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A indústria da multa em São Paulo: mito ou realidade?

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Resumo:


  • O estudo investiga a possibilidade de uma "indústria da multa" em São Paulo, analisando dados estatísticos dos últimos dez anos.

  • A arrecadação com multas de trânsito aumentou consideravelmente, assim como os gastos com fiscalização eletrônica, porém houve uma diminuição de acidentes fatais no trânsito.

  • A destinação dos recursos arrecadados com multas para educação de trânsito é mínima, indicando uma cultura da multa em detrimento da prevenção e educação no trânsito.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Entre 2008 e 2017, houve um aumento constante no número de veículos da frota de São Paulo, ao passo que a variação na quantia arrecadada com multas de trânsito passou longe de obedecer à proporção.

“Liberdade” vs. Fiscalização Eletrônica – Foto de Heitor Fidelis

Resumo: O objetivo deste estudo será investigar – à luz de dados estatísticos oficiais dos últimos dez anos, conjugados a elementos jurídicos – se, de fato, no município de São Paulo foi criada uma verdadeira “indústria” financiada pelo dinheiro arrecadado com multas de trânsito autuadas – principalmente, mas não exclusivamente – com o auxílio da fiscalização eletrônica.

Palavras-chave: Trânsito. São Paulo. Indústria da multa. Fiscalização Eletrônica. Dados Estatísticos.


Introdução

Diariamente milhares de condutores são multados por cometer infrações de trânsito no município de São Paulo. Somente em 2017, foram mais de 13 milhões de multas aplicadas (13.406.805, para ser exato[1]). Neste contexto, é muito frequente a utilização da expressão “indústria da multa” como crítica à crescente e cada vez mais rigorosa legislação e fiscalização de trânsito, sem que isso resulte em um benefício proporcional aos condutores e pedestres através do aumento da segurança no trânsito.

Antes de imergir no mérito deste trabalho, primeiramente julgamos importante fixar alguns conceitos importantes para a melhor compreensão dos argumentos que serão posteriormente explanados. Nesta linha, começaremos com o principal deles, qual seja, a “multa de trânsito”.

Em síntese, “multa de trânsito” – na acepção jurídica do termo – é uma sanção pecuniária aplicada pela Administração Pública[2] em função do exercício do Poder de Polícia de Trânsito em prejuízo do condutor que viola a legislação de trânsito e, portanto, comete ato ilícito.

Mas o que é ato ilícito? Em termos gerais, ato ilícito[3] é toda conduta contrária ao direito (v.g. furar o sinal vermelho viola o art. 208 do CTB[4] e, portanto, é um ato ilícito). E o que é Poder de Polícia[5] de Trânsito? Trata-se da autoridade conferida aos órgãos ou entidades competentes para fiscalizar o trânsito, autuar e notificar os condutores que violam a legislação, impondo a eles as medidas administrativas e as multas cabíveis, previstas em lei, conforme estabelecido pelos arts. 22, V[6], e 24, VI[7], ambos do CTB.

Portanto, é muito importante que não se confunda multa de trânsito com tributo, pois o art. 3º do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966) define tributo como “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”

Ora, acabamos de verificar acima que a multa de trânsito é uma sanção ao ato ilícito; justamente por isso, não pode ser confundida com tributo. Fixadas tais premissas, passaremos para a próxima etapa do nosso estudo.


A “indústria da multa” sob a ótica das estatísticas

A fim de embasar nossos argumentos e posteriores conclusões, esta etapa terá como objetivo aclarar – à luz de dados estatísticos – se houve aumento, ou não, da arrecadação da Prefeitura de São Paulo com multas de trânsito na última década; e, em caso positivo, se esse aumento trouxe mais segurança ao trânsito paulistano. A partir da análise empírica dos dados coletados, teremos mais substrato para aferir se a “indústria da multa” é real ou não passa de um mito.

A questão é delicada, pois, por um lado, a legislação de trânsito (assim como toda lei) existe para ser cumprida: se não concordamos com seu conteúdo normativo ou se a achamos injusta, este é outro problema (que não será abordado neste artigo) que deve ser solucionado por meio da participação popular no processo legislativo e eleitoral. Afinal, as leis não surgem do nada, mas são (ou deveriam ser) fruto do debate dos representantes eleitos por nós, cidadãos, para representar nossos interesses no Congresso Nacional e nas Câmaras Legislativas Estaduais e Municipais.

