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Da uniformização jurídico-decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência.

Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica

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10/05/2005 às 00:00
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Os pontos de vista oferecidos costumam não passar de conclusões opostas justificadas a partir das mesmas premissas. Defensores e opositores da dita súmula vinculante costumam partir de pressupostos comuns, sem questionar com seriedade as premissas de suas conclusões.

1. Introdução.

            Raramente o debate político brasileiro vai além da superficialidade. Mesmo quando o problema em questão é daqueles fundamentais, os pontos de vista oferecidos à apreciação do público costumam não passar de conclusões opostas justificadas a partir das mesmas premissas, e portanto comprometidas com os mesmos pressupostos. O que as torna apenas aparente ou superficialmente antagônicas. Isto obviamente encobre e oculta a problematicidade, e assim o possível equívoco, das próprias premissas.

            Tem sido assim no debate travado em torno do projeto de vinculação das decisões judiciais através das súmulas de jurisprudência. Defensores e opositores da dita súmula vinculante costumam partir de pressupostos comuns, sem questionar com seriedade as premissas que orientam suas conclusões. Um desses pressupostos, cuja validade a história e os fatos impõem questionar, pode ser traduzido pelo ideal da uniformização das decisões judiciais.

            Os defensores da vinculação às súmulas sequer cogitam de não ser a referida uniformização possível ou desejável. Já os opositores da proposta refutam-na mormente por discordar dos mecanismos de garantia da vinculação concreta, tendo em vista que acabariam por comprometer a autonomia e a possibilidade de livre formação do convencimento dos juízes, e assim a independência do Poder Judiciário. Preocupação, aliás, inteiramente justificável em razão do progressivo e perigoso agigantamento do Executivo.

            São escassas, todavia, as manifestações tendentes a problematizar a idéia de que devem existir mecanismos de uniformização da jurisprudência, tal como vem compreendido este propósito. Apenas opõem-se opiniões por divergirem quanto aos mecanismos adequados, o que acaba por ocultar e excluir do debate o problema central, como se a respeito problema não houvesse.

            Sendo inúmeras as refutações oponíveis à defesa da adoção da súmula vinculante, cumpre apresentá-las com cautela. Não apenas para evitar que pareçam frágeis, mas em razão da complexidade da matéria. Consciente deste imperativo, o presente ensaio tenta elucidar o sentido de uniformização que vai pressuposto pelo nascituro instituto, para então, sem ignorar diversos outros argumentos possíveis, apresentar algumas fundamentais objeções ao propósito de uniformização pela vinculação às súmulas de jurisprudência.


2. O sentido de uniformização pressuposto pelo propósito de vinculação às súmulas de jurisprudência.

            Tornando-se formalmente vinculantes, nossas súmulas de jurisprudência corresponderiam integralmente aos assentos portugueses, de que exaustivamente se ocupou Antonio Castanheira Neves em obra definitiva a respeito da matéria (1). As páginas inaugurais do estudo do notável catedrático da Universidade de Coimbra definem os assentos surpreendendo sua originalidade na possibilidade que conferem "1) a um órgão judicial (a um tribunal) de prescrever 2) critérios jurídicos universalmente vinculantes, mediante o enunciado de 3) normas (no sentido estrito de normas gerais, ou de ‘preceitos gerais e abstratos’, que, como tais 4) abstraem (na sua intenção) e se destacam (na sua formulação) dos casos ou decisões jurisdicionais que tenham estado na sua origem, com o propósito de 5) estatuírem para o futuro, de se imporem a uma aplicação futura" (2).

            Sendo irreparável a análise procedida pelo autor do sentido de uniformização pressuposto pela instituição dos assentos em Portugal, e dada a identidade verificável entre os caracteres fundamentais destes assentos e das nossas súmulas de jurisprudência — cuja única característica ainda capaz de diferenciá-las dos similares portugueses desaparecerá com a eficácia vinculante —, pede-se vênia para reproduzir as suas conclusões.

