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Da uniformização jurídico-decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência.

Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica

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10/05/2005 às 00:00
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6. Conclusão.

            No século VI da Era Cristã, Justiniano, imperador romano do oriente, compilou textos de alguns notáveis juristas clássicos e outorgou-lhes validade legal, proibindo fossem sequer comentados. A compilação visava sistematizar o direito romano para eliminar conflitos e dúvidas, e assim vincular os juristas aos escritos que na concepção do Imperador expressavam o verdadeiro espírito do direito romano (62). Na França pós-revolucionária, o regime napoleônico, nitidamente autoritário, assumiu o controle das escolas de Direito e sobre elas exerceu pressões políticas de modo a impor o método exegético de estrita observância ao Código Civil (63). Assim como Justiniano, Napoleão almejava impedir que as inevitáveis interpretações desvirtuassem o sentido dos preceitos do seu Código. Estas pressões de caráter autoritário foram reforçadas pelo advento da Escola da Exegese, que professava uma concepção legalista e racionalista segundo a qual a tarefa dos juízes seria a de aplicar mecanicamente a lei, sem nem mesmo interpretá-la.

            Para quem conhece, mesmo superficialmente, a história destas tentativas de controle e de uniformização da jurisprudência, fica patente a ingenuidade daqueles que crêem nas chances de êxito da retomada da empreitada. Mas como no Brasil de hoje recusamos procurar na história orientações seguras para nossos projetos futuros, trabalhos como este tornam-se lamentavelmente necessários. Nem que seja para lembrar dos históricos fracassos que prenunciam o iminente fracasso de alguns dos nossos atuais projetos.

            Menos evidente pode parecer a impossibilidade de conciliar a democracia e a proposta de vinculação das decisões judiciais por recurso a mecanismos de controle burocrático. Mas é exatamente do mesmo grau a ingenuidade de quem não percebe o desprezo pela democracia invariavelmente presente no propósito de restringir a independência judicial.

            Na obra de referência para o desenvolvimento das linhas anteriores, A. Castanheira Neves alertou para a ausência, na generalidade dos regimes democráticos pertencentes à nossa tradição jurídica, de mecanismos de vinculação da jurisprudência que se pudessem identificar com os assentos. A propósito, lembrou que no totalitário regime da extinta URSS, os Supremos Tribunais exerciam um poder de controle centralizado impondo diretivas às jurisdições subordinadas. Algo nada estranho, referiu, "num sistema jurídico que não se propõe traduzir a axiologia e a institucionalidade do Estado-de-direito" (64).

            É de se duvidar, por óbvio, que os atuais integrantes da cúpula do Executivo desconheçam a organização política dos regimes socialistas, e que ignorem a função neles desempenhada pelos órgãos superiores de jurisdição. Não surpreende, assim, que o Executivo insista na adoção da súmula vinculante para garantir a estrita e incondicional submissão dos órgãos jurisdicionais às decisões do Supremo Tribunal Federal. Afinal, esta é a única Corte brasileira integralmente composta por magistrados indicados pelo Presidente da República. Mesmo concedendo que este mecanismo de composição seja adequado, a facilidade com que admitimos o propósito de controle burocrático das decisões judiciais escancara a fragilidade da democracia brasileira e denuncia a vocação autoritária de quem, consciente das objeções de que é passível, defende a súmula vinculante.


7. Bibliografia:

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            — Justiça de quem? Qual racionalidade? Tradução de Marcelo Pimenta Marques. São Paulo : Loyola, 1991.

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Notas

            1

Antonio Castanheira Neves, O instituto dos ‘assentos’ e a função jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, Coimbra Editora, 1983.

            2

Idem, ibidem, pp. 02-04.

            3

Idem, ibidem, p. 230.

            4

Idem, ibidem, pp. 231/232.

            5

Idem, ibidem, p. 232

            6

Idem, ibidem, pp. 240/241. Corresponde ao tipo de unidade sistemática que vai implícita na compreensão normativístico-conceitual do direito-lei, correspondente no plano dogmático-doutrinal às intenções político-jurídicas do legalismo e do seu prescrito sistema de legalidade, sobretudo codificada (Castanheira Neves, op. cit., pp. 241/242)

            7

Castanheira Neves, op. cit., pp. 244/245.

            8

Idem, ibidem, pp. 245/246.

