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Alienação fiduciária de coisa imóvel em CPR:

uma análise com base nas Leis 8.929/94, 9.514/97 e 10.931/2004, juntamente do Código Civil

23/10/2018 às 18:10
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Como tem sido comum o uso de garantia de alienação fiduciária de coisa imóvel em CPR, é preciso examinar as Leis 8.929/94, 9.514/97 e 10.931/2004, ao lado do Código Civil, para atestar sobre seu cabimento, ou não, nas obrigações geradas pela referida cédula.

1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

O Código Civil, a teor do contido nos seus artigos 1361 e seguintes trata da propriedade fiduciária de coisa móvel fungível, dispondo em seu art. 1368-A que “As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.” 

Na legislação esparsa é possível encontrar a disciplina das demais espécies de propriedade fiduciária como, por exemplo, a propriedade fiduciária de aeronaves regida pela Lei 7.565/86, a propriedade fiduciária dos imóveis integrantes das carteiras dos fundos de investimento imobiliário disciplinada pela Lei 8.668/93, a titularidade de direitos creditórios oriundos da comercialização de imóveis sob disciplina da Lei 4.864/65, etc.

Relativamente à garantia de alienação fiduciária de coisa imóvel, desta trata a Lei 9.514/1997 que, consoante adiante será visto, não somente a institui como também estabelece sua aplicação aos contratos de financiamento imobiliário em geral.

Com o advento da Lei 8.929/94 que criou a Cédula de Produto Rural (CPR), ficou previsto em seu art. 5º, inciso III¹, que a alienação fiduciária poderia constituir garantia da Cédula sem, contudo, estabelecer qualquer disciplina sobre o tema. 

Deste modo, quando se contrata garantia de alienação fiduciária em CPR, da conjugação do seu art. 5º, inciso III, com art. 16, o que se depreende é que se trata de bem móvel infungível, o que leva necessariamente à disciplina do Código Civil sobre o tema.

No entanto, como tem sido comum a presença da garantia de alienação fiduciária de coisa imóvel em CPR, é preciso examinar as Leis 8.929/94, 9.514/97 e 10.931/2004 para atestar sobre seu cabimento ou não nas obrigações geradas pela referida Cédula.


2. DA CÉDULA DE PRODUTO RURAL - CPR

O diploma legal que criou a Cédula de Produto Rural (CPR), a Lei 8.929/94, dispôs em seu art. 1º que nela o emitente promete entregar produto rural ao credor, e em seu art. 5º  inciso III, assegurou que a garantia na Cédula pode se constituir de alienação fiduciária.

Ao tempo em que entrou em vigência o referido diploma legal, o instituto jurídico da alienação fiduciária de coisa imóvel ainda não existia, já que a Lei especial que dela tratou data de 20.11.1997, a saber, Lei 9.514/97, que em sua parte preambular denuncia: “Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. (gn)

O que se conclui é que, se inexistia a figura jurídica da alienação fiduciária de coisa imóvel quando do advento da Lei 8.929/94, a mente do legislador ao tratar do cabimento da alienação fiduciária na Cédula (art. 5º, III), somente poderia dispor sobre bens indicados no Código Civil (coisa móvel infungível).

A própria Lei 8.929/94, ao tratar de alienação fiduciária no inciso III, do seu art. 5º, estava prevendo somente a garantia que dispusesse sobre bens móveis infungíveis, já que no seu art. 16 assegura a busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente.

Ora, busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente somente pode ocorrer em bens móveis e não em bens imóveis, de modo que por esta vertente se pode asseverar que a garantia de alienação fiduciária prevista no inciso III, do art. 5º não contempla a coisa imóvel, tratada pelo art. 17, III, da Lei 9.514/97, mas sim coisa móvel infungível prevista no Código Civil.

Aliás, pelo procedimento da Lei 9.514/97, que trata de garantia de alienação de coisa imóvel, uma vez inadimplida a obrigação ao credor fiduciário socorre não a busca e apreensão da coisa, mas sim, a consolidação da propriedade em seu nome, sob constituição em mora do devedor fiduciante. 

Quando, finalmente, surge a garantia da alienação fiduciária de coisa imóvel - Lei 9.514/97-, sua aplicação tem direcionamento certo e determinado aos contratos de financiamento imobiliário, a teor do contido no seu art. 17, inciso III, in verbis: 

Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por:

IV - alienação fiduciária de coisa imóvel. (gn)


3. DO ATO FORMAL DA CONSTITUIÇÃO DA GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE COISA IMOVEL. 

Quando se observa o Código Civil, diploma legal que trata da alienação fiduciária de coisa móvel infungível², ou a Lei 9.514/97 que trata da garantia de alienação fiduciária de coisa imóvel, o que se nota em ambos os diplomas legais é que o contrato que materializa a garantia tem que preencher os requisitos exigidos pela Lei.