Por outro lado, a aplicação das leis de trânsito, que ocorre através da fiscalização[8] (eletrônica ou manual), apresenta dados interessantes. Entre agosto de 2008 e agosto de 2017, a prefeitura de São Paulo arrecadou cerca de R$ 6,797 bilhões de reais a título de multas de trânsito. Confira-se a distribuição da arrecadação, segundo a fonte oficial:

Fonte: Indicador Paulistano, setembro/2017.[9]

No período analisado, percebe-se que em todos os anos houve aumento da arrecadação, com exceção de 2013 e 2014, único biênio em que houve diminuição. Entretanto, salta aos olhos que os valores beiraram a casa de R$ 1 bilhão em 2016, superaram esta marca em 2017 e a tendência é que aumentem ainda mais em 2018. Ou seja, houve um aumento de 196,20% no recolhimento de multas para o período estudado; e a soma da arrecadação nos últimos dois anos representa 31,21% de tudo o que auferido pela Prefeitura de São Paulo na cobrança de multas, desde 2008. Sem dúvidas, é muito dinheiro.

Há quem argumente que este fenômeno possa ser atribuído ao desenfreado crescimento da frota de veículos em São Paulo nos últimos anos, pois – em tese – quanto mais veículos circulando, maiores são as chances de que algum condutor infrinja a legislação de trânsito e seja multado. Para testar a validade deste argumento, procuramos dados oficiais sobre a frota de veículos em São Paulo na última década e o que encontramos foi o seguinte:

Fonte: DETRAN-SP.[10]

De fato, a frota de veículos em São Paulo sofreu aumento constante no período analisado. No entanto, atribuir o incremento da arrecadação de multas exclusivamente a este fato é uma falácia. Isto porque, entre 2008 e 2017 houve um aumento constante no número de veículos da frota de São Paulo, ao passo que a variação na quantia arrecadada com multas de trânsito passou longe de obedecer à mesma lógica. Confiram-se as variações neste período:

Fonte: Indicador Paulistano, setembro/2017.[11]/DETRAN-SP.[12]

Os dados demonstram que, enquanto a variação na frota de veículos foi praticamente constante, a variação anual na arrecadação das multas (para mais ou para menos) teve flutuações muito diferentes. Pelos dados analisados, não há nenhuma relação direta entre o aumento da frota de veículos e o aumento da arrecadação, especialmente porque em 2013 e 2014 a quantia auferida com as multas de trânsito apresentou variação negativa, apesar do aumento na frota de veículos registrado no mesmo período.

Abaixo, coletamos os gastos declarados pela Prefeitura de São Paulo com fiscalização eletrônica, entre os anos de 2008 e 2017. Confira-se:

Fonte: Prefeitura de São Paulo.[13]

O gráfico demonstra quem em 2008 foram investidos R$ 11.538.598,00 para custeamento da rede de fiscalização eletrônica; em contrapartida, em 2017, esse valor subiu para R$ 112.205.288,00. Ao rigor deste raciocínio, houve um aumento de incríveis 872,43% nos gastos com fiscalização eletrônica para o período analisado. É assustador. Agora, comparemos o acréscimo percentual dos gastos com fiscalização com o aumento percentual da arrecadação de multas para o período de 2009 a 2017:

Fonte: Prefeitura de São Paulo[14] / Indicador Paulistano.[15]

O gráfico acima nos demonstra que há relação direta entre as despesas com fiscalização eletrônica e o quanto é arrecadado pela Prefeitura de São Paulo: quanto mais se gasta com radares, mais se arrecada com multas. É interessante destacar que entre janeiro de 2009 e dezembro de 2017 a frota de veículos no município de São Paulo aumentou 34,5%[16], ao passo que os gastos com fiscalização eletrônica cresceram 872,43%. Trata-se de uma discrepância gigantesca que denota a obsessão das políticas públicas municipais por fiscalização no trânsito.

