5. Objeções de ordem político-jurídica: do caráter autoritário implicado na intenção de restringir a independência judicial por vinculação a preceitos normativos de origem não-legislativa.
O Legislativo não deve ter o monopólio da manifestação do direito, mas o monopólio desta manifestação numa das suas particulares expressões, que é a expressão legal. Pois a democracia não exige que o Legislativo monopolize aquela manifestação, e sim que apenas o Legislativo possa manifestar o direito através do estabelecimento de normas gerais e abstratas. Assim como exige o monopólio, pelo Judiciário, da manifestação prático-concretamente-normativa do direito, através de julgamentos proferidos no contexto de casos particulares. A concentração dos poderes de estabelecer normas geralmente aplicáveis e de julgar casos jurídicos particulares de acordo com estas normas é francamente contrária aos postulados sobre os quais está assentado o Estado de Direito, e por isto atentam contra estes postulados quaisquer tentativas de atribuir ao Legislativo a função de estabelecer o conteúdo concreto das decisões judiciárias particulares, ou de atribuir ao Judiciário a função de impor critérios normativos abstratos geralmente aplicáveis. Partindo desta fundamental constatação, cumpre apreciar a validade político-jurídica da proposta de vinculação às súmulas de jurisprudência.
Também quanto a este ponto a gênese e a experiência da cassation oferecem riquíssimas perspectivas, pois revelam o caráter autoritário da tentativa de estabelecer aprioristicamente o conteúdo das particulares decisões judiciárias, concentrando num só Poder aquelas duas funções pelo exercício das quais o direito se manifesta.
Segundo Calamandrei, o recurso de cassação originou-se de um instituto já existente na França do ancien régime. Na luta que se desenvolveu entre o poder centralizador da monarquia e as tendências descentralizadoras dos Parlamentos (órgãos judiciais de última instância surgidos em várias cidades, à semelhança do de Paris), uma arma freqüentemente utilizada pelo Soberano para paralisar os intentos de ingerência daquelas Cours no terreno das prerrogativas régias, foi a de anular de son propre mouvement os atos jurisdicionais de tais Parlamentos e que por qualquer forma parecessem contrários à vontade do Monarca. Em razão deste poder se desenvolveu um verdadeiro e próprio meio de impugnação (demande en cassation) concedido à parte vencida em um juízo en dernier ressort, para denunciar ao Soberano, com o fim de anulação, a sentença de um Parlamento que estivesse viciada de contravention aux ordonnances. Esta demande en cassation só podia ser dirigida ao Soberano, que tomava conhecimento dela por meio do próprio Conselho de Governo, dentro do qual, quando a cassação começou a funcionar regularmente, se especializou uma seção especial chamada Conseil des Parties. Dado que já então este meio de impugnação visava à manutenção das ordenações e não à satisfação das partes, concluiu Calamandrei que o arquétipo da cassação estava já no Conseil des Parties do ancien régime, órgão supremo do conselho político do Soberano, instituído para controlar a atividade dos juízes (48).
Os fatos sugerem, portanto, que a cassação surge em consonância com aquele postulado hobbesiano segundo o qual todo o poder está concentrado no soberano, razão pela qual os juízes nada decidem, senão pronunciando a vontade daquele soberano enquanto mandatários constituídos por sua autoridade. As sentenças dos juízes, enuncia Hobbes, são autênticas por serem dadas pela autoridade do soberano, mediante a qual elas se tornam sentenças do soberano, que então se tornam leis para as partes em litígio (49). Tendo sido originariamente estabelecida como mecanismo de garantia da observância, pelos juízes, da vontade do soberano, que deveria concentrar os poderes de legislar estabelecendo comandos gerais e de julgar através dos seus mandatários, de modo que a sua vontade arbitrária fosse rigorosamente observada, a cassação mostra-se em princípio antitética com o Estado de Direito e com o princípio da independência judicial, o que suscita curiosidade a respeito da sobrevivência do instituto.
