INTRODUÇÃO
O Direito Penal é um conjunto de normas que qualificam certos comportamentos humanos como infrações penais (crime ou contravenção), define os seus agentes e fixa as sanções: pena ou medida de segurança a serem-lhes aplicadas (CUNHA, 2014).
Ao analisar a ciência jurídica do Direito Penal depreende-se que ela não se limita apenas a definir cominações penais em decorrência da execução de condutas proibidas pelo Estado, tratando também da necessidade do estudo dos comportamentos sociais que levaram a prática dos crimes.
A Criminologia é uma ciência empírica que se propõe a investigar a pessoa, a situação e a forma como ocorre a conduta criminosa, ou seja, estudar o conjunto de fatores que corroboram para a ocorrência do delito. Conforme Nestor Sampaio (2012) etimologicamente, criminologia vem do latim crimino (crime) e do grego logos (estudo, tratado), significando o “estudo do crime”.
Nesse contexto, o Estado, visando resguardar o interesse público, apresenta formas de controle e estatísticas criminais voltadas para garantia da segurança pública, sendo um desses mecanismos definidos pela Lei nº 12.681, que instituiu o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas (SINESP) que torna obrigatória a publicação da taxa de elucidação de crimes de forma padronizada.
Esse sistema foi criado com a finalidade de armazenar, tratar e integrar dados e informações para auxiliar na formulação, implementação, execução, acompanhamento e avaliação das políticas relacionadas, dentre outros, com segurança pública.
No entanto, o sociólogo Edwin Sutherland (1940) criou, a partir da sua Teoria da Associação Diferencial, as chamadas Cifras Criminais que corresponde à parcela de crimes executados por determinados tipos de criminosos que não entram nas estatísticas divulgadas pelo governo por não chegarem ao conhecimento das autoridades policiais ou deixam de seguir os trâmites necessários para a responsabilização dos autores dos delitos.
Com isso, fica evidente que os dados oficiais projetados pelo governo não podem ser considerados absolutos em razão da deficiência das informações prestadas que acabam por demonstrar que a segurança pública se encontra em um patamar que de fato não é o correto.
Mediante o exposto, esse artigo se propõe a fazer o estudo das cifras criminais e da sua influência nas estatísticas de segurança pública do país. Para tanto, serão analisadas as legislações que regulam dos instrumentos de controle dos dados estatísticos, as teorias das Cifras Criminais e Associação Diferencial e a questão sociológica que se encontra por trás do cometimento dos delitos.
Será utilizado o método dialético em razão da necessidade de integração da temática junto a um contexto social. Ademais, serão analisadas bibliografias relacionadas ao tema e documentos de órgãos públicos, com fulcro de confirmar os objetivos propostos.
Esse tema tem relevância por se tratar de questões sociais e de segurança pública de extrema importância para a sociedade.
Desta forma, a presente pesquisa apresenta a seguinte estruturação: além desta introdução, apresenta na seguinte seção a metodologia utilizada na pesquisa, bem como os objetivos desta, tanto o geral quanto os específicos. Na seção referencial teórico, faz uma demonstração sucinta dos principais autores que possuem trabalhos nesta temática. Por fim, nos resultados e discussões faz-se uma exposição das principais implicações da seara ora estudada.
ANÁLISE METAJURÍDICA DO CRIME
Ao fazer o estudo da temática é fundamental compreender a questão metajurídica que se encontra por trás do assunto debatido.
Nesse contexto, a referida análise, pouco convencional no mundo jurídico, se perfaz em razão da impossibilidade de entender o crime apenas com base no estudo das normas legais, sendo imprescindível uma investigação que se debruce acerca das questões sociológicas que buscam captar todo o cenário que levou o agente delituoso a cometer a infração penal, visto que essa ciência busca responder os questionamentos do homem. Sobre isso Veras (2006) dispõe:
As primeiras manifestações da sociologia criminal se deram já na metade do século XIX, representadas principalmente pelos trabalhos de Alexandre Lacassagne (1843/1924), Gabriel Tarde (1843/1904) e Émile Durkheim (1858/1917), muito embora sua expansão tenha sido contida pelo predomínio da Escola positiva nesse período. A sociologia criminal entendia não estar no sujeito, mas na sociedade, a causa da criminalidade.
