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Da (im)possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos crimes de lavagem de dinheiro

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01/02/2019 às 10:00

Resumo:


  • O crime de lavagem de dinheiro passou a ser entendido como de terceira geração, ampliando a possibilidade de condutas ilícitas geradoras de capital ilícito.

  • O bem jurídico tutelado pela Lei 9.613/1998 é a ordem econômico-financeira, o que justifica a aplicação do princípio da insignificância nesse tipo de delito.

  • A jurisprudência recente dos tribunais superiores estabeleceu o patamar de R$ 20.000,00 como limite para aplicação do princípio da insignificância em crimes tributários, o que pode ser estendido à lavagem de dinheiro.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. DA (IM)POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO

Como se observou no tópico “3. Bem Jurídico Tutelado Pela Lei De Lavagem De Capitais”, apresenta-se mais acertado o entendimento segundo o qual o bem jurídico que o legislador brasileiro buscou tutelar, por meio da lei de lavagem de dinheiro, foi a ordem econômico-financeira, entendida que é como o “conjunto de instrumentos que asseguram o funcionamento das relações de produção, distribuição, troca e consumo em determinada sociedade”.[24]

Nesse panorama, na esteira de Renato Brasileiro de Lima, “Partindo da premissa de que o bem jurídico tutelado pela lavagem de capitais é a ordem econômico-financeira, conclui-se que é plenamente possível a aplicação do princípio da insignificância”.[25]

Tal assim se dá, na medida em que, com o advento da Lei 12.883/2012, não existe mais um rol taxativo de crimes antecedentes, de modo que o legislador brasileiro passou a admitir, inclusive, a prática de contravenções penais para fins de tipificação do crime de lavagem de dinheiro, porquanto substituiu a elementar “crime” pela elementar “infração penal”. Por conseguinte, aumentaram-se as possiblidades de prática de infrações penais com potencial gerador de valores aptos à lavagem de capitais.

Deveras, em razão dessa mudança de paradigma, tendo o Brasil adotado uma legislação de terceira geração:

[...] a aplicação desse princípio ganha ainda mais importância em relação ao crime de lavagem de capitais, até mesmo para se evitar o risco de banalização da imputação desse crime, acarretando a paralisação das atividades das varas especializadas com uma desnecessária sobrecarga de processos referentes a condutas desprovidas de relevância penal.[26]

De ter-se em mente, no entanto, que a incidência do “princípio bagatelar” deverá observar, por óbvio, os vetores já sedimentados pela jurisprudência pátria, quais sejam, a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.[27]

Assim, estando preenchidos os requisitos supra e admitindo-se que o bem jurídico tutelado pelo crime de lavagem de dinheiro é a ordem econômica, resta saber que parâmetro poderá ser objetivamente empregado para aferir a (in)significância dos valores “lavados”.

Afora a dificuldade ínsita à matéria, vez que seria um tanto complexo afirmar qual o quantum monetário teria o condão de afetar a ordem econômico-financeira de uma nação, parece razoável a proposta de Renato Brasileiro de Lima, para quem se afigura “possível a utilização do mesmo critério utilizado para crimes contra a ordem tributária, já que tais delitos também são espécie de infração penal contra a ordem econômico-financeira”.[28]

Adotando-se tal proposta, destaca-se que, no que se refere aos crimes contra a ordem tributária, foi a própria União quem forneceu, inicialmente, um parâmetro para fim de incidência do princípio da insignificância, ao determinar a extinção de todo e qualquer crédito fiscal cujo valor fosse inferior ao de R$ 100,00 (cem reais).

Segundo se depreende do artigo 18, § 1°, da Lei n° 10.522/02: “Ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais)”. Forçoso concluir-se, nesse panorama, que, se tal numerário não gera(ria) interesse estatal no campo tributário, por óbvio não terá potencialidade para acionar a tutela repressiva penal, a qual deve atuar como ultima ratio.