A respeito, Calamandrei observa que aquele instrumento de luta do poder real contra os Parlamentos rebeldes voltou a ser adotado pela Revolução, transformando-o num instrumento para a defesa da lei contra as transgressões dos juízes. Sobre o esqueleto processual da cassation do ancien régime, mas sob a nova roupagem adotada pelas ideologias revolucionárias, que magnificavam a onipotência da lei e a igualdade de todos perante ela, nasceu, em 1790, o Tribunal de Cassation. Na sua forma originária, o Tribunal não foi um órgão verdadeiramente judicial, mas de controle constitucional, posto ao lado do Poder Legislativo para vigiar a atividade dos órgãos judiciais e reprimir as ingerências com que os juízes tratavam de subtrair-se à observância da lei. Sobre a estrutura do antigo conselho do Soberano, o Tribunal surgiu como expressão de uma profunda desconfiança dos legisladores revolucionários a respeito dos juízes, considerados o mais grave perigo para a manutenção das leis. Precisamente aquela mesma desconfiança em que teve origem a disposição que proibia aos juízes o poder de interpretá-las, e que, através do instituto do référé législatif, procurava retirar dos juízes o poder de julgar para transferi-lo aos órgãos legislativos (50).
Isto indica que mesmo a cassação pós-revolucionária tinha um propósito francamente autoritário, pois pressupunha não a independência da função jurisdicional, e sim a sua estrita subordinação ao Poder Legislativo. E revela uma das singulares características da feição que a nossa tradição jurídico-política atribuiu ao princípio da separação dos poderes: o soberano poder do povo não se manifesta em qualquer medida pelo Poder Judiciário, mas exclusivamente através da atividade legislativa, à qual os juízes devem subordinar-se passivamente aplicando a lei, manifestação da vontade geral. Ou seja, não se concebe a submissão dos poderes estatais à soberania popular, mas a submissão dos demais ao poder soberano do legislador, a quem o povo incumbe a função de representá-lo com exclusividade. Por isso costumamos dizer que o juiz não tem legitimidade democrática, razão pela qual não poderia exercer nenhuma função normativamente constitutiva ou conformadora da ordem jurídica nacional. Tanto é assim que o Tribunal de Cassation nasce como órgão anexo ao legislativo com a função de vigiar, como referiu Calamandrei, a atividade dos juízes. Dada a sobrevivência desta ideologia de fundo, imagina-se que a posteriormente nomeada Cour de Cassation, mesmo tendo assumido função mais propriamente jurisdicional, cumpre o papel de "adestramento científico" das instâncias ordinárias (51), controlando as premissas normativas do raciocínio prático-jurídico com a pretensão de garantir a rigorosa aplicação da lei no seu sentido abstratamente considerado.
Contudo, apesar do genético propósito autoritário da cassation, as decisões proferidas pelo antigo Tribunal se abstinham de decidir a causa em questão, a fim de não usurpar funções judiciais que não lhe competiam. As decisões proferidas em sede de cassação tinham caráter puramente negativo, pois não determinavam como deveria ser julgada a causa pelo juiz de reenvio, que mantinha liberdade para fazê-lo conforme o seu convencimento. Conseqüência lógica, observa Calamandrei, do caráter não judicial deste órgão de controle, cujo influxo positivo sobre o exercício da jurisdição apareceu como um limitação externa à função judicial e, por conseguinte, como uma violação do princípio da separação dos poderes, de que foram os revolucionários rígidos custódios (52).
