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Da (im)possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos crimes de lavagem de dinheiro

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01/02/2019 às 10:00
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3. DA (IM)POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO

Como se observou no tópico “3. Bem Jurídico Tutelado Pela Lei De Lavagem De Capitais”, apresenta-se mais acertado o entendimento segundo o qual o bem jurídico que o legislador brasileiro buscou tutelar, por meio da lei de lavagem de dinheiro, foi a ordem econômico-financeira, entendida que é como o “conjunto de instrumentos que asseguram o funcionamento das relações de produção, distribuição, troca e consumo em determinada sociedade”.[24]

Nesse panorama, na esteira de Renato Brasileiro de Lima, “Partindo da premissa de que o bem jurídico tutelado pela lavagem de capitais é a ordem econômico-financeira, conclui-se que é plenamente possível a aplicação do princípio da insignificância”.[25]

Tal assim se dá, na medida em que, com o advento da Lei 12.883/2012, não existe mais um rol taxativo de crimes antecedentes, de modo que o legislador brasileiro passou a admitir, inclusive, a prática de contravenções penais para fins de tipificação do crime de lavagem de dinheiro, porquanto substituiu a elementar “crime” pela elementar “infração penal”. Por conseguinte, aumentaram-se as possiblidades de prática de infrações penais com potencial gerador de valores aptos à lavagem de capitais.

Deveras, em razão dessa mudança de paradigma, tendo o Brasil adotado uma legislação de terceira geração:

[...] a aplicação desse princípio ganha ainda mais importância em relação ao crime de lavagem de capitais, até mesmo para se evitar o risco de banalização da imputação desse crime, acarretando a paralisação das atividades das varas especializadas com uma desnecessária sobrecarga de processos referentes a condutas desprovidas de relevância penal.[26]

De ter-se em mente, no entanto, que a incidência do “princípio bagatelar” deverá observar, por óbvio, os vetores já sedimentados pela jurisprudência pátria, quais sejam, a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.[27]

Assim, estando preenchidos os requisitos supra e admitindo-se que o bem jurídico tutelado pelo crime de lavagem de dinheiro é a ordem econômica, resta saber que parâmetro poderá ser objetivamente empregado para aferir a (in)significância dos valores “lavados”.

Afora a dificuldade ínsita à matéria, vez que seria um tanto complexo afirmar qual o quantum monetário teria o condão de afetar a ordem econômico-financeira de uma nação, parece razoável a proposta de Renato Brasileiro de Lima, para quem se afigura “possível a utilização do mesmo critério utilizado para crimes contra a ordem tributária, já que tais delitos também são espécie de infração penal contra a ordem econômico-financeira”.[28]

Adotando-se tal proposta, destaca-se que, no que se refere aos crimes contra a ordem tributária, foi a própria União quem forneceu, inicialmente, um parâmetro para fim de incidência do princípio da insignificância, ao determinar a extinção de todo e qualquer crédito fiscal cujo valor fosse inferior ao de R$ 100,00 (cem reais).

Segundo se depreende do artigo 18, § 1°, da Lei n° 10.522/02: “Ficam cancelados os débitos inscritos em Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais)”. Forçoso concluir-se, nesse panorama, que, se tal numerário não gera(ria) interesse estatal no campo tributário, por óbvio não terá potencialidade para acionar a tutela repressiva penal, a qual deve atuar como ultima ratio.

Outrossim, na visão dos Tribunais, o montante estabelecido para fins de arquivamento das execuções fiscais deve ser utilizado como parâmetro para fins de aplicação do princípio da insignificância, porquanto é inadmissível que uma conduta seja irrelevante no âmbito administrativo e não o seja para o Direito- Penal, que só deve atuar quando extremamente necessário para a tutela do bem jurídico protegido, quando falharem os outros meios de proteção e não forem suficientes as tutelas estabelecidas nos demais ramos do Direito.[29]

Em razão desse entendimento e com a evolução da jurisprudência, passou-se a adotar, como parâmetro de incidência do princípio da insignificância, o valor estipulado no artigo 20[30], da Lei n° 10.522/02, com redação dada pela Lei n° 11.033/04, qual seja, R$ 10.000,00 (dez mil reais).

