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Da uniformização jurídico-decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência.

Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica

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10/05/2005 às 00:00
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4. Objeções de ordem sócio-cultural: da crise ético-valorativa implicada no agravamento da insegurança jurídica.

            A rigorosa previsibilidade das decisões judiciais é praticamente impossível. Esta fundamental constatação, momentaneamente esquecida pelo pensamento moderno, impõe uma revisão de sentido do ideal de segurança jurídica, já que se o identificou por algum tempo, com conseqüências dramáticas, à intenção de garantia daquela previsibilidade, como se fosse possível estabelecer um estado de absoluta certeza jurídica.

            Mas segurança e certeza não se identificam necessariamente. Ao passo que a certeza quanto ao conteúdo das particulares decisões judiciais é incompatível com a contingência, com a indeterminada e irredutível variedade das circunstâncias em que operam os juristas, uma relativa segurança é certamente desejável e praticamente possível, ao menos quando reunidas certas condições. E o grau de segurança esperado do direito deve ser o que a sua natureza comporta, nem mais nem menos.

            Nestes termos, a segurança jurídica supõe certa estabilidade nos fundamentos, nos princípios e valores basilares e ordenadores da praxis, e a sua preservação pela jurisprudência. Nas palavras de Castanheira Neves, estabilidade histórico-cultural de uma intenção normativa material, a garantir num grau compatível com o caráter prático-normativo do direito: constância nos fundamentos com justificada diferenciação no concreto das decisões. A segurança que este tipo de estabilidade oferece resulta de ser fator de ordem, de objetividade, de racionalidade, de confiança assegurada por aquela objetividade, e assim capaz de excluir o arbítrio (33).

            No caso do direito, a estabilidade traduz-se na "subsistência da sua intencionalidade normativa fundamental, definida em coerência sistemática pelos seus valores e princípios, não pela repetida identidade de soluções..." (34). Mas não é evidentemente aquele tipo de estabilidade que as súmulas pretendem garantir, e sim certeza enquanto rigorosa previsibilidade, tornada possível pela apriorística determinação em abstrato do conteúdo das decisões judiciárias, com o correlativo desprezo pelas circunstâncias particulares e pelos problemas que casuisticamente suscitam. Propósito, já vimos, incompatível com a ineliminável problematicidade do raciocínio prático-jurídico, e francamente contrário à adequada ordenação da praxis ao bem da justiça. A questão a elucidar, portanto, é a seguinte: se a vinculação às súmulas de jurisprudência pode assegurar aquela estabilidade, e por conseqüência o grau de segurança que o direito comporta. Questão a que se responde em sentido evidentemente negativo, pois as súmulas expressam critérios normativos que apesar de gerais não explicitam ou desenvolvem os princípios primeiros da racionalidade prático-jurídica nem os fins ou valores que orientam a atividade judicante. Antes ao contrário, propõem-se estabelecer de antemão o conteúdo dos juízos prático-jurídicos de modo a tornar dispensável a consideração, no contexto de cada caso, daqueles princípios e destes fins ou valores.

            Sendo impossível ou ao menos indesejável, todavia, estabelecer por antecipação o conteúdo das decisões judiciárias concretas — dada a ineliminável problematicidade do raciocínio que a elas conduz, em razão da contingência das circunstâncias que as exigem —, qualquer grau de segurança supõe um certo acordo fundamental acerca dos fins do direito, dos valores fundantes da experiência jurídica, dos bens no sentido dos quais os juristas devam ordenar suas ações e decisões particulares, daquilo, enfim, que por justiça se exige de cada um, mesmo que de um ponto de vista mais geral e relativamente indeterminado.