Some-se a isto o fato de que em 01.11.2017 passou a valer a fiscalização eletrônica por velocidade média na cidade de São Paulo[17]. Em quatro vias de grande circulação (Av. 23 de maio, Av. dos Bandeirantes, Av. Jacu-Pêssego e, é claro, na Marginal Tietê), foram instalados radares dotados de uma nova (e cara) tecnologia apta a monitorar a velocidade média dos condutores em determinados trechos das vias, acabando com a velha estratégia de muitos motoristas, que freavam apenas nas proximidades do radar. Segundo matéria publicada na Folha de São Paulo[18], em 08.11.2017, a CET estimou que cerca de 9.000 condutores eram multados diariamente com a nova medida.

Ora, os exemplos acima já são o suficiente para demonstrar que a fiscalização de trânsito está a cada dia mais rígida em São Paulo. Agora chegou a hora de analisar os resultados:

Fonte: CET-SP, 2017.[19]

O gráfico acima nos mostra que, em 2008, o município de São Paulo registrou 1400 acidentes de trânsito fatais; já em 2017, esse número foi reduzido para 762. Conclui-se, então, que houve uma diminuição de 45,57% no número de mortes no trânsito para o período analisado. Ora, de fato, o incremento da fiscalização – e, consequentemente, da arrecadação com multas – contribuiu para a melhoria da segurança do trânsito paulistano. Mas a que custo?

Conforme visto acima (gráficos 1, 4 e 6) entre 2008 e 2017 houve aumento de 196,20% na arrecadação de multas; e entre 2009 e 2017, os gastos com fiscalização eletrônica foram incrementados em 872,43%. Em contrapartida, o número de acidentes fatais diminuiu em 45,57%. Conclui-se que o resultado geral foi positivo, mas a estratégia adotada foi ineficiente.

Na próxima etapa de nossa análise, verificaremos como deve ser – segundo a lei – a alocação de recursos advindos das multas de trânsito. A partir desta análise poderemos apresentar uma conclusão sólida a respeito da existência, ou não, da “indústria da multa” em São Paulo.


Qual a destinação dada ao dinheiro arrecadado com multas de trânsito?

Segundo o art. 320 do CTB[20], 95% do dinheiro arrecadado com as multas de trânsito deve ser aplicado exclusivamente na sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito. Já os 5% restantes deverão ser repassados ao Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito (FUNSET[21]), destinando-se, como a própria sigla sugere, à segurança e à educação de trânsito.

Então, o dinheiro utilizado para pagar minha multa poderá ser revertido para conservação do próprio radar que me multou? Sim. Inclusive, na toada atual, provavelmente será utilizado para instalar um novo radar na esquina da sua casa para lhe aplicar outra multa no próximo mês (lembrando que se você respeitar a legislação de trânsito, não será multado).

E como essa alocação de recursos se dá no plano municipal? Este será o tema do próximo item estudado.


O Fundo Municipal de Desenvolvimento de Trânsito (“FMDT”)

A implementação do FMDT foi prevista pela Lei Municipal nº 14.488/2007 FMDT, regulamentada pelo Decreto Municipal nº 49.399/2008, que efetivamente criou o referido Fundo, com o objetivo de “financiar a expansão e aprimoramento das ações destinadas a promover o desenvolvimento do trânsito no Município de São Paulo.”[22]

A principal – mas não única[23] – fonte de recursos destinados à manutenção do FMDT advém da arrecadação com multas de trânsito, conforme previsto pelo art. 320 do CTB (tópico já analisado acima). Em outras palavras, na cidade de São Paulo, 95% do que é arrecadado com multas de trânsito deve ser repassado ao FMDT.