O Supremo Tribunal Federal, todavia, em leitura mais atualizada da matéria, já fazendo alusão às portarias 75 e 130, do Ministério Da Fazenda, de 2012 e 2013, respectivamente, começou a adotar o patamar de 20.000,00 (vinte mil reais).

Veja-se, por todos, excerto do voto do Eminente Ministro Ricardo Lewandowski, da Suprema Corte, proferido no bojo do habeas corpus número 118.000/PR:

Como se sabe, a configuração do delito de bagatela, conforme têm entendido as duas Turmas deste Tribunal, exige a satisfação, de forma concomitante, de certos requisitos, quais sejam, a conduta minimamente ofensiva, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a lesão jurídica inexpressiva.

Por outro lado, o art. 20 da Lei 10.522/2002 determina o arquivamento das execuções fiscais, sem cancelamento da distribuição, quando os débitos inscritos como dívida ativa da União forem iguais ou inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais). Esse valor foi atualizado para R$ 20.000,00 (vinte mil reais) pela Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda.

Nessa esteira, esta Segunda Turma vem assentando a orientação de que falta justa causa para a ação penal por crime de descaminho quando a quantia sonegada não ultrapassar o valor estabelecido no referido dispositivo, aplicando-se o princípio da insignificância. (sem grifos no original)

Com efeito, de forma aplaudível, tal patamar foi revisitado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, que, ao se alinhar com o Supremo Tribunal Federal, também passou a admitir o “princípio bagatelar”, em matéria de crimes tributários, em relação a valores até R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

Consoante se extrai dos julgados paradigmas, a revisão foi necessária por causa de recentes decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, bem como do parâmetro fixado pelas “recentes” portarias 75 e 130 do Ministério da Fazenda. [31]

Quando do julgamento dos recursos especiais, o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, explicou que, em 2009, a 3ª Seção firmou o entendimento de que incidiria a insignificância aos crimes contra a ordem tributária e de descaminho quando o débito tributário não ultrapassasse R$ 10 mil, conforme prevê o artigo 20 da Lei 10.522/02.[32]

Àquela época, ressaltou o precitado ministro, “o julgamento representou um alinhamento da jurisprudência do STJ ao entendimento fixado pelo STF. Todavia, em 2012, o Ministério da Fazenda editou as portarias 75 e 130, que passaram a prever, entre outros pontos, o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional nos casos de valores iguais ou inferiores a R$ 20 mil”.[33]

Hodiernamente, portanto, em revisitação ao Tema 157, a terceira seção do Superior Tribunal de Justiça passou a entender que:

Incide o princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20 mil a teor do disposto no artigo 20 da Lei 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda. [34] (sem grifos no original)

Destarte, à vista do quanto exposto, levando-se em consideração o argumento de que o crime de lavagem de dinheiro tem por bem jurídico tutelado a ordem econômico-financeira – como defendido no presente artigo –, caso o “branqueamento” do capital se opere num valor não excedente a 20.000,00 (vinte mil reais), por analogia ao tratamento dado pela jurisprudência recente dos tribunais superiores à matéria, não há(verá) qualquer revestimento típico na conduta entelada, ante a incidência, aceitável, do princípio da insignificância.

Impõe-se consignar, por relevante, que esse quantum, de 20.000,00 (vinte mil reais), para projetar efeitos na esfera da lavagem de capitais – que é um delito acessório ou parasitário –, deverá advir de crimes não tributários[35], visto que, se se tratar de infração desta natureza [tributária], a atipicidade alcança o delito primevo/principal, o qual “desaparece” do mundo jurídico. Assim, por incidência do princípio da insignificância, inexiste o crime antecedente (crime-tributário) e, com isso, não haverá que se falar em lavagem de capitais.