No caso da garantia de alienação fiduciária de coisa imóvel, os requisitos essenciais para sua formalização são ditados pelo art. 24, da Lei 9.514/97, in verbis:

“Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:

I - o valor do principal da dívida;

II - o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário;

III - a taxa de juros e os encargos incidentes;

IV - a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição;

V - a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária;

VI - a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão;

VII - a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27.”

Em redação cogente – conterá – o art. 24 diz que a constituição da garantia, além de se dar por meio de contrato que servirá para posterior registro no cartório imobiliário competente (art. 23), do mesmo deverá CONSTAR todas as exigências ali mencionadas, de modo que a falta de qualquer dos requisitos retira do documento a força jurídica de constituição válida do negócio.

Os dois primeiros incisos do art. 24 dizem que o contrato deve conter o valor do principal da dívida e o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito fiduciário (inc. II), o que pressupõe que a garantia somente se presta a empréstimos ou créditos fiduciários, onde um determinado valor (principal da dívida) deve ser pago ao credor fiduciário. 

Posteriormente, no inciso III está claro que os encargos financeiros precisam ser também indicados no contrato, já que em regra se trata de mútuo feneratício. 

A cláusula de constituição da propriedade fiduciária (inciso IV), com a descrição do imóvel precisa também fazer parte do contrato, já que será à margem da matrícula do bem alienado que o registro do contrato será efetivado no Registro Imobiliário.

Ainda preconizam os incisos IV, V e VI, respectivamente, que do contrato devem constar cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária, a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão e, finalmente, a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27.

Ainda vale destacar dois pontos que estão presentes no inciso II, do art. 24, os quais parecem indicar que a garantia de alienação fiduciária de bem imóvel somente tem cabimento em obrigações que indicam um contrato de mútuo. 

Afinal, está dito que os prazos e condições de reposição do empréstimo ou do crédito fiduciário devem estar indicados no contrato, o que pressupõe que a garantia está sempre e necessariamente vinculada a um empréstimo.

Pelo disposto no inciso II, do art. 24, da Lei 9.514/97 fica ainda mais evidente o descabimento da alienação fiduciária de coisa imóvel em CPR, visto que a cártula jamais se presta a um contrato de empréstimo mas sim, como diz a Lei, a contrato de compra e venda de produto rural, onde o devedor não assume obrigação de repor empréstimo tomado do credor mas sim, de entregar coisa incerta.

Se CPR não é um título de empréstimo em dinheiro, razão pela qual o devedor não tem que pagar quantia certa ao credor, e consequentemente não tem que lhe remunerar (pagar juros) já que mútuo não houve, o título (CPR) nunca irá preencher os requisitos essências de formulação do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel.


4 – INAPLICABILIDADE DA GARANTIA DE COISA IMÓVEL EM CPR

Considerando que a Lei 8.929/94 indica como garantia de alienação fiduciária de bem imóvel infungível e a Lei 9.514/97 instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel somente em financiamento imobiliário em geral, na CPR somente é possível a presença daquela e não desta garantia.

Entrementes, busca-se amparo na Lei 10.931/2004 para reverter o quadro, tendo em conta o que dispõe seu art. 51, in verbis:

“Art. 51. Sem prejuízo das disposições do Código Civil, as obrigações em geral também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel.” (gn) 

Pela expressão “obrigações em geral” constante do dispositivo, entendem alguns que ocorre um elastecimento no emprego da referida garantia, de modo que a alienação fiduciária de coisa imóvel, antes circunscrita aos financiamentos imobiliários em geral (art. 17, IV, Lei 9514/97), pode agora, dizem, ser achada em contratos de “obrigações em geral”.

No entanto, a leitura do art. 51, da Lei 10.931/2004 fora do contexto em que se encontra inserido é impertinente, visto que o dispositivo está incrustado no Capítulo V da Lei, o qual trata especificamente “DOS CONTRATOS DE FINANCIAMENTO DE IMÓVEIS”, in verbis:

 “CAPÍTULO V

DOS CONTRATOS DE FINANCIAMENTO DE IMÓVEIS

Art. 46. (...)

Art. 51. Sem prejuízo das disposições do Código Civil, as obrigações em geral também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel.”

Quando o legislador inseriu o art. 51, da Lei 10.931/2004 no Capítulo V, que trata exclusivamente dos CONTRATOS DE FINANCIAMENTO DE IMÓVEIS, outra intenção não teve senão que tudo aquilo que nele se encontra seja lido, entendido e aplicado aos contratos de natureza imobiliária, a saber, de financiamento de imóvel e não mais do que isto.

A boa leitura do texto leva ao entendimento de que as “obrigações em geral” decorrentes de contratos de financiamento de imóveis estas, e somente estas, podem ser garantidas por alienação fiduciária de bem imóvel.

Entender que a expressão “obrigações em geral” constante de parte referido art. 51 deve ser entendida para além da órbita dos contratos de financiamento de imóvel, quando todo o restante do artigo se aplica a financiamento de imóvel, não faz jus ao texto legal.