            A exigência de unidade da ordem jurídica — observa Castanheira Neves — traduz a nível global, perante o todo dessa ordem, o que a uniformidade traduz imediatamente ao nível da jurisprudência (3). Assim, a noção de uniformidade pressuposta pelo instituto dos assentos — e pelo da súmula vinculante, se vier a existir, dada a recíproca equivalência — deve ser compreendida a partir do tipo de unidade que a adoção do instituto pretende assegurar:

            "(...) esta — refere-se o autor à uniformidade da jurisprudência — terá de entender-se diferente, e de propor-se coisa diversa, consoante a unidade em vista seja a unidade (formal-abstrata) da lei ou a unidade (normativo material) do direito. Ou, ainda, consoante a unidade da ordem jurídica seja assumida como dada (enquanto pressuposto) ou pensada como constituenda (enquanto objetivo). Na primeira hipótese, a uniformidade jurisprudencial será um mero corolário funcional, terá a mesma índole intencional que corresponde a esse tipo de unidade e realizar-se-á em termos de mera explicitação do respectivo conteúdo pressuposto (seja axiomaticamente, seja apenas sistematicamente). Na segunda hipótese, a jurisprudência terá de contribuir como fator indispensável, e um dos mediadores constituintes, para a formação de uma unidade intencionada como objetivo (unidade problemático-dialética e regulativamente a conseguir)" (grifos nossos) (4).

            Dadas as suas características, os assentos denunciam uma orientação que se situa na linha do primeiro sentido de unidade (5). Unidade que traduz uma identidade formal e de conceitualização abstrata, e por isso exigente de uma acabada coerência lógico-dedutiva. Trata-se de uma unidade lógica a priori, garantida pela explicitação do seu conteúdo lógico-significativo e pela eliminação de contradições que se manifestem na função operatória desse sistema (6).

            Ao postulado dessa identidade lógico-abstrata no conteúdo corresponde o postulado da univocidade lógico-significativa na determinação e aplicação do direito. Daí a instituição dos assentos portugueses: pretendendo garantir aquela unidade (lógico-conceitualmente pressuposta num prescrito sistema de normas) na aplicação normativa (aplicação lógico-conceitual), imaginava-se possível conseguir este efeito mediante uma atividade interpretativa que explicitasse, reconstituísse ou recuperasse essa unidade, e pela qual se impusesse uma univocidade de sentido significativo. Uma vez obtida por aquela atividade uma interpretação de univocidade, se a deveria preservar, objetivando-a numa outra norma (7), expressa sob a forma de assento:

            "A pressuposta unidade abstrata de normas (ou de um sistema de normas) reafirma-se também lógico-abstratamente através de outras normas (supostamente critérios de univocidade). Tal é o sentido da unidade do direito, do sistema jurídico ou da ordem jurídica, que vai manifestamente implícito no instituto dos assentos, ao proporem-se estes assegurar a ‘uniformidade da jurisprudência’ através da prescrição de vinculantes normas gerais e abstratas.

            "Estamos perante uma unidade de identidade — unidade de identidade lógico-abstrata, estática e a priori..." (8).

            Ou seja, a unidade a que se orienta a uniformização da jurisprudência por vinculação a preceitos gerais e abstratos de origem judicial compreende o direito como um sistema normativo formalmente fechado e lógico-dedutivamente estruturado, e assim capaz de oferecer as premissas normativas a partir das quais, conjugadas às premissas de fato, a jurisprudência aplicaria silogisticamente aquele direito, pressuposto e integralmente pré-determinado em abstrato. Esta compreensão do direito pressupõe que o juízo prático-normativo de que se encarrega a jurisprudência no contexto dos problemas jurídicos concretos seja lógico-dedutivamente extraído de uma premissa normativa evidente, unívoca e perfeitamente acabada no seu sentido normativo abstrato. A tarefa do juiz ficaria limitada à investigação do caso para à correspondente premissa normativa conjugar outra relativa aos fatos, a partir das quais apenas uma conclusão seria possível (9).