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A partir dos “Quadros Detalhados” da execução orçamentária disponibilizados pela prefeitura de São Paulo[24], extraímos os seguintes dados:

Ano

Receita liquidada em favor do FMDT

2009

R$533.015.320,00

2010

R$585.620.348,00

2011

R$678.033.153,00

2012

R$720.917.391,00

2013

R$840.228.757,00

2014

R$953.631.156,00

2015

R$924.185.491,00

2016

R$1.146.981.400,00

2017

R$1.000.871.504,00

TOTAL

R$7.383.484.520,00

Ou seja, durante nove anos de existência foram alimentados R$ 7.383.484.520,00 ao FMDT. E agora coloco a seguinte indagação aos leitores: durante tal período, quanto deste dinheiro foi declaradamente destinado para campanhas de educação e conscientização acerca das normas de trânsito? R$ 9.980.973,00[25]. Isso representa apenas – acreditem – 0,13% do orçamento total. A situação é, no mínimo, curiosa.

Para contextualizar: somente no CTB, existem 93 infrações de trânsito distintas, cada uma delas com gravidade e penalidades diferentes. Ora, até mesmo para alguém trabalhe em tempo integral com direito de trânsito seria um desafio memorizar e ter na ponta da língua todas elas; imagine para os demais cidadãos, que têm outros afazeres e preocupações cotidianos ocupando suas mentes.

O mínimo que se esperava da Prefeitura de São Paulo, que arrecadou pelo menos R$ 6,7 bilhões em multas de trânsito nos últimos dez anos, seria a realização de campanhas robustas e periódicas para a conscientização e educação dos condutores acerca da multiplicidade de infrações de trânsito e suas respectivas penalidades. Mas não, optou-se por aumentar os investimentos em fiscalização eletrônica em 872,43%; simultaneamente, foram destinados mais de R$ 7 bilhões ao FMDT, ao passo que apenas 0,13% desse dinheiro foi efetivamente investido em educação de trânsito, segundo os dados orçamentários divulgados pela Prefeitura de São Paulo.


Conclusão: a cultura da multa

Conforme vimos acima, a receita arrecadada com as multas de trânsito está vinculada por lei à consecução de um bem maior, qual seja, o desenvolvimento do trânsito de modo a torna-lo mais seguro, beneficiando, assim, toda a coletividade. Ou seja, a fiscalização e consequente aplicação de multas nunca poderá objetivar o lucro (a não ser que haja desvio de verbas); daí porque acreditamos que a expressão “indústria” não seja a mais adequada para descrever o fenômeno estudado.

Verificamos, ainda, que, entre 2008 e 2017, a arrecadação com multas cresceu 196,20%; já os investimentos em fiscalização eletrônica dispararam em 872,43%; em contrapartida, os acidentais fatais caíram em 45,57%. A partir disto, concluímos que o aumento frenético da fiscalização é, sim, capaz de conferir maior segurança ao trânsito. Mas o método não é eficiente. É como tentar encher uma piscina com um balde d’água: é possível? Claro. É eficiente? De modo algum.

Por fim, constatamos que nos últimos nove anos apenas 0,13% do orçamento do FMDT foi destinado a fomentar a educação no trânsito, o que corresponde a R$ 9.980.973,00. Comparativamente, entre 2008 e 2017 foram investidos incríveis R$ 440.320.109,00 em fiscalização eletrônica.

É exatamente neste sentido que negamos a existência de uma “indústria da multa” e afirmamos com veemência que houve a gênese de uma verdadeira cultura da multa na última década, em São Paulo. Isto é, criou-se nos administradores públicos a convicção (quase uma obsessão) de que é melhor punir do que educar para prevenir (isso soa familiar, não?).

No entanto, deixo claro, não sou a favor da abolição da fiscalização de trânsito. Ela é necessária, mas não com a intensidade com a qual tem sido implementada nos últimos anos (freneticamente). Talvez tenha chegado a hora de se investir mais (bem mais) na educação e conscientização dos condutores acerca das normas (especialmente das infrações) de trânsito e dos malefícios causados a si próprio e à toda a coletividade ao se desrespeitar a lei de trânsito. Orçamento, há; falta disposição.

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Sobre o autor
Heitor José Fidelis Almeida de Souza

Advogado e sócio proprietário do Fidelis Sociedade Individual de Advocacia (OAB/SP 29.318), bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), pós-graduado em Direito Empresarial pela FGV-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Heitor José Fidelis Almeida. A indústria da multa em São Paulo: mito ou realidade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5503, 26 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67842. Acesso em: 18 dez. 2024.

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