            Eis então como deve ser compreendida a unidade do direito: unidade de opções axiológicas, de postulados normativos e princípios jurídicos fundamentais constituintes, dos quais as normas e todas as outras manifestações da realização do direito (juízos, decisões e atos concretos) não são (ou não deveriam ser) mais que expressões particulares e nas quais jurídico-normativamente se fundam, direta ou indiretamente (35). Ou seja, os juízos prático-jurídicos em que se fundam as decisões judiciárias devem assumir o caráter de expressões particulares de um todo, do qual extrairão validade e em relação ao qual tornar-se-ão suscetíveis de avaliação racional:

            "Especificamente no plano prático-normativo, uma intenção de validade traduz sempre a referência de atos ou situações ao absoluto de um todo (ordem/sistema) axiológico, global e intencionalmente integrante, mediante juízos que, nessa referência axiológico-universal, compreendem e julgam aqueles actos e situações particulares — o todo absoluto de valor (ou um sistema de valores) e a sua intencional universalidade fundamentante perante uma parte-objecto valoranda e a fundamentar na sua particularidade pelo seu sentido vinculado naquele todo. Ora, se o direito, na sua idéia e intenção material, é um todo de valor (um sistema específico de valores) em que tanto a sociológica universalidade comunitária, como o axiológico-intencional ‘comum’ comunitário se exprimem normativamente, a função jurisdicional é função do ‘sistema político’ de um Estado de Direito chamada a assumir aquele valor nessa perspectiva de vinculada universalidade perante os atos e situações concretas que controvertidamente suscitam a problemática da sua afirmação ou da sua realização. Naquele valor e na sua correlativa universalidade tem, pois, a jurisdição a sua intencionalidade" (grifo nosso) (36).

            Compreendido o direito nestes termos, evidencia-se que a relativa indeterminação dos preceitos gerais que o enunciam é correlativa da sua relativa determinabilidade geral. É a correspondência daqueles preceitos a um todo de sentido normativo que permite determiná-los relativamente, ou seja, no grau de determinação que comportem dado o seu caráter de normas gerais. Mas sem referência a um todo integrante e ordenador os preceitos gerais passam a ser absolutamente indeterminados, e aí está o fator central de insegurança.

            Nossa hipótese, a respeito da insegurança que parece justificar a proposta de vinculação às súmulas, pode então ser enunciada nos seguintes termos: não deriva — a insegurança que atualmente angustia — da inobservância, pelos juízes, dos preceitos gerais que o legislador enuncia, mas da perda de referência destes preceitos a um todo integrante e ordenador que lhes confira sentido, mesmo um sentido geral e, portanto, relativamente indeterminado. As notáveis divergências jurisprudenciais não revelariam, portanto, um disseminado desprezo pelos preceitos normativos gerais e pela autoridade do legislador — mesmo admitindo que isto se verifique em alguma medida — , mas refletiriam em concreto a exagerada indeterminabilidade que preceitos daquele tipo assumem quando deixam de se referir a um todo, dos quais seriam expressões relativamente determinadas caso houvesse uma noção compartilhada do sentido normativo deste todo, e a partir dos quais seria também possível atingir prudentemente uma compreensão racionalmente fundada das exigências do todo para cada caso concreto.

            Hipótese cuja verossimilhança se acentua considerando os traços fundamentais da cultura moral contemporânea, dos quais é notório intérprete Alasdair MacIntyre. Do ponto de vista da tradição filosófica que mereceu a adesão do filósofo, é dizer, especialmente para Aristóteles e Tomás de Aquino, só podemos compreender o justo à luz do bem, que nesta tradição se identifica com o fim no sentido do qual o homem se dirige para alcançar a sua perfeição específica (37). Qualquer pessoa que careça do conhecimento do seu verdadeiro bem estará privada das únicas razões seguras para a ação reta, pois sem o conhecimento genuíno do bem humano não se pode ter o conhecimento adequado das normas morais. Segundo postula a tradição aristotélico-tomista, as normas morais ordenam as ações humanas no sentido daqueles fins a que o homem se inclina, ou seja, daqueles bens que são a dimensão da sua perfeição (38). Segue-se que qualquer acordo racional sobre as normas morais pressupõe um acordo racional sobre a natureza do bem humano (39). Contudo, nas sociedades ocidentais contemporâneas os desacordos são numerosos e fundamentais tanto quanto à natureza do bem humano quanto a se esse bem existe. Segundo a teoria liberal sobre a qual estas sociedades se organizam, a adesão a qualquer concepção particular acerca do bem passa a ser questão de preferência individual e de eleição privada (40). Disto decorre a exagerada indeterminação das normas morais, pois para que uma comunidade política possua normas morais racionalmente fundadas, compartilhadas e suficientemente determinadas, é uma precondição necessária a posse compartilhada de uma concepção de bem humano racionalmente justificável (41).