Disto tudo se infere o seguinte: a cassação assumiu o autoritário propósito de controle da estrita submissão dos juízes ao soberano poder legislativo, todavia sem decidir em lugar deles os casos concretos no contexto dos quais se proferiam as decisões cassadas, pois se imaginava que àquele controle bastava a reprovação das equivocadas premissas normativas abstratamente consideradas, com a conseqüente cassação das decisões que as considerassem, e que além disso o controle positivo seria inadmissível pois implicaria uma indevida interferência do legislativo na função judicial. Quanto ao que nos importa, é possível concluir que o controle das premissas normativas de que partiam os juízes tinha um propósito nitidamente autoritário — pois rejeitava que ao Judiciário coubesse assumir com independência a função de revelar o direito numa das suas particulares manifestações —, mas que todavia este propósito não se realizou plenamente, pois, sem assumir o controle positivo da jurisprudência, o Tribunal, vinculado ao legislativo, em verdade manteve a cargo dos juízes a tarefa de determinar em concreto o sentido prático-normativo dos critérios de julgamento, dado que o controle das premissas é essencialmente incapaz de impedi-lo, como vimos anteriormente.
E mesmo quando a Cour de Cassation assumiu o controle positivo da jurisprudência, a realização daquele propósito foi obstada, fundamentalmente por dois motivos: a) já se havia transformado em órgão jurisdicional (53) e deixado de ser órgão de controle político, pelo legislativo, da atividade dos juízes; e b) mesmo supondo possível garantir a uniformidade da jurisprudência pela estrita observância da lei no seu sentido abstrato, o sistema da cassation permitiu que os juízes se mantivessem independentes, pois aquela suposição estava equivocada e as decisões proferidas pela Cour não são juridicamente obrigatórias e têm valor meramente persuasivo e exemplar (54). Em suma, o controle das premissas do raciocínio prático-jurídico foi assumido com o autoritário propósito de estabelecer por antecipação o conteúdo das decisões judiciais, de modo que mesmo o sentido prático-concretamente-normativo do direito não fosse estabelecido com independência pelos juízes, mas este propósito não teve êxito porque não dispôs de mecanismos de vinculação suficientes e supôs uma metodologia incompatível com a natureza do direito e da sua realização concreta.
Eis precisamente, pois, o que atualmente se pretende no Brasil: estabelecer mecanismos de vinculação suficientes, partindo da mesma equivocada compreensão do raciocínio prático-jurídico, de modo a realizar finalmente aquele autoritário propósito de eliminar a independência judicial submetendo os juízes à observância de critérios normativos gerais dos quais deduziriam as soluções antecipadamente estabelecidas em abstrato para os casos futuros. Com uma peculiaridade agravante: a proposta de vinculação às súmulas pretende submeter as instâncias ordinárias à observância estrita de preceitos normativos gerais emitidos não pelo Legislativo — a quem deve competir com exclusividade esta forma de manifestação do direito —, mas pelo próprio Judiciário — a quem deve competir apenas a manifestação prático-concretamente-normativa do direito. Ou seja, com a proposta o Legislativo seria usurpado e o Judiciário pervertido nas suas exclusivas atribuições institucionais.
Considerando que no Brasil é praticamente inexistente uma autêntica cultura da independência judicial, algumas observações são ainda necessárias quanto ao sentido deste princípio, pois só compreendendo-o plenamente é possível perceber o acerto das parciais conclusões até aqui enunciadas.
O mais trivial sentido do princípio da independência judicial postula a autonomia do Judiciário perante os outros poderes. Esta autonomia de forma alguma pressupõe qualquer espécie de insubmissão à lei, mas impõe que o Judiciário assuma com absoluta independência a função de revelar, no contexto de problemas prático-jurídicos concretos, as exigências do direito — e assim da lei, enquanto particular expressão sua —, para os casos em que estes problemas se apresentam. O primeiro e mais evidente desdobramento do princípio da independência judicial consiste, portanto, na interdição aos demais Poderes de qualquer atividade tendente a interferir nesta tarefa de revelar as exigências do direito, em geral, e da lei, particularmente, para cada caso concreto cuja apreciação seja levada ao Judiciário. Ao decidir um caso os juízes se sujeitam apenas ao direito, e às suas particulares manifestações legais, que assumem nestes termos o papel de critérios únicos da sua atividade. Isto exclui a legitimidade de quaisquer instruções e do estabelecimento de critérios e prescrições normativos que se pretendam impor além daquelas que a lei, já por si, impõe em termos gerais (55).
