivo quase inexistente, mantendo em cárcere até mesmo pessoas que jamais tiveram qualquer tipo de contato com organizações criminosas ou qualquer tipo de ilícito, indo contra a legislação e decidindo a partir do “livre convencimento” que lhes é permitido, no entanto, acaba sendo deturpado.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Lei 11.343 de 23 de Agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências, DF, ago, 2006. Documento eletrônico. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 05 de Junho de 2018.
FONSECA, Elize Massard da. Políticas de Redução de Danos ao Uso de Drogas: O contexto internacional e uma análise preliminar dos programas brasileiros. 2005. 112f. Trabalho de Conclusão de Curso (Mestrado em Saúde Pública)-Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, 2005. Documento eletrônico. Disponível em: < https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/4604/2/734.pdf>. Acesso em 05 de Junho de 2018.
LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Lucia; FIORE, Mauricio; MACRAE, Edward; CARNEIRO, Henrique. Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salvador: Editora Edufba, 2008.
RIBEIRO, Maurides de Melo. Drogas e redução de danos: análise crítica no âmbito das ciências criminais. 2012. 333f. Tese de Doutorado apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2012.
STJ. RECURSO EM HABEAS CORPUS : RHC 57970 MG 2015/0069115-5. Decisão Monocrática Ministro Ericson Maranho. DJ: 15/04/2015. JusBrasil, 2015. Disponivel em: < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/181605970/recurso-em-habeas-corpus-rhc-57970-mg-2015-0069115-5?ref=juris-tabs >. Acesso em: 05 de Junho de 2018.