            Não havendo uma compreensão compartilhada do que seja bom para o homem, do que seja uma vida boa (eudaimonia), o que genuinamente compartilhamos na forma de máximas, preceitos e princípios morais, não está suficientemente determinado para orientar a ação com segurança (42). Apesar da aparente impessoalidade dos argumentos que freqüentam o debate, o emotivismo passa a caracterizar a cultura moral das sociedades onde se verifica aquela perda. Passamos a agir como se o emotivismo fosse verdadeiro, ou seja, como se todos os juízos estimativos, e mais especificamente os juízos morais, fossem meras expressões de preferência individual, atitude ou sentimento, e assim insuscetíveis de verdade e falsidade. Sendo expressões de sentimento, a concordância acerca dos juízos morais não deveria ser assegurada por algum método racional, mas pela produção de certos efeitos não-racionais nas emoções ou atitudes dos outros. Neste contexto, verifica MacIntyre, usamos os juízos morais não apenas para expressar nossos próprios sentimentos, mas também, precisamente, para produzir estes efeitos nos outros (43). Temos, portanto, algo ainda mais grave que a simples perda de determinabilidade das normas morais, pois ao invés de orientarmo-nos por elas passamos a usá-las para expressar sentimentos ou preferências e para provocar efeitos não-racionais nos outros.

            Numa sociedade caracterizada por esta cultura moral emotivista, as premissas iniciais do raciocínio prático são fornecidas pelos desejos do agente (44). Os pontos de vista morais e políticos são construídos como expressões de atitude e sentimento, de preferências individuais. Não sendo argumentos, a persuasão não-racional desloca a argumentação racional (45). Se for ao menos em parte verdadeiro este diagnóstico, torna-se imperativo questionar sobre uma possível contaminação emotivista do discurso, da praxis e da racionalidade prático-jurídica.

            Sabemos hoje que é um folclore ingênuo imaginar que o direito seja claro e evidente no contexto da generalidade dos casos, e assim que os juízes devam limitar-se a formular juízos de fato, em face dos quais deveriam declarar o direito com certeza. Sendo assim, mesmo a submissão honesta dos juristas à legislação escrita não garante a objetividade dos juízos prático-jurídicos e a racionalidade do debate em torno deles. Pois da mesma forma que o absoluto desacordo acerca do bem para o homem torna as normas morais insuficientemente determinadas para guiar a ação moral, o dissensoacercaaaaa acerca dos fins da comunidade política, e portanto dos bens que a ordem jurídica deve realizar ou garantir, torna as normas jurídicas insuficientemente determinadas para orientar com segurança a ação do jurista. Como parece verossímil que não compartilhamos — ou ao menos que não elaboramos racionalmente —, noções fundamentais acerca dos fins do direito e daquilo que por justiça se exige de cada um, em face dos outros ou da comunidade política como um todo, o que compartilhamos na forma de máximas, preceitos e princípios jurídicos, mesmo por respeito à legislação, não está suficientemente determinado para orientar a praxis jurídica, garantindo a sua racionalidade e objetividade, e assim aquele tipo de estabilidade capaz de oferecer segurança.