Émile Durkheim (2007) concretizou a base da ciência criminal, entendia a sociedade como um organismo vivo, onde a vida social decorria da sociedade, que atuava sobre o indivíduo condicionando e definindo sua forma de agir, suas concepções, modos de ser e, ainda, padronizando pensamentos e comportamentos.
Para tanto, Durkhein (2007) fazia uso dos “fatos sociais” ou fenômenos sociais como objeto de estudo, que corresponderia à consciência coletiva formada pela sociedade que deveria ser analisada sempre conforme suas características exteriores, coercitivas e objetivas. O sociólogo explica em sua obra Regras do Método Sociológico (P. 13):
É um fato social toda a maneira de agir, fixa ou não, capaz de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, ou a ainda; que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente da suas manifestações individuais.
Dessa forma, a sociedade seria formada por valores morais definidos e comuns a todos os membros e o crime configuraria como a ação que ofenderia esses padrões sociais impostos pela vida em sociedade.
Porém, para o sociólogo o crime é considerado um fator de funcionalidade de toda e qualquer sociedade, ou seja, é compreendido como um fato normal em razão de se repetir em todas as sociedades trazendo distinções apenas quanto à forma. Apenas passaria a ser considerado uma patologia se sua ocorrência atingisse um índice muito elevado, hipótese que Durkhein nunca desenvolveu.
No estudo de Durkhein (2007), o crime teria uma tendência a aumentar quando se trata de sociedades mais complexas, onde há a chamada solidariedade orgânica, que traz uma maior especialização dos indivíduos e, consequentemente, uma maior integração e dependência entre eles.
Portanto, para Durkhein (2007) o crime era uma como condição de saúde pública, sendo ele normal nas sociedades, não patológico.
Posteriormente, no âmbito da ciência da criminologia surge a teoria ecológica, em Chicago, que foi a primeira hipótese essencialmente sociológica que afirmava haver uma conexão direta entre a criminalidade e o fenômeno urbano. Essa teoria foi desenvolvida com base no desenvolvimento industrial e povoamento urbano dos Estados Unidos, que culminou um significativo aumento do índice de criminalidade (VERAS, P. 34, 2006).
Atualmente, essa teoria ecológica ainda é aplicada no ramo da criminologia, trazendo novas particularidades decorrentes das mudanças sociais, que complementam o estudo (VERAS, 2006).
TEORIA DA ASSOCIAÇÃO DIFERENCIAL E AS CIFRAS CRIMINAIS
O criador e propulsor da Teoria da Associação Criminal foi Edwin Hardin Sutherland (1940) que inovou o pensamento no ramo da criminologia e da sociologia ao estabelecer a hipótese de que o indivíduo que comete um delito está diretamente vinculado ao processo de aprendizagem de comportamentos do grupo ao qual faz parte, ou seja, o comportamento criminoso seria aprendido e não herdado.
Sobre isso, Pádua (2015) dispõe:
Teoria da Associação Diferencial nada mais é que o indivíduo torna-se participante de um grupo no qual estará disposto a aprender praticas delituosas e em contra-partida o grupo estará disposto a ensiná-lo seja com conhecimento especializado, informação privilegiada ou certas habilidades que as pessoas comuns não as teria, com fim claro de praticar tal delito em proveito próprio ou alheio.
Nessa mesma época, Sutherland divulgou a teoria das Cifras Criminais com a publicação do artigo White Collar Criminality (crimes do colarinho branco), em 1940. A teoria tinha base a ideia de que os percentuais de crimes divulgados pelo Estado eram superficiais e falsos, não podendo ser tomado como verdades absolutas (VERAS, 2006).