Este primeiro sentido do princípio poderia aparentemente legitimar a instituição das súmulas vinculantes, pois o Judiciário, como um todo, continuaria exclusivamente submetido ao direito e às suas manifestações legislativas. Todavia, o princípio exige a exclusiva submissão de cada juiz ao direito e àquelas manifestações (56). Postula, já num sentido axiológico-jurídico material, a exclusão da interferência de gerais critérios formais, juridicamente vinculantes na aplicação do direito, para além da lei; e a liberdade de cada tribunal ou juiz na concreta decisão jurídica ou na normativa apreciação dos casos concretos que sejam chamados a julgar (57). Neste sentido axiológico-jurídico material a independência é garantia, condição e meio indispensáveis para a realização do direito e da justiça (58).
Considerado nestes termos, o princípio da independência é inconciliável com a imposição de diretivas e instruções decisórias vinculantes para além da lei, mesmo que esta imposição se dê desde dentro do próprio Judiciário. O exclusivo compromisso dos tribunais e de cada magistrado com o direito e a justiça pressupõe a divergência de soluções concretas dada a diferenciação concreta dos casos — exigência de igualdade material perante a lei —, assim como a admissão de divergências na busca das melhores soluções para casos similares, até mesmo porque o contributo de diversos pontos de vista é indispensável, conforme ensina Castanheira Neves, à evolução seletiva que acaba por permitir encontrar aquelas soluções, que virão decerto a prevalecer e que, de outro modo, possivelmente não se alcançariam (59). A este respeito, percebeu o notável catedrático que os assentos portugueses, "como critérios gerais-abstratos para uma fixada e uniforme jurisprudência, não são sensíveis à validade daquela diferenciação e opõem-se diretamente ao interesse desta divergência". Para enfim concluir: "se é uma coisa e outra — a diferenciação concreta e a divergência normativa, fomentadora de uma experimentação selectiva — o que os assentos visam impedir, é agora evidente como são eles incompatíveis — claro está, se conseguissem o que pretendem — com uma independente procura e realização jurisprudencial do direito" (60). Que isto valeria para as nossas súmulas, tornando-se vinculantes, é algo que a estas alturas dispensa comprovação.
Por fim, cumpre considerar o seguinte alerta: não é "só cerceando os seus poderes ou intervindo directamente nela que a função judicial poderá ver afectada a sua verdadeira independência e autonomia, mas também desvirtuando-a funcionalmente..." (61). Considerando os assentos e a sua ainda incerta versão brasileira instruções hierárquicas dirigidas pelas instâncias extraordinárias às ordinárias, comprometer-se-ia a independência dos juízes, pois os tribunais superiores assumiriam uma função administrativo-burocrática que ao invés de afirmar um princípio de independência implicaria, ao contrário, dependência e obediência. Considerando-os, todavia, verdadeiras normas jurídicas de sentido abstrato e aplicação geral, comprometer-se-ia a independência funcional da jurisdição, pois esta passaria a assumir uma tarefa que não é a sua, para a qual não tem legitimidade e não está institucionalmente destinada. Nisto reside, fundamentalmente, o caráter autoritário da proposta de vinculação às súmulas de jurisprudência. Pois implica a usurpação das funções do legislativo e a supressão da liberdade jurídico-decisória concreta, reunindo num único órgão o poder de estabelecer critérios normativos abstratos geralmente aplicáveis e de julgar casos particulares de acordo com estes mesmos critérios.
Apesar dos diversos e reiterados avisos a respeito, não percebemos ainda que não precisamos temer os juízes, e sim este tipo de concentração de poder. Dado o total desprezo que atualmente parece haver por estes avisos que nos vem de um passado recente, não deixa de ser oportuno relembrar um deles, de Alexander Hamilton no The Federalist nº 78: "liberty can have nothing to fear from the judiciary alone, but would have every thing to fear from its union with either of the other departments".