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A realidade do cárcere no Brasil em números

23/07/2018 às 13:00
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As condições atuais do cárcere fazem com que a partir da ociosidade em que vivem os detentos, estabeleça-se o que se convencionou chamar de subcultura carcerária, um sistema de regras próprias no qual não se respeita a vida e nem a integridade física dos companheiros.

O Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP - apresentou, no dia 18 de junho de 2018, o Projeto Sistema Prisional em Números, com o objetivo de conferir maior visibilidade e transparência aos dados do sistema prisional brasileiro, a partir das visitas ordinárias realizadas pelos membros do Ministério Público de todo o País.[1]

Os dados mostram que a taxa de ocupação dos presídios brasileiros é de 175%, considerado o total de 1.456 estabelecimentos penais no País. Na região Norte, por exemplo, os presídios recebem quase três vezes mais do que podem suportar. Um número que chama atenção é o de estabelecimentos em que houve mortes, tendo como período de referência março de 2017 a fevereiro de 2018. Do total de 1.456 unidades, morreram presidiários em 474 delas. O sistema mostra, ainda, que em 81 estabelecimentos houve registro interno de maus-tratos a presos praticados por servidores e em 436 presídios foi registrada lesão corporal a preso praticada por funcionários.

O levantamento também traz informações sobre os serviços prestados aos presos. Na região Nordeste, por exemplo, mais da metade (58,75%) dos estabelecimentos não dispõe de assistência médica. Por sua vez, em relação à assistência educacional, 44,64% das unidades brasileiras não a oferecem aos internos.

Outras informações que podem ser colhidas no sistema são as referentes à mulher no cárcere. São 399 presas gestantes no país, o que representa 1,18% do total. Por sua vez, o percentual de mulheres realizando trabalho interno é de 26,10%, sendo possível ver também os percentuais relativos aos trabalhos externo, voluntário e remunerado.[2]

Tais dados corroboram os números divulgados em dezembro do ano passado pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN [3]), segundo o qual o Brasil é o terceiro país com mais presos no mundo. De acordo com o levantamento, a população carcerária no ano de 2015 foi de 698.618, e de 726.712 em 2016. A comparação com outras nações só foi feita em 2015. Naquele ano, o Brasil (698,6 mil) ultrapassou a Rússia (646,1 mil) e só ficou abaixo de Estados Unidos (2,14 milhões) e China (1,65 milhão). Logo após o Brasil, vem a Índia, em quinto, com 419,62 mil detentos. O Marrocos tem a menor população carcerária em números absolutos: 79,37 mil.

Ainda segundo o estudo, o número de internos mais do que dobrou em relação a 2005, quando 316,4 mil pessoas estavam presas. Em 1990, começo da série histórica, a quantidade era oito vezes menor do que a de hoje: 90 mil. O Brasil é o terceiro em taxa de ocupação das cadeias (188,2%), atrás apenas de Filipinas (316%) e Peru (230,7%), e o quarto em taxa de aprisionamento por cem mil habitantes. O índice brasileiro, ainda para 2015, é de 342, menor somente do que Estados Unidos, Rússia e Tailândia.

Os estados com maior taxa de ocupação nas prisões são Amazonas, Ceará, Pernambuco, Paraná e Alagoas. O Espírito Santo tem a menor taxa, mas mesmo assim enfrenta superlotação. A pesquisa também mostrou que, a despeito de 53% da população brasileira acima de 18 anos ser negra, e 46% branca, na prisão a estatística é de 64% negros e 35% brancos.[4]

Se divididos por idade, os presos da maior fatia serão os jovens, de 18 a 24 anos: 30%. A seguir, vêm as faixas de 25 a 29 anos, com 25%; 30 a 34 anos, com 19%; e 35 a 45 anos, com os mesmos 19%. Somando-se os dois maiores percentuais: 55% dos detentos brasileiros têm de 18 a 29 anos.

Outra realidade também comprovada pela pesquisa do INFOPEN diz respeito às doenças sexualmente transmissíveis. A incidência do vírus da AIDS é 138 vezes maior do que a constatada na população geral. Em 2015, a proporção nas carceragens da doença foi de 2.189,9 casos para cem mil detentos, enquanto em geral foi de 15,8 para cem mil habitantes. Observa-se que neste aspecto, somente 52% das prisões enviaram dados ao Ministério da Justiça.