            Nestes termos, a unidade do direito postula uma unívoca atribuição de sentido às normas abstratamente pressupostas, pois, consideradas univocamente em abstrato, delas extrair-se-iam conclusões de ordem prática rigorosamente idênticas sempre que as premissas relativas aos fatos fossem iguais ou equivalentes. Dada esta noção de unidade, e o tipo de racionalidade prático-jurídica que pressupõe, a uniformidade da jurisprudência seria assegurada pela unívoca atribuição de sentido às premissas normativas que compõem o sistema — ou seja, às normas gerais e abstratas das quais partiria o raciocínio prático-jurídico, uma vez identificadas as premissas de fato. Uniformidade que nestes termos significa identidade de sentido abstrato das premissas normativas pressupostas pelas diversas decisões concretas, e assim identidade de decisões concretas, desde que idênticas as circunstâncias de fato consideradas — devendo-se, nestes termos, considerar apenas aquelas circunstâncias "juridicamente relevantes", ou seja, necessárias à subsunção dos fatos a um preceito normativo geral e abstrato.

            Os assentos propõem-se garantir este tipo de uniformidade, pois em resposta a uma divergência na atribuição de sentido a um critério normativo considerado em abstrato, mesmo enquanto premissa de um raciocínio prático, tenta reconstruir a unidade lógico-formal do sistema ao revelar e impor obrigatoriamente o sentido em que se deve considerar tal critério quando relevante para o encargo de decidir casos futuros.

            Assim, é possível compartilhar a conclusão de que, para o instituto dos assentos, uniformidade da jurisprudência é a "geral-abstrata pré-determinação de uma normatividade fixa e imutável, no quadro de uma unidade lógico-normativística do sistema jurídico e com vista a uma igual aplicação formal do direito" (grifo nosso) (10).

            Não diverge deste o sentido de uniformidade que a instituição da súmula vinculante pretende assegurar. Através da emissão de preceitos normativos abstratos e geralmente vinculantes, o tribunal que os emitisse seria supostamente capaz de impor uma idêntica consideração dos critérios normativos oferecidos pelo sistema. Considerados univocamente nos seus sentidos significativos, e nestes termos obrigatoriamente assumidos na condição de premissas para as decisões futuras, os tais preceitos normativos de origem judicial implicariam a uniformização da jurisprudência, eliminando divergências na atribuição de sentido aos critérios normativos e assim garantindo a identidade das decisões sempre que equivalessem as premissas relativas aos fatos. Neste sentido, a uniformidade da jurisprudência corresponde à "pura igualdade de interpretação da lei, pura igualdade da sua aplicação ou pura igualdade de solução jurídica — em que ‘pura igualdade’ significa simples repetição da inalterável identidade formal de algo que tenha sido uma vez prescrito ou obtido" (11).

            Em suma, a instituição da súmula vinculante não pretende garantir a coerência e a harmonia entre as diversas decisões jurisprudenciais, consideradas as particularidades dos casos no contexto dos quais estas decisões sejam proferidas, mas pré-determinar em abstrato as premissas normativas do raciocínio prático-jurídico, com a intenção de assegurar a igualdade formal das decisões, consideradas apenas as circunstâncias de fato relevantes à subsunção do caso a um unívoco critério normativo, permitindo que a decisão resulte de um raciocínio lógico-dedutivo estritamente silogístico.


3. Objeções de ordem metodológica: da ineliminável problematicidade implicada no processo de concretização do direito.

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            Freqüentemente, considera-se superada a exegese legalista, e assim a redução da função judiciária a uma atividade de aplicação lógico-dedutiva da lei ao caso concreto. Todavia, esta noção obliterada da função jurídico-decisória conserva sua força, condicionando os modos pelos quais a generalidade das pessoas percebe o fenômeno jurídico, porque decorre quase como corolário necessário da idéia de direito que a modernidade consagrou, e que ainda não logramos superar.