Outrossim, na visão dos Tribunais, o montante estabelecido para fins de arquivamento das execuções fiscais deve ser utilizado como parâmetro para fins de aplicação do princípio da insignificância, porquanto é inadmissível que uma conduta seja irrelevante no âmbito administrativo e não o seja para o Direito- Penal, que só deve atuar quando extremamente necessário para a tutela do bem jurídico protegido, quando falharem os outros meios de proteção e não forem suficientes as tutelas estabelecidas nos demais ramos do Direito.[29]

Em razão desse entendimento e com a evolução da jurisprudência, passou-se a adotar, como parâmetro de incidência do princípio da insignificância, o valor estipulado no artigo 20[30], da Lei n° 10.522/02, com redação dada pela Lei n° 11.033/04, qual seja, R$ 10.000,00 (dez mil reais).

O Supremo Tribunal Federal, todavia, em leitura mais atualizada da matéria, já fazendo alusão às portarias 75 e 130, do Ministério Da Fazenda, de 2012 e 2013, respectivamente, começou a adotar o patamar de 20.000,00 (vinte mil reais).

Veja-se, por todos, excerto do voto do Eminente Ministro Ricardo Lewandowski, da Suprema Corte, proferido no bojo do habeas corpus número 118.000/PR:

Como se sabe, a configuração do delito de bagatela, conforme têm entendido as duas Turmas deste Tribunal, exige a satisfação, de forma concomitante, de certos requisitos, quais sejam, a conduta minimamente ofensiva, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a lesão jurídica inexpressiva.

Por outro lado, o art. 20 da Lei 10.522/2002 determina o arquivamento das execuções fiscais, sem cancelamento da distribuição, quando os débitos inscritos como dívida ativa da União forem iguais ou inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Esse valor foi atualizado para R$ 20.000,00 (vinte mil reais) pela Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda.

Nessa esteira, esta Segunda Turma vem assentando a orientação de que falta justa causa para a ação penal por crime de descaminho quando a quantia sonegada não ultrapassar o valor estabelecido no referido dispositivo, aplicando-se o princípio da insignificância. (sem grifos no original)

Com efeito, de forma aplaudível, tal patamar foi revisitado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, que, ao se alinhar com o Supremo Tribunal Federal, também passou a admitir o “princípio bagatelar”, em matéria de crimes tributários, em relação a valores até R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

Consoante se extrai dos julgados paradigmas, a revisão foi necessária por causa de recentes decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, bem como do parâmetro fixado pelas “recentes” portarias 75 e 130 do Ministério da Fazenda. [31]

Quando do julgamento dos recursos especiais, o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, explicou que, em 2009, a 3ª Seção firmou o entendimento de que incidiria a insignificância aos crimes contra a ordem tributária e de descaminho quando o débito tributário não ultrapassasse R$ 10 mil, conforme prevê o artigo 20 da Lei 10.522/02.[32]

Àquela época, ressaltou o precitado ministro, “o julgamento representou um alinhamento da jurisprudência do STJ ao entendimento fixado pelo STF. Todavia, em 2012, o Ministério da Fazenda editou as portarias 75 e 130, que passaram a prever, entre outros pontos, o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional nos casos de valores iguais ou inferiores a R$ 20 mil”.[33]

Hodiernamente, portanto, em revisitação ao Tema 157, a terceira seção do Superior Tribunal de Justiça passou a entender que:

Incide o princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20 mil a teor do disposto no artigo 20 da Lei 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda. [34] (sem grifos no original)

Destarte, à vista do quanto exposto, levando-se em consideração o argumento de que o crime de lavagem de dinheiro tem por bem jurídico tutelado a ordem econômico-financeira – como defendido no presente artigo –, caso o “branqueamento” do capital se opere num valor não excedente a 20.000,00 (vinte mil reais), por analogia ao tratamento dado pela jurisprudência recente dos tribunais superiores à matéria, não há(verá) qualquer revestimento típico na conduta entelada, ante a incidência, aceitável, do princípio da insignificância.

Impõe-se consignar, por relevante, que esse quantum, de 20.000,00 (vinte mil reais), para projetar efeitos na esfera da lavagem de capitais – que é um delito acessório ou parasitário –, deverá advir de crimes não tributários[35], visto que, se se tratar de infração desta natureza [tributária], a atipicidade alcança o delito primevo/principal, o qual “desaparece” do mundo jurídico. Assim, por incidência do princípio da insignificância, inexiste o crime antecedente (crime-tributário) e, com isso, não haverá que se falar em lavagem de capitais.