            9

Este esquema desconsidera, portanto, a problematicidade das próprias premissas, inexoravelmente característica do raciocínio prático-jurídico, que assim não pode ser representado na forma de um raciocínio lógico-dedutivo, mormente porque a contingência e a variabilidade das circunstâncias não admite a passagem da norma geral ao juízo prático, como veremos, sem a mediação de uma atividade prudencial que as considere.

            10

Castanheira Neves, op. cit., p. 269.

            11

Idem, ibidem, p. 227.

            12

António Manuel Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica europeia, 2ª ed., Portugal, Publicações Europa-América, 1998, pp. 156-158.

            13

Idem, ibidem, p. 111.

            14

A respeito deste folclore, vide Merrymann, "Lo ´´stile italiano´´: l´´interpretazione", tradução de Diego Corapi e Giuseppe Marziale, in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, 1968, pp. 377 a 383.

            15

Vide, a respeito, Merrymann, "Lo ´´stile italiano´´: la dottrina", tradução de Diego Corapi e Giuseppe Marziale, in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, 1966.

            16

"Although the ideal of certainty has been used for a variety of purposes, its most important application is a reflection of the distrust of judges. Judges are prohibited from making law in the interest of certainty. Legislation should be clear, complete, and coherent in the interest of certainty. The process of interpretation and application of the law should be as automatic as possible, again in the interest of certainty. In this sense the emphasis on certainty is an expression of a desire to make the law judge-proof" (Merryman, The civil law tradition, 2ª ed., Stanford, Stanford University Press, 1985, p. 48).

            17

Piero Calamandrei, Casación civil, tradução de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín, Buenos Aires, EJEA, 1959, pp. 13/14.

            18

Idem, ibidem, pp. 14/15.

            19

"(...) the work of man is achieved only in accordance with practical wisdom as well as with moral virtue; for virtue makes us aim the right mark, and practical wisdom makes us take the right means" (Aristóteles, The nicomachean ethics, 1144a, tradução de David Ross, Oxford, Oxford University Press, 1998, p. 155).

            20

Carlos Ignacio Massini-Correas, La prudencia jurídica, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1983, p. 46.

            21

Sto. Tomás de Aquino, apud Massini-Correas, op. cit., p. 174.

            22

Pierre Aubenque, La prudencia en Aristóteles, tradução de Mª. José Torres Gómez-Pallete, Barcelona, Crítica, 1999, pp. 54-56.

            23

Massini-Correas, La prudência..., op. cit., p. 29.

            24

Aubenque, op. cit., pp. 127/128.

            25

Theodor Viehweg, Tópica y jurisprudencia, tradução de Luis Díez-Picazo, Madrid, Taurus, 1986, p. 55.

            26

Idem, ibidem, p. 61.

            27

Idem, ibidem, p. 63.

            28

Merrymann, "Lo ´´stile italiano´´: l´´interpretazione", op. cit., pp. 384/385.

            29

Castanheira Neves, op. cit., p. 212.

            30

Idem, ibidem, pp. 352/353.

            31

Idem, ibidem, p. 272.

            32

Idem, ibidem, pp. 218/219.

            33

Idem, ibidem, pp. 38 e 219 a 222.

            34

Idem, ibidem, p. 220.

            35

Idem, ibidem, p. 249.

            36

Idem, ibidem, pp. 464/465.

            37

MacIntyre, "La privatización del bien", in El iusnaturalismo actual, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1996, p. 215. Isto deriva do postulado metafísico de que o bem de uma coisa é o fim a que ela naturalmente tende, o seu telos; por sua vez, o fim a que ela tende, o seu telos, é a realização da sua essência (cfe. Giovanni Reale, Introduzione a Aristotele, 12ª ed., Laterza, 2002, p. 46).

            38

Segundo esta tradição de pensamento, o homem deve conscientemente dirigir-se aos bens, que são os fins das suas inclinações naturais (McInerny, "El conocimiento de la ley natural", in El iusnaturalismo actual, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1996, p. 244). Conhecendo estas inclinações podemos discernir os bens que são a dimensão da perfeição humana, e assim compreender o conteúdo dos preceitos éticos fundamentais que ordenam o homem no sentido dessa perfeição, ou seja, os preceitos da lei natural (Massini-Correas, El derecho natural y sus dimensiones actuales, Buenos Aires, Ábaco, 1999, pp. 187/188).