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Outrossim, uma leitura mais atenta de todos os artigos que compõem o Capítulo V, da Lei 10.931/2004, a saber, artigos 46 a 52, fica evidente que tudo ali está voltado a disciplina de contratos de financiamento imobiliário, de modo que não caberia pensar que somente a derradeira parte do art. 51 fosse colocada ali para tratar de contratos não imobiliários.

Toda Lei tem uma estrutura lógica em sua redação, a qual o bom exegeta deve respeitar ao se propor a interpretá-la, sob pena de chegar a lugar diverso daquele pretendido pela mens legislatoris.

Ademais, é preciso considerar que se fosse propósito do legislador, através da Lei 10.931/2004, alterar e ampliar a presença da alienação fiduciária de coisa imóvel para além dos limites impostos pela Lei 9.514/97, isto é, financiamento de imóvel, o que efetivamente não o era, disto teria tratado expressamente em Capítulo próprio, como o fez no Capítulo VI DISPOSIÇÕES FINAIS, quando colocou ali os arts. 55 e 56 que alteraram a Alienação Fiduciária em Garantia no Âmbito do Mercado Financeiro e de Capitais.

Se o próprio art. 57, da Lei 10.931/2004 que promoveu alterações na Lei 9514/97, não alterou o inciso III, do seu art. 17, disto subentende que não quis a Lei nova mexer na Lei antiga quanto a aplicação da garantia de alienação fiduciária de coisa imóvel exclusivamente em contratos específicos e estes ligados a financiamento imobiliário em geral.

Como a CPR é um título que contém uma obrigação de compra e venda de produto rural, jamais poderá nela figurar ou mesmo em contrato apartado a ela vinculado, garantia de alienação fiduciária de coisa imóvel, visto que a Lei 9.514/97 que a instituiu somente permite sua constituição em financiamento imobiliário em geral.


5. CONCLUSÃO 

Como a CPR denuncia uma compra e venda de produto rural e não obrigação de pagar quantia certa em decorrência de empréstimo tomado junto ao credor, a garantia de alienação fiduciária de coisa imóvel, instituída para financiamento imobiliário, em geral, não tem cabimento no título.

Outrossim, mesmo que se admitisse o contrário, ad argumentandum tantum, a garantia somente seria validamente constituída se feita através de contrato que satisfizesse todas as exigências do art. 24, da Lei 9.514/97. Afinal, contrato ou pacto de garantia de alienação fiduciária de coisa imóvel que não contenha todos os requisitos do art. 24, da Lei 9514/97, não tem força jurídica suficiente para transmitir ao credor a propriedade fiduciária da coisa. 

A professora Maria Helena Diniz que: a “alienação fiduciária em garantia consiste na transferência feita pelo devedor ao credor da propriedade resolúvel e da posse indireta de um bem infungível (CC, art. 1361) ou de um bem imóvel (Lei nº 9.514/97, arts. 22 a 33), como garantia do seu débito, resolvendo-se o direito do adquirente com o adimplemento da obrigação, ou melhor, com o pagamento da dívida garantida.”.

Se a alienação em questão transfere a propriedade resolúvel e a posse indireta ao credor, nada mais certo do que exigir que o contrato preencha todas as exigências do mencionado art. 24, da Lei 9.514/97, já que se trata de um ato que praticamente exaure o direito de propriedade do alienante fiduciante, coisa que somente documento perfeito e completo, a exemplo de escritura pública de venda e compra, pode efetivamente implicar tal direito do devedor.

Assim, CPR apresentada a registro que denuncie a presença de garantia de alienação fiduciária de bem imóvel não pode ser registrada, seja por que a obrigação ali indicada não está na esfera da Lei 9.514/97 (art. 17, inc III), seja por que as cláusulas ali existentes não preenchem todos os requisitos exigidos pelo art. 24, da Lei especial, seja por que a teor do contido nos artigos 5º, inciso III e 16, da Lei 8.929/94, a previsão é que a alienação fiduciária na CPR é de bem móvel.   


Notas

¹Art. 5º A garantia cedular da obrigação poderá consistir em:

I - hipoteca;

II - penhor;

III - alienação fiduciária.

²Art. 1.362. O contrato, que serve de título à propriedade fiduciária, conterá:

I - o total da dívida, ou sua estimativa;

II - o prazo, ou a época do pagamento;

III - a taxa de juros, se houver;

IV - a descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação.

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Sobre o autor
Lutero de Paiva Pereira

Advogado especialista em Direito do Agronegócio. Fundador da banca Lutero Pereira & Bornelli Advogados Associados. Pós-graduado em Direito Agrofinanceiro. Coordenador de cursos online no site Agroacademia. Membro do Comitê Europeu de Direito Rural (CEDR) e Membro Honorário do Comitê Americano de Direito Agrário (CADA). Autor de 18 livros publicadas na área de Direito do Agronegócio.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Lutero Paiva. Alienação fiduciária de coisa imóvel em CPR:: uma análise com base nas Leis 8.929/94, 9.514/97 e 10.931/2004, juntamente do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5592, 23 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67828. Acesso em: 28 mar. 2024.

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