            Em diferentes versões, o jusnaturalismo moderno passou a radicar todo o direito na vontade, rompendo com as teorias de inspiração clássica, para as quais o fundamento do direito consistia, em linhas gerais, numa ordem justa inerente à comunidade humana; a expressão desta vontade com que se vai identificar o direito será sempre a lei, expressão do arbítrio de um órgão soberano (Hobbes), ou da "vontade geral" (Rousseau) (12). Sendo produto de uma vontade cujo conteúdo será, em princípio, arbitrário — e não uma realidade suscetível de compreensão racional —, o jurista só poderá aceder ao direito (que passa a identificar-se ao que a lei prescreve) interpretando, da forma mais humilde possível, a expressão daquela vontade (13). Assim, mesmo considerando superados os componentes políticos da tentativa de reduzir a função judicial à estrita e lógico-dedutiva aplicação da lei escrita (hipótese que em verdade o contexto atual parece infirmar), a sobrevivência da compreensão do direito enquanto produto da vontade — inclusive nos termos de uma vontade apenas politicamente orientada —, reafirma e continua sugerindo que os juízes possam e mesmo devam simplesmente deduzir de preceitos gerais e abstratos, de sentido evidente e unívoco, a solução desejada para o caso concreto. Este folclore (14), característico da fase moderna da nossa tradição, sobrevive também por resistirem as seqüelas do racionalismo que fazia crer possível tornar o direito claro e certo na sua expressão legal, bem como distinguir rigorosamente os momentos de criação (ou de descoberta e expressão em termos abstratos) e aplicação do direito (15). Sem falar no ainda presente — confirma-o a própria proposta de que se ocupa este ensaio — ideal da certeza, considerado em nossa tradição moderna uma espécie de valor supremo, de meta fundamental, cuja acentuação expressa a intenção de tornar o direito à prova de juízes (16), mormente por recurso a uma metodologia lógico-dedutiva.

            Nada garantiria, contudo, o êxito desses propósitos, pois a vinculação dos juízes a incontáveis preceitos legais gerais e abstratos, por mais claros e inequívocos, não seria capaz de eliminar a problematicidade dos casos concretos, e assim da formulação dos juízos prático-jurídicos.

            Apesar do consenso acadêmico atualmente verificável em torno desta conclusão, parece indispensável reprisá-la em resposta à tentativa de adoção da súmula vinculante, pois o alvitre que a defende supõe possível justamente a eliminação da problematicidade implicada no processo de concretização do direito. Ou seja, submetendo nossos magistrados a apenas mais alguns preceitos gerais e abstratos — não bastasse a submissão aos milhares inscritos nos diversos códigos e nos absurdamente numerosos estatutos legais que com eles coexistem —, a vinculação às súmulas seria capaz de eliminar toda e qualquer divergência jurisprudencial, desta vez com êxito, pois expressando em termos unívocos os critérios normativos relevantes, nossos tribunais tornariam evidentes e demonstráveis as soluções jurídicas que, no contexto dos casos, sem as súmulas pareceriam duvidosas. Suposição ingênua, que a experiência infirma.

            Assumindo o controle da jurisdição ordinária com o propósito de uniformizar a jurisprudência enunciando o sentido abstrato dos critérios normativos aplicáveis, os nossos tribunais reafirmariam com ainda mais vigor — posto que a sistemática do recurso especial já o faz — o propósito da Corte de Cassação francesa, cujos pormenores passam a interessar-nos por ilustrar o tipo de metodologia jurídico-decisória que as súmulas vinculantes pressupõem possível.

            Observa Calamandrei que a "exata observância das leis", finalidade característica da cassação, não significa obediência aos preceitos individuais concretos, tal como emanam da lei para a verificação em concreto dos fatos hipotizados por ela em abstrato, mas o exato conhecimento da lei em sua significação geral, a exata interpretação do alcance que tem a lei como norma geral e abstrata, aplicável a toda uma série indefinida de casos; exata observância por parte dos juízes, que, ao julgar sobre os fatos alheios, devem conhecer exatamente o alcance e a significação das leis que são chamados a aplicar (17).