Sutherland trouxe como principal exemplo os Crimes do Colarinho Branco que correspondiam aos delitos cometidos por agentes de classes mais elevadas que possuíam as mesmas características dos crimes de classes mais baixas, contudo, não recebiam o mesmo tratamento, muitas vezes nem resultando em condenações penais (VERAS, 2006).
Rayanna Veras (2006) explica que os crimes praticados por membros de classes superiores não resultam em ações oficiais, ou se restringem a reparações de danos em juízos civis, ou ainda, são sancionados na esfera administrativa com advertências, perda de licenças e em alguns casos com multas.
Doutrinadores afirmam que uma das razões do desconhecimento dos delitos se dá pela inércia do ofendido em delatar os casos para que se proceda à persecução penal, ou seja, considera-se que a vítima tem participação direta nas falhas das estatísticas dos órgãos governamentais.
As Cifras Criminais ainda hoje são utilizadas pela criminologia e direito penal, tendo sido desenvolvidas para incluir diversos crimes hoje existentes, onde cada tipo penal corresponde a uma cor específica que define a circunstância, a vítima e a autoria do delito.
A configuração de cifras criminais resultou numa nova visão acerca das taxas de crimes divulgadas pelo governo, trazendo um aspecto de incerteza em relação à segurança pública do país.
Nesse sentido, a teoria das Cifras Criminais busca evidenciar como os percentuais divulgados pelo governo não são efetivamente compatíveis com a realidade dos casos que ocorrem por não conseguirem alcançar todos os atos ilícitos práticos (SUTHERLAND, 1940; VERAS, 2006).
ESPÉCIES DE CIFRAS CRIMINAIS
As Cifras Criminais evidenciam a falha na segurança pública quando à divulgação de percentuais de crime ocorridos. Nesse sentido, é fundamental fazer a distinção entre a criminalidade real, que corresponde aos crimes que de fato ocorrem, da criminalidade revelada, aquela que equivale aos ilícitos que são encaminhados ao governo para que se proceda ao julgamento e, por fim, das cifras criminais, que são os crimes que não chegam ao conhecimento das autoridades por diversos motivos (VERAS, 2006).
Vamos então elucidar quatro espécies de cifras que entendemos ser as mais relevantes, quais sejam: negra, cinza, amarela e dourada.
A Cifra Negra está diretamente relacionada a crimes que não são registrados junto às autoridades policiais e que por isso não integram as estatísticas criminais, sendo os autores do delito isentos de punição.
Gustavo et al (2015 apud RAMIREZ; MALARÉE, 2004, p 37) esclarece:
Nem todo delito é denunciado. Nem todos os delitos denunciados são registrados como tais pelo órgão ante o qual foi feita a denúncia. Nem todos os delitos denunciados e registrados pelo órgão que recebeu a denúncia são objeto de investigação e nem todos os investigados acabam sendo condenados. Deste modo, de acordo com o nível do órgão a partir do qual se elaborou a estatística, mais alta será a cifra negra.
Ao tratar das cifras negras é importante levar em consideração algumas situações: as delegacias atuam mediante notitia criminis, ou seja, para que o órgão policial tome conhecimento do ilícito e inicie a investigação é necessário, em regra, que o ofendido proceda a denúncia de forma espontânea ou provocada; ademais, após a denúncia é imprescindível a ação policial por meio das investigações, sendo o contrário uma das causas da existência das cifras negras e da necessidade de responsabilização dos órgãos de segurança pública em razão de permitir, indiretamente, a impunidade dos infratores; há também de se falar nas questões procedimentais onde, muitas vezes, as autoridades policiais acabam por não dar prosseguimento à denúncia, arquivando o processo sem iniciar ou concluir a investigação; é possível ainda que o processo seja estancado na fase final, diretamente no judiciário (VERAS, 2006).
Nesse sentido, depreende-se que as cifras negras são as que tem maior peso na omissão de crimes constantes do percentual divulgados pelo governo, contudo não são os únicos.
Analisando a Cifra Cinza percebemos que se trata de crimes que foram registrados junto aos órgãos policiais, mas que não geram processo nem ação penal em decorrência da sua resolução na própria delegacia, ou por desistência da vítima em continuar a acusação (PÁDUA, 2015).