Constatou-se também que os três tipos mais comuns de crimes são praticados sem violência, contra o patrimônio e os relacionados com as drogas. De 608.611 crimes tentados ou consumados no ano passado, 271.413 foram contra o patrimônio, 81.393 contra a pessoa, e 172.241 relativos às drogas.

Também ficou comprovado empiricamente que os presos têm quatro vezes mais chances de cometer suicídio do que a população brasileira total. No ano de 2015, foram anotados 5,5 suicídios para cada cem mil habitantes, ao passo que atrás das grades a taxa foi de 22,2 para cada cem mil detentos. Oitenta e oito por cento dos presos não estão envolvidos em qualquer atividade educacional, como ensino escolar e atividades complementares. Já em relação a trabalho, dentro e fora das cadeias, a fatia que fica alheia é de 85%.

Por outro lado, 40% dos presos não foram condenados. De 2000 para cá, o percentual de presos provisórios tem crescido. Os 40% atuais já foram 22% em 2003 e 35% em 2000. Os demais presos, que já foram sentenciados se dividem da seguinte maneira: 38% estão em regime fechado, 15%, em semiaberto e 6%, em regime aberto. A maior fatia identificada pelo levantamento de 2016, em relação ao tempo de pena, foi o de quatro a oito anos, com 31%. Em seguida aparece a pena de oito a 15 anos, com 23%, e de dois a quatro anos, com 16%.[5]

Estes números impressionam, traduzindo friamente uma tragédia nacional. Mostram que o cárcere ainda é concebido como prima ratio para a questão da violência e da segurança pública, quando deveria ser rigorosamente o contrário. É de Hulsman a seguinte afirmação: “Em inúmeros casos, a experiência do processo e do encarceramento produz nos condenados um estigma que pode se tornar profundo. Há estudos científicos, sérios e reiterados, mostrando que as definições legais e a rejeição social por elas produzida podem determinar a percepção do eu como realmente ‘desviante’ e, assim, levar algumas pessoas a viver conforme esta imagem, marginalmente. Vemo-nos de novo diante da constatação de que o sistema penal cria o delinquente, mas, agora, num nível muito mais inquietante e grave: o nível da interiorização pela pessoa atingida do etiquetamento legal e social.”[6]

O próprio sistema carcerário brasileiro revela o quadro social reinante neste País, pois nele estão “guardados” os excluídos de toda ordem, basicamente aqueles indivíduos banidos pelo injusto e selvagem sistema econômico no qual vivemos, cuja faceta mais odiosa é o neoliberalismo. O nosso sistema carcerário está repleto de pobres e isto não é, evidentemente, uma “mera coincidência”. Ao contrário: o sistema penal, repressivo por sua própria natureza, atinge tão-somente a classe pobre da sociedade. Sua eficácia se restringe, infelizmente, a ela. As exceções que conhecemos apenas confirmam a regra.

Isso se dá porque, via de regra, a falta de condições mínimas de vida (como, por exemplo, a falta de comida, educação, higiene, lazer), leva o homem ao desespero e ao crime. Assim, aquele que foi privado durante toda a sua vida (principalmente no seu início) dessas mínimas condições estaria mais sujeito ao cometimento do delito pelo simples fato de não haver para ele qualquer outra opção; há exceções, é verdade, porém estas, de tão poucas, apenas confirmam a regra.

De forma que esse quadro socioeconômico existente no Brasil – acrescido de uma questão seríssima que é a nossa herança escravagista -, revelador de inúmeras injustiças sociais, leva a muitos outros questionamentos, como por exemplo: para que serve o nosso sistema penal? A quem são dirigidos os sistemas repressivo e punitivo brasileiros? E o sistema penitenciário é administrado para quem? E, por fim, a segurança pública é, efetivamente, apenas um caso de polícia?