            Sendo função própria da cassação a garantia do exato conhecimento da lei em sua significação geral, implica esta função também a de uniformização da jurisprudência, pois em sua significação geral a lei só poderia mesmo ter um sentido unívoco, independentemente dos casos em que se as aplicassem. A respeito, é elucidativa a explicação de Calamandrei: no sistema próprio dos ordenamentos modernos continentais, nos quais o direito, em vez de estar enunciado caso a caso, se formula, através da codificação, por antecipação, em normas gerais e abstratas, cada juiz deve ter o poder de interpretar o seu alcance; mas pode ocorrer que a interpretação de dita norma varie ao variar o intérprete, e que, ao aplicar a casos iguais diversas interpretações discordantes da mesma norma, se chegue a violar a exigência do trato igual de casos similares, que é o primeiro cânone da igualdade de todos ante a lei; é preciso, pois, escolher, dentre as diversas interpretações possíveis que a uma mesma lei se tenham dado em casos similares por juízes diversos, uma que fique mais acreditada, como mais exata, sobre todas as outras; é preciso, enfim, unificar no Estado a interpretação judicial das leis, ou seja, como costuma dizer-se, "unificar a jurisprudência" (18).

            Além de confirmar o sentido de uniformização que vai implícito na adoção de mecanismos de controle da jurisprudência pela fixação em abstrato de critérios normativos, a explicação de Calamandrei acerca da cassação revela os pressupostos metodológicos que mecanismos deste tipo assumem. A cassação se justifica supondo que a divergência jurisprudencial possa decorrer apenas da diversidade de interpretações, por juízes diversos, do sentido abstrato da lei. Enunciado o direito em abstrato por antecipação, toda e qualquer divergência de juízo seria resultante de uma divergente consideração do sentido abstrato e antecipadamente definido das normas aplicáveis, e assim jamais de uma diversa ponderação das circunstâncias peculiares aos casos, pois o sentido dos critérios normativos aplicáveis seria pré-determinado independentemente de tais circunstâncias, em face das quais aplicar-se-ia a lei naquele sentido. Ou seja, competiria aos juízes "julgar sobre os fatos" e compreender o sentido abstrato, determinado por antecipação, da norma aplicável. Daí resultariam duas premissas, uma acerca dos fatos, outra acerca do direito, a partir das quais bastaria raciocinar lógico-dedutivamente para decidir o caso nos termos do direito pressuposto e dado por antecipação em abstrato. Sempre que às normas fossem em abstrato atribuídos sentidos equivalentes, destas atribuições resultariam julgamentos iguais, desde que similares as premissas de fato.

            A proposta de vinculação às súmulas parece supor que as coisas se passem desta forma, pois imagina que a apriorística determinação em abstrato dos critérios normativos aplicáveis, conjugada à obrigatoriedade de observar o sentido abstrata e antecipadamente revelado pela súmula, implicaria a formal igualdade das decisões tomadas no contexto de casos similares. Tudo como se o juízo prático-jurídico que o problema concreto reclama pudesse resultar lógico-dedutivamente da consideração de uma premissa acerca dos fatos e da sua conjunção a outra prévia e inequivocamente definida no seu sentido e alcance abstratos. Mas, sendo falso este pressuposto metodológico, a fixação em abstrato dos critérios normativos aplicáveis torna-se incapaz de garantir a igualdade formal das decisões jurisprudenciais. Por isso as súmulas de jurisprudência mostrar-se-ão incapazes de produzir o resultado esperado.

            A metodologia prático-jurídica pressuposta pela cassação, e nos mesmos termos pelos assentos portugueses, como pelas nossas súmulas, postula uma compreensão do conhecimento jurídico que o reduz a uma espécie de conhecimento dos critérios normativos gerais, dos quais resultariam imediatamente as soluções para os diversos casos concretos, sendo necessário ao jurista apenas confrontar àqueles critérios os fatos juridicamente relevantes. Mas o pensamento jurídico contemporâneo rechaça sem reservas esta compreensão, pois reconhece um aspecto de que já os juristas pré-modernos tinham nítida consciência: dos princípios gerais, e assim dos critérios normativos considerados em abstrato, não é possível extrair imediatamente o conhecimento relativo à ação a praticar. Ou seja, dos preceitos normativos gerais não é possível extrair lógico-dedutivamente os juízos prático-jurídicos acerca da ação a realizar em cada caso considerado em concreto.