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            É possível, noutros termos, que nos falte aquele todo de valor, de que nos falou Castanheira Neves, em que a sociológica universalidade comunitária e o axiológico-intencional comum comunitário se exprimem normativamente. Simplesmente, porque talvez nos faltem aquela universalidade e este comum comunitário. E neste caso o domínio do direito está vulnerável ao emotivismo, pois estando insuficientemente determinados para orientar a ação com segurança, dada a ausência daquele todo integrante que a determinabilidade exige, as máximas, princípios e preceitos jurídico-normativos deixam de oferecer critérios objetivos de ação e de verificação racional da veracidade ou falsidade dos juízos prático-jurídicos concretos, e passam a ser usados em tom impessoal para obter a adesão alheia às preferências individuais de quem os usa. Se a premissa inicial do raciocínio prático é fornecida pelos desejos do agente, se os pontos de vista são em verdade expressões de atitude e sentimento, e não argumentos, e se a submissão à legislação não garante sozinha a objetividade dos juízos jurídicos e a racionalidade do debate, também no direito a persuasão não-racional pode estar deslocando a argumentação racional. E isto é duma gravidade insuspeitável, pois além de minar a pretensão de objetividade do direito, gera um avassalador sentimento de insegurança. O direito deixa de orientar a ação, para passar a ser usado como instrumento de persuasão não-racional. E a partir daí tudo é possível, pois nada oferece respostas seguras acerca do que o direito impõe à praxis.

            Que as súmulas de jurisprudência possam fazer frente à crise decorrente desta grave desordem cultural é algo de que devemos seriamente suspeitar. Por mais que explicitem critérios normativos, continuarão incapazes de antecipar o conteúdo das decisões judiciárias concretas, não apenas por ser isto metodologicamente impossível, mas por ser incompatível com a natureza prático-prudencial do conhecimento jurídico e da função jurisdicional. Por mais que se expressem adequadamente, conservarão certa indeterminação de sentido abstrato, e exigirão dos juristas que determinem o sentido concreto de cada uma no contexto de cada problema que suscite sua aplicação. E desta forma ficarão sujeitas ao influxo das mesmas circunstâncias de ordem sócio-cultural que tornam os preceitos legislativos exageradamente indeterminados e incapazes de ordenar com segurança a prática judiciária.

            O estado de crescente insegurança jurídica que verificamos no Brasil deste limiar de milênio supera certamente o grau de incerteza que o direito impõe dada a sua própria natureza. Mas aquele fenômeno não decorre da falta de instrumentos de controle jurisdicional, nem pode ser enfrentado com o incremento dos que existem — até porque nosso sistema é pródigo em mecanismos deste tipo, e a experiência os demonstra inócuos na contenção da insegurança. As súmulas de jurisprudência são evidentemente incapazes de obstar os males da perda dos vínculos tradicionais e autoritativos, estes sim eficazes na manutenção de uma ordem fundante e ordenadora da praxis (46). Nem podem forjar uma estabilidade nos fundamentos, uma coerência nos princípios, quando o ambiente cultural em que a função jurisdicional se realiza é caracterizado por um profundo desacordo acerca das questões de fundamento e de princípio. Impor, nestas circunstâncias, a uniformidade da jurisprudência, exigiria talvez uma certa ruptura com algumas das inalienáveis conquistas democráticas. Assim, provavelmente está certo Ovídio A. Baptista da Silva ao alertar para o fato de que a renúncia ao propósito de uniformizar a jurisprudência "é o preço que as épocas de crise e profundas transformações, como a nossa, devem pagar, para manter o império do Direito" (47).

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Sobre o autor
Fábio Cardoso Machado

mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), professor de Direito na UNISINOS e na PUC/RS, advogado sócio de Machado, Motta & Carvalho dos Santos Advogados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Fábio Cardoso. Da uniformização jurídico-decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência.: Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 674, 10 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6686. Acesso em: 10 mai. 2024.

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