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Nesse panorama, à guisa de conclusão James Walker Junior e Alexandre Fragoso prelecionam que:

[...] nos crimes antecedentes tributários, em que os tributos suprimidos ou reduzidos forem inferior ao patamar de 20.000, 00 (vinte mil reais), e concomitantemente, na valoração da relevância da tipicidade matéria dessa conduta, forem verificadas a presença de determinados requisitos, deve ser reconhecido o princípio da insignificância fiscal e, consequentemente, a atipicidade da conduta, sendo que, a ocultação posterior desses valores, não caracteriza lavagem de dinheiro, pela ausência de tipicidade do crime tributário antecedente. [36]                           


CONCLUSÃO

Como se pôde observar, o regramento penal em solo brasileiro, no que diz respeito ao crime de lavagem de dinheiro, a partir de 2012, com o advento da Lei 12.883/2012, passou a ser entendido como de terceira geração, haja vista a exclusão do rol taxativo de crimes antecedentes que tinham potencial gerador de valores passíveis de lavagem.

Com isso, além de não mais existir um rol específico de crimes antecedentes, suprimiu-se a elementar “crime” e se introduziu a elementar “infração penal”, o que acabou por amplificar – ainda mais – a possibilidade de condutas ilícitas geradoras de capital escuso. Nesse contexto, nota-se claramente que até mesmo contravenções penais têm o condão de gerar numerário passível de branqueamento.

Assim, para evitar-se a banalização da grave figura ilícita da lavagem de capitais, passou-se a admitir a incidência do princípio da insignificância também nesse tipo de delito. Como, no entanto, para que tal posicionamento prevaleça, há de se admitir que, não obstante a controvérsia doutrinária e jurisprudencial que circunda o tema, o bem jurídico tutelado pela Lei 9.613/1998 é a ordem econômico-financeira.

Dessa forma, por analogia, devem-se tomar por empréstimo os parâmetros insignificantes empregados nos crimes contra a ordem tributária, elencados nas portarias 75 e 130, do Ministério da Fazenda, as quais instituem como “insignificante” o patamar de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), que foi acatado pelo Supremo Tribunal Federal, bem assim pelo Superior Tribunal de Justiça. 

Defende-se, em conclusão, que ao crime de lavagem de dinheiro também se aplica o princípio da insignificância.  Isso porque, como tem por bem jurídico tutelado a ordem econômico-financeira, nada justifica a não incidência [analógica] do princípio bagatelar, tal como disciplinado nos crimes tributários, vez que a “ratio” é a mesma. Por consequência, deve-se aplicar a máxima “ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositivo” (onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir).           

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Sobre o autor
Filipe Maia Broeto Nunes

Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Mestre em Direito Penal (sobresaliente) com dupla titulação pela Escuela de Postgrado de Ciencias del Derecho/ESP e pela Universidad Católica de Cuyo – DQ/ARG. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Internacional de La Rioja – UNIR/ESP e em Direito Penal Econômico e da Empresa pela pela Faculdade de Direito da Universidade Carlos III de Madrid - UC3M/ESP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e também Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM, em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM e em Compliance Corporativo pelo Instituto de Direito Peruano e Internacional – IDEPEI e Plan A – Kanzlei für Strafrecht, Alemanha (Curso reconhecido pela World Compliance Association). Foi aluno do curso “crime doesn't pay: blanqueo, enriquecimiento ilícito y decomiso”, da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca – USAL/ ESP, e do Módulo Internacional de "Temas Avançados de Direito Público e Privado", da Universidade de Santiago de Compostela USC/ESP. Membro da Câmara de Desagravo do Tribunal de Defesa das Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso - OAB/MT; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM; do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico - IBDPE; do Instituto de Ciências Penais - ICP; da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT; Membro efetivo do Instituto dos Advogados Mato-grossenses - IAMAT e Diretor da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim. Autor de livros e artigos jurídicos, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Filipe Maia Broeto. Da (im)possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos crimes de lavagem de dinheiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5693, 1 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67981. Acesso em: 21 nov. 2024.

Mais informações

O presente artigo foi elaborado e apresentado à Universidade Cândido Mendes, como requisito intermediário para aprovação no curso de pós-graduação em Ciências Penais.

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