            Ao jurista não basta compreender o sentido geral das normas que o orientam, pois encarregar-se do problema da ação devida a outrem por justiça requer prudência, virtude da razão prática que indica o meio (a ação particular) através da qual atingimos o fim (o bem a que a ação se orienta) (19). No caso do direito, a prudência oferece a compreensão da ação devida a outrem, por justiça, em cada circunstância particular (20). Dada a problematicidade destas circunstâncias, as normas gerais relativas à ação oferecem parâmetros à deliberação, mas não contêm inequivocamente pré-determinadas as soluções adequadas aos diversos problemas concretos. Determiná-las é tarefa da razão prática, que se move — e assim a razão prático-jurídica — no âmbito das coisas contingentes, e no qual, apesar da necessariedade dos princípios mais gerais, quanto mais descemos ao particular, mais dificuldades encontramos (21). Este hiato entre a generalidade da lei e a particularidade dos casos — lembra Pierre Aubenque, referindo-se a Aristóteles — é como um obstáculo ontológico que nenhuma ciência humana poderá jamais superar (22). O que significa que as normas jurídicas não indicam por si o que deva ser feito em cada circunstância particular: a passagem da norma geral ao justo concreto é tarefa da razão prática (23). Por isso, o conhecimento jurídico é prático-prudencial e, assim, fundamentalmente deliberativo. As normas gerais sugerem alternativas de ação sobre as quais é indispensável deliberar, pois no domínio contingente da praxis — reforça Aubenque — nenhum caminho é tal que estejamos seguros do seu êxito (24).

            A metodologia jurídica moderna tentou eliminar justamente a problematicidade do processo de concretização do direito, ofuscando o caráter prático-prudencial do conhecimento jurídico, pois, segundo postulava, o raciocínio do jurista partiria de uma premissa unívoca aprioristicamente determinada em extensão e sentido normativo, cuja conjugação à premissa de fato indicaria a solução correta do caso. A solução estaria desde antes do caso inequivocamente indicada pelo sentido abstrato da premissa normativa, de modo que o conhecimento da solução concreta identificar-se-ia com o daquele sentido, ou seria dele logicamente extraído. Não haveria sobre o que deliberar, pois a deliberação pressupõe incerteza sobre a ação, dadas as alternativas que nas circunstâncias se abrem. Partindo de premissas das quais deveria deduzir a solução do caso, o raciocínio prático-jurídico perderia a problematicidade. Mas não perdeu, porque é essencialmente problemático, dada a problematicidade com que se apresentam as próprias premissas do raciocínio prático-jurídico.

            O conhecimento jurídico é daqueles que nunca perdem este caráter, pois se orienta à praxis, e assim sofre o influxo da variabilidade das circunstâncias dos casos particulares, no contexto dos quais as premissas do raciocínio são sempre incertas. Parece então correto considerar o pensamento jurídico tópico: dedica-se fundamentalmente à solução de problemas, ou seja, de questões para as quais apresentam-se diversas respostas aparentemente possíveis, mas dentre as quais apenas uma deve ser considerada correta (25). Quando ocorrem mudanças nas circunstâncias particulares — lembra-nos Viehweg —, é preciso encontrar novos dados para resolver os problemas. Os tópicos, que nada são além dos pontos de vista capazes de oferecer respostas possíveis a estes problemas, recebem sentido desde o próprio problema, pois à vista de cada um aparecem como adequados ou inadequados, apresentando-se como possibilidades de orientação e como fios condutores do pensamento (26). Ou seja, por ocupar-se de problemas práticos o raciocínio jurídico se caracteriza precisamente pela busca das premissas capazes de oferecer soluções adequadas a estes problemas, dadas as particularidades de cada um. Não é exclusivamente lógico, mas antes tópico, pois assume a busca daquelas premissas, tarefa da tópica (27). As normas legislativas e as construções doutrinárias, por sua vez, não indicam inequívoca e aprioristicamente as premissas imediatas do raciocínio prático-jurídico, antes oferecendo uma multiplicidade riquíssima de pontos de vista, em meios aos quais o jurista prático buscará as premissas adequadas à solução do concreto problema de que se ocupa. Raramente são estas premissas evidentes no contexto do caso, mesmo que se as tenha tentado tornar claras e unívocas definindo o sentido abstrato dos critérios normativos aplicáveis. Como diria um jurista de common law, as normas legais nunca são claras no contexto do caso, por mais claras que possam parecer em abstrato (28).