Por sua vez, a cifra amarela corresponde aqueles crimes praticados pelo Estado, ou por quem lhe faça as vezes, onde a vítima não busca os órgãos policiais para denuncia por receito de represálias, sendo um comum exemplo o abuso de autoridade, definido pela Lei 4898 que regula, dentre outros assuntos, o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade (PÁDUA, 2015).
Por fim, as Cifras Douradas, também conhecida como macrocriminalidade no direito penal, são relacionadas aos crimes de colarinho branco, tendo como autores organizações criminosas pertencentes ao alto escalão. São crimes financeiros, contra o patrimônio público ou privado que, em regra, não há uso de violência para sua execução (REIS, 2015).
Neste sentido, conforme Reis (2015):
A macrocriminalidade tem seus comandantes travestidos de grandes empresários e do auto escalão do Estado fazem uso de atividades lícitas, buscam sempre o lucro, multiplicar suas fortunas e contam com a impunidade que faz proliferar suas atividades ilícitas, e mesmo quando investigados e denunciados pagam os melhores advogados, protelam os processos, buscam a prescrição e todos os outros meios para não pagarem por seus crimes.
Os crimes cometidos na espécie cifra dourada promovem impunidade dos autores do delito em razão dos mesmos possuírem recursos financeiros, além da posição social, que facilitam a lentidão e burocratização dos processos que, por consequência, acabam sem resolução.
CRÍTICA À LEI 12.681 DE 2012
A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 144 que é de responsabilidade do Estado a prestação do serviço de segurança pública, que será realizado através de órgãos específicos. Vejamos:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. (BRASIL, 1988(
Dentre os diversos mecanismos que promovem a segurança pública pelo Estado está a Lei n. 12.681, de 04 de julho de 2012, promulgada, dentre outras funções, para instituir o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas – SINESP. Essa legislação teve singulares alterações por meio da Lei 13.604/18, trazendo requisitos mais particularizados quando se trata de percentuais de crimes ocorridos.
A legislação impõe a divulgação dos percentuais de ocorrências criminais registradas e respectivas comunicações legais, bem como das taxas de elucidação de crimes ocorridos no âmbito dos Estados e Distrito Federal de forma padronizada e categorizada, uma vez por ano, havendo ainda a obrigatoriedade da divulgação das informações na internet.
O art. 6º, §3º da lei determina que os integrantes do SINESP deverão repassar compulsoriamente os dados sobre homicídios reportados e taxas de elucidação de crimes, que também deverão ser disponibilizados na internet, com ampla transparência.
Conforme o art. 7 da lei 12.681, o órgão poderá ainda disponibilizar sistema padronizado, informatizado e seguro que permita o intercâmbio de informações entre os integrantes do SINESP, auditar periodicamente a infraestrutura tecnológica e a segurança dos processos, redes e sistemas e estabelecer cronograma para adequação dos integrantes do SINESP às normas e procedimentos de funcionamento do Sistema.
A lei objetiva a captação de ocorrências criminais para planejamento de políticas públicas voltadas para o auxílio na formulação, implementação, execução, acompanhamento e avaliação das políticas relacionadas, dentre outros, à segurança pública.
Entretanto, como já foi visto no decorrer do artigo, as estatísticas geradas pelos órgãos públicos relacionados ao conhecimento, à investigação, à tutela e a condenação de crimes não são de fato reais em razão do instituto das cifras criminais que impossibilitam a obtenção de um percentual real da ocorrência dos delitos por não conhecimento do Estado, pela ausência de tramites necessária para responsabilização do autor do crime, pelo não julgamento do processo, enfim, por uma diversidade de motivos, que podem ser exprimidos nas diversas cores das cifras criminais.
Nesse sentido, torna-se evidente que o SINESP não pode ser aceito como verdade absoluta, visto que os dados disponibilizados pelos Estados e Distrito Federal estão incompletos.