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Nesse panorama, à guisa de conclusão James Walker Junior e Alexandre Fragoso prelecionam que:

[...] nos crimes antecedentes tributários, em que os tributos suprimidos ou reduzidos forem inferior ao patamar de 20.000, 00 (vinte mil reais), e concomitantemente, na valoração da relevância da tipicidade matéria dessa conduta, forem verificadas a presença de determinados requisitos, deve ser reconhecido o princípio da insignificância fiscal e, consequentemente, a atipicidade da conduta, sendo que, a ocultação posterior desses valores, não caracteriza lavagem de dinheiro, pela ausência de tipicidade do crime tributário antecedente. [36]                           


CONCLUSÃO

Como se pôde observar, o regramento penal em solo brasileiro, no que diz respeito ao crime de lavagem de dinheiro, a partir de 2012, com o advento da Lei 12.883/2012, passou a ser entendido como de terceira geração, haja vista a exclusão do rol taxativo de crimes antecedentes que tinham potencial gerador de valores passíveis de lavagem.

Com isso, além de não mais existir um rol específico de crimes antecedentes, suprimiu-se a elementar “crime” e se introduziu a elementar “infração penal”, o que acabou por amplificar – ainda mais – a possibilidade de condutas ilícitas geradoras de capital escuso. Nesse contexto, nota-se claramente que até mesmo contravenções penais têm o condão de gerar numerário passível de branqueamento.

Assim, para evitar-se a banalização da grave figura ilícita da lavagem de capitais, passou-se a admitir a incidência do princípio da insignificância também nesse tipo de delito. Como, no entanto, para que tal posicionamento prevaleça, há de se admitir que, não obstante a controvérsia doutrinária e jurisprudencial que circunda o tema, o bem jurídico tutelado pela Lei 9.613/1998 é a ordem econômico-financeira.

Dessa forma, por analogia, devem-se tomar por empréstimo os parâmetros insignificantes empregados nos crimes contra a ordem tributária, elencados nas portarias 75 e 130, do Ministério da Fazenda, as quais instituem como “insignificante” o patamar de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), que foi acatado pelo Supremo Tribunal Federal, bem assim pelo Superior Tribunal de Justiça. 

Defende-se, em conclusão, que ao crime de lavagem de dinheiro também se aplica o princípio da insignificância.  Isso porque, como tem por bem jurídico tutelado a ordem econômico-financeira, nada justifica a não incidência [analógica] do princípio bagatelar, tal como disciplinado nos crimes tributários, vez que a “ratio” é a mesma. Por consequência, deve-se aplicar a máxima “ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositivo” (onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir).           

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Sobre o autor
Filipe Maia Broeto Nunes

Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Mestre em Direito Penal (sobresaliente) com dupla titulação pela Escuela de Postgrado de Ciencias del Derecho/ESP e pela Universidad Católica de Cuyo – DQ/ARG. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Internacional de La Rioja – UNIR/ESP e em Direito Penal Econômico e da Empresa pela pela Faculdade de Direito da Universidade Carlos III de Madrid - UC3M/ESP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e também Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM, em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM e em Compliance Corporativo pelo Instituto de Direito Peruano e Internacional – IDEPEI e Plan A – Kanzlei für Strafrecht, Alemanha (Curso reconhecido pela World Compliance Association). Foi aluno do curso “crime doesn't pay: blanqueo, enriquecimiento ilícito y decomiso”, da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca – USAL/ ESP, e do Módulo Internacional de "Temas Avançados de Direito Público e Privado", da Universidade de Santiago de Compostela USC/ESP. Membro da Câmara de Desagravo do Tribunal de Defesa das Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso - OAB/MT; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM; do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico - IBDPE; do Instituto de Ciências Penais - ICP; da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT; Membro efetivo do Instituto dos Advogados Mato-grossenses - IAMAT e Diretor da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim. Autor de livros e artigos jurídicos, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Filipe Maia Broeto. Da (im)possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos crimes de lavagem de dinheiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5693, 1 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67981. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

O presente artigo foi elaborado e apresentado à Universidade Cândido Mendes, como requisito intermediário para aprovação no curso de pós-graduação em Ciências Penais.

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