            Ao invés de partirem de uma premissa normativa, uma vez estabelecida a premissa de fato, os juristas que se ocupam de problemas concretos buscam nos critérios normativos as premissas possíveis. As normas não as estabelecem com rigor nem as indicam com evidência, pois isto é incompatível com a relativa indeterminação normativa dos preceitos gerais e abstratos:

            "(...) sempre, com efeito, as normas legais exigem, na sua aplicação histórico-concreta, uma normativa e complementar concretização, desenvolvimento ou adaptação (correcção) constitutiva. É isso conseqüência, desde logo, da sua intencionalidade geral abstracta e, assim, da sua essencial indeterminação material quando referidas as normas aos históricos e individualizados casos concretos da sua aplicação" (29).

            Sendo assim, é impraticável o tipo de metodologia necessário à uniformização da jurisprudência pela vinculativa e apriorística determinação do sentido abstrato dos critérios normativos. Esta fixação do sentido abstrato das normas é incapaz de eliminar a problematicidade dos casos nos quais tais normas reclamem aplicação, pois se revelarão sempre relativamente indeterminadas em concreto, ao menos se consideradas as circunstâncias do caso e os problemas que suscitam. Noutras palavras, as súmulas de jurisprudência, estabelecendo critérios normativos gerais e abstratos, são objetos de interpretação, tais como as demais normas jurídicas. Esta evidência — percebe Castanheira Neves, referindo-se aos assentos —, pode ser considerada uma frustração do objetivo último do instituto. Se os assentos podem e devem ser igualmente interpretados, "na sua interpretação as dúvidas e controvérsias interpretativas, embora outras, podem nascer — e, assim, aquilo a que através deles se quis pôs cobro pode ressurgir afinal com eles" (30). Que isto vale para as nossas súmulas, é algo cuja demonstração podemos dispensar.

            A insistência na proposta de vinculação às súmulas revela, portanto, uma certa ingenuidade e um profundo desprezo pela experiência que a história oferece. Tendo fracassado a tentativa de estabelecer a estrita submissão do Judiciário à legislação escrita, como se os casos jurídicos admitissem a mera aplicação da lei no seu abstrato sentido aprioristicamente determinado, a vinculação às súmulas renova a intenção de eliminar a problematicidade do direito, desta vez impondo aos juízes a aplicação de preceitos normativos gerais previamente fixados por tribunais superiores. Mas esta intenção supõe critérios metodológicos incompatíveis com a natureza do direito, razão pela qual encontrará a mesma sorte que encontrou a submissão do juiz ao legislador. Nas palavras de Castanheira Neves, "é metodologicamente incorreto, o mesmo é dizer praticamente ilusório e ineficaz, pretender ao nível da jurisprudência o que não foi possível ao nível da legislação: antecipar e fixar em abstrato o conteúdo juridicamente concreto das decisões jurídicas" (31).

            Por fim, mesmo que a indiferença pelas circunstâncias concretas dos casos tornasse possível a formal igualdade das decisões, a proposta de vinculação às súmulas de jurisprudência mereceria integral rejeição por negar uma fundamental intenção do direito: a intenção de justiça, que traduz a exigência de decisões materialmente adequadas às sempre novas circunstâncias e aos problemas concretos que invariavelmente suscitam (32).

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Sobre o autor
Fábio Cardoso Machado

mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), professor de Direito na UNISINOS e na PUC/RS, advogado sócio de Machado, Motta & Carvalho dos Santos Advogados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Fábio Cardoso. Da uniformização jurídico-decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência.: Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 674, 10 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6686. Acesso em: 23 dez. 2024.

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