            39

MacIntyre, "La privatización...", op. cit., pp. 216/217.

            40

Idem, ibidem, pp. 217/218.

            41

Idem, ibidem, p. 224.

            42

Idem, ibidem, pp. 222/223.

            43

MacIntyre, After virtue, 2ª ed., Notre Dame, University of Notre Dame Press, 2003, pp. 11/12.

            44

MacIntyre, Justiça de quem? Qual racionalidade?, tradução de Marcelo Pimenta Marques, São Paulo, Loyola, 1991, p. 363.

            45

Idem, ibidem, pp. 368/369.

            46

Num dos seus notáveis ensaios, Luis Fernando Barzotto chamou a atenção para o fator de longa estabilidade da antiga jurisprudência romana: "Com efeito — constatou —, deve haver um vínculo entre o tratamento dado a casos semelhantes, sob pena de a insegurança jurídica se alastrar. A jurisprudência romana, mesmo sem transcender o horizonte do caso concreto, encontrou no respeito à tradição esse vínculo que dá coerência e organicidade às soluções particulares" ("Prudência e jurisprudência – Uma reflexão epistemológica sobre a jurisprudentia romana a partir de Aristóteles", in Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado, 1998 – 1999, São Leopoldo, UNISINOS, 1999, p. 185). Este mesmo tipo de vínculo tradicional, baseado na autoridade dos antepassados, tornou possível o coerente desenvolvimento casuístico da common law, que ao longo dos séculos não sofreu rupturas. Já na Europa continental, o jusracionalismo moderno ergueu-se contra os costumes e as autoridades que não se encontrassem em consonância com a razão, libertando a ciência jurídica da sua submissão de princípio às fontes romanas e às antigas autoridades (cfe. Wieacker, História do direito privado moderno, tradução de A. M. Botelho Hespanha, 2ª ed, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1993, p. 309). O que talvez explique por que a nossa é uma cultura jurídica de ruptura, ao contrário da anglo-saxã.

            47

Ovídio A. Baptista da Silva, "A função dos tribunais superiores", in Sentença e coisa julgada (ensaios e pareceres), 4ª. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2003.

            48

Calamandrei, op. cit., pp. 29 a 32.

            49

Thomas Hobbes, Leviatã, tradução de João Paulo Monteiro, Maria Beatriz N. da Silva e Cláudia Berliner, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 236.

            50

Calamandrei, op. cit., pp. 32/33.

            51

A expressão é de Calamandrei, op. cit., p. 19.

            52

Calamandrei, op. cit., p. 34.

            53

Idem, ibidem, p. 35.

            54

Idem, ibidem, p. 20.

            55

Trata-se do sentido político-jurídico tradicional do princípio da independência judicial (cfe. Castanheira Neves, op. cit., pp. 102/103).

            56

Nestes termos, serve de exemplo aos magistrados de nossos tribunais superiores a defesa da independência de cada juiz, no exercício das suas faculdades, pela Juíza Sandra Day O’Connor, da Suprema Corte dos Estados Unidos: uma judicatura independente — discursou a magistrada — requer a independência de cada juiz no exercício das suas faculdades ("La importancia de la independencia judicial", disponível em http://usinfo.state.gov/journals/itdhr/0304/ijds/oconnor.htm).

            57

Castanheira Neves, op. cit., p. 110.

            58

Idem, ibidem, pp. 104/105.

            59

Idem, ibidem, pp. 116/117.

            60

Idem, ibidem, pp. 117.

            61

Idem, ibidem, p. 16/17.

            62

Merryman, The civil law tradition, op. cit., p. 07.

            63

Norberto Bobbio, O positivismo jurídico, tradução de Márcio Pugliese, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues, São Paulo, Ícone, 1995, p. 81.

            64

Castanheira Neves, op. cit., pp. 07/08.
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Sobre o autor
Fábio Cardoso Machado

mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), professor de Direito na UNISINOS e na PUC/RS, advogado sócio de Machado, Motta & Carvalho dos Santos Advogados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Fábio Cardoso. Da uniformização jurídico-decisória por vinculação às súmulas de jurisprudência.: Objeções de ordem metodológica, sócio-cultural e político-jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 674, 10 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6686. Acesso em: 23 dez. 2024.

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