Ao longo dos anos a ineficiência da pena de prisão na tutela da segurança pública se mostrou de tal forma clara que chega a ser difícil qualquer contestação a respeito. Em nosso País, por exemplo, muitas leis penais puramente repressivas estão a todo o momento sendo sancionadas, como as leis de crimes hediondos, a prisão temporária, a criminalização do porte de arma, a lei de combate ao crime organizado, etc, sempre para satisfazer a opinião pública (previamente manipulada pelos meios de comunicação), sem que se atente para a boa técnica legislativa e, o que é pior, para a sua constitucionalidade. E, mais: o encarceramento como base para a repressão.

Querer, portanto, que a aplicação da pena de privação da liberdade resolva a questão da segurança pública é desconhecer as raízes da criminalidade, pois de nada adiantam leis severas, criminalização excessiva de condutas, penas mais duradouras ou mais cruéis...

A miséria econômica e cultural em que vivemos – aliada ao racismo entranhado em nossa sociedade - é, sem dúvida, a responsável por este alto índice de encarceramento existente hoje em nosso País; tal fato se mostra mais evidente (e mais chocante) quando se constata o número impressionante de crianças e adolescentes infratores que já convivem, desde cedo e lado a lado, com um sistema de vida diferenciado de qualquer parâmetro de dignidade, iniciando-se logo na marginalidade, na dependência de drogas lícitas e ilícitas, no absoluto desprezo pela vida humana (inclusive pela própria), no ódio e na revolta.

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A nossa realidade carcerária é preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los; e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábricas de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muita vez, torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém de tal forma estigmatizados que se tornam reféns do seu próprio passado.

Como diz Loïc Wacquant: "a gestão penal da insegurança social alimenta-se de seu próprio fracasso programado."[7] Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros; este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer).

A propósito, Mathiesen avalia que “se as pessoas realmente soubessem o quão fragilmente a prisão, assim como as outras partes do sistema de controle criminal, as protegem – de fato, se elas soubessem como a prisão somente cria uma sociedade mais perigosa por produzir pessoas mais perigosas -, um clima para o desmantelamento das prisões deveria, necessariamente, começar já. Porque as pessoas, em contraste com as prisões, são racionais nesse assunto. Mas a informação fria e seca não é suficiente; a falha das prisões deveria ser ‘sentida’ em direção a um nível emocional mais profundo e, assim fazer parte de nossa definição cultural sobre a situação.”[8]            

Ademais, as condições atuais do cárcere fazem com que a partir da ociosidade em que vivem os detentos, estabeleça-se o que se convencionou chamar de “subcultura carcerária”, um sistema de regras próprias no qual não se respeita a vida, nem a integridade física dos companheiros, valendo intra muros a “lei do mais forte”, insusceptível, inclusive, de intervenção oficial de qualquer ordem.

Para concluir, vejamos o que escreveu Marat, no final do século XVIII: “es un error creer que se detiene el malo por el rigor de los suplicios, su imagen se desvanece bien pronto. Pero las necesidades que sin cesar atormentan a un desgraciado le persiguen por todas partes. Encuentra ocasión favorable? Pues no escucha más que esa voz importuna y sucumbe a la tentación.”[9]


Notas

[1] http://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/11314-taxa-de-ocupacao-dos-presidios-brasileiros-e-de-175-mostra-relatorio-dinamico-sistema-prisional-em-numeros, acessado em 18 de junho de 2018.

[2] Confira a pesquisa completa: http://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros

[3] O INFOPEN é um banco de dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.

[4] O INFOPEN considerou a categoria negra como a soma das categorias preta e parda.

[5] https://oglobo.globo.com/brasil/brasil-o-terceiro-pais-com-mais-presos-no-mundo-diz-levantamento-22166270, acessado em 08 de dezembro de 2017.

[6] HULSMAN, Louk, Penas Perdidas – O Sistema Penal em Questão, Niterói: Luam, 1997,  p. 69.

[7] WACQUANT, Loïc, As Prisões da Miséria, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 145.

[8] MATHIESEN, Thomas, Conversações Abolicionistas – Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva, São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 275.

[9] MARAT, Jean Paul, Plan de Legislación Criminal, Buenos Aires: Hamurabi, 2000, p. 78.

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. A realidade do cárcere no Brasil em números. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5500, 23 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67456. Acesso em: 22 nov. 2024.

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