Estamos vivendo tempos extraordinariamente difíceis em nosso país. Após superarmos o trauma de uma das eleições mais polarizadas de nossa história, no final do ano de 2014, com resultados, no mínimo, contestáveis, experimentamos, no curto período de pouco mais de um ano de exercício de um segundo (e conturbado mandato presidencial), a excepcionalidade do impeachment da presidente da República.
Permeando toda essa sorte de incomuns acontecimentos, uma preocupante recessão econômica emergiu como combustível para uma crise político-institucional que acabou por conduzir o Poder Judiciário a um inédito e desmesurado protagonismo (sem precedentes na história republicana), entremeado de persistentes (e inquietantes) conflitos com o Poder Legislativo, desconsiderando não somente que, se a magistratura é essencial à democracia, o parlamento igualmente o é, sob pena, como bem adverte Joaquim Falcão (Congresso e Supremo podem fazer Gol Contra; O Globo, 16/12/2016, p. 3), de trocarmos uma necessária (e concreta) constituição normativa por uma abstrata (e inefetiva) constituição semântica.
Também, resta fundamental destacar que o ineditismo dessa nova forma de atuação do Judiciário, no contexto de um surpreendente (e perseverante) quadro de incontáveis denúncias de corrupção, tem conduzido a um igualmente excepcional grau de exigência quanto à atuação por parte de seus membros, que transcende (em muito) toda a experiência acumulada em cerca de 30 ou 40 anos de existência de uma Justiça relativamente independente em nosso País.
Nesse cenário, equilíbrio e serenidade se constituem no binômio fundamental a ser necessariamente observado por todos os juízes, em todos os juízos e tribunais brasileiros.
"O Poder Judiciário se constitui, acima de tudo, em árbitro em processos de conflito e jamais em ator responsável por dar causa ao próprio conflito; situação que se apresenta quando passa a interferir, às margens dos estreitos limites de sua competência constitucional, na própria dinâmica funcional dos Poderes Legislativo e Executivo." (Ministro Gilmar Mendes; O Estado de São Paulo, 16/12/2016)
Somente obteremos êxito na superação desse grandioso desafio se os membros da magistratura nacional compreenderem o elevadíssimo grau de responsabilidade de suas novas (e renovadas) funções e, acima de tudo, o impacto (efetivo e potencial) de suas respectivas ações no mister do desempenho de suas atribuições constitucionais.
É oportuno mencionar que a prestação jurisdicional não se esgota apenas na rigorosa observância da Constituição e das leis que com ela convergem, posto que a atuação do julgador deve ser necessariamente legitimada, ao mesmo tempo em que deve possuir um inconteste conteúdo ético.
Nunca é demais lembrar que o substrato deontológico da magistratura encontra-se presente no processo de legitimação do próprio juiz e, por efeito, de seu poder jurisdicional, não obstante ser sempre verdadeiro o fato de que a legitimidade do magistrado transcende a simples valoração subjetiva, implícita na ética e na moral social, para se fundar, não só no procedimento de recrutamento e seleção, mas, sobretudo, no resultado de sua atuação criativa, - porém umbilicalmente fundamentada em preceitos técnico-jurídicos (art. 93, IX, da CF) -, que objetiva, em última análise, transformar o direito objetivo abstrato em norma sentencial concreta e efetiva.
Ademais, resta imperativo que todos os membros da judicatura compreendam que o cerne da questão da justiça, na qualidade de elemento axiológico do direito, não se encontra propriamente na valoração genérica e egocentricamente livre de cada julgador, mas, ao reverso, no rigor da aplicação racional da lei de forma serena, equilibrada e, fundamentalmente, isenta, imparcial e impessoal.
"O juiz não é livre para decidir, posto que decide sempre com fundamento na Constituição e nas leis que convergem com o texto constitucional. Os juízes, em verdade, são apenas livres de pressões externas para julgar, considerando as garantias da magistratura asseguradas na Carta Política." (Ministro Dias Toffoli em entrevista ao jornalista Roberto D'Ávila, Globo News, 12/12/2016)
É sempre válido registrar que a legitimidade democrática do magistrado não resulta de uma exclusiva delegação a priori (como na hipótese dos cargos eletivos), mas, ao contrário, de um mecanismo que se opera sempre (e conclusivamente) a posteriori, através da produção da lei inter partes, vinculada inexoravelmente ao absoluto respeito em relação à matriz jurídica básica, de natureza legislativa, que lhe é posta pelo direito constitucional e infraconstitucional vigente. Tal preceito resta tão importante que o Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), preocupado com os constantes julgamentos procedidos por sentenças genéricas e com base em conceitos peculiares relativos ao legal e ao justo, estabeleceu expressamente, em seu art. 489, restrições inéditas à pretensa liberdade de decidir dos juízes, remodelando, inclusive, a arquitetura construtiva dos julgados (e de suas explícitas motivações) e expurgando definitivamente a possibilidade de decisões judiciais contaminadas por concepções pessoais absolutas e soberanas.
"Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
(...)
II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
(...)
§1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial (...) que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes (...)
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão."
Não é por outro motivo que a fundamentação (necessariamente) técnica das decisões judiciais sempre foi e, de forma mais marcante e explícita, continua a ser (inafastavelmente) obrigatória, constituindo-se, inclusive, em uma insuperável garantia constitucional, na exata medida em que o próprio parâmetro vinculativo do poder do juiz exterioriza-se, precisa e pontualmente, na formulação das pertinentes razões de decidir, por ser exatamente neste momento que o julgador torna transparente (e público) que respeitou o devido processo legal.
"(...) o mínimo que se espera é que o Judiciário aja de acordo com a lei (...) convencer os magistrados de que sua opinião pessoal não é lei ainda é missão inconclusiva e árdua." (Silvia Correia; O Resistente Judiciário, O Globo, 13/10/2016, p. 15)
Jamais devemos nos esquecer de que não é propriamente o juiz quem julga, e sim o Estado-juiz que aquele representa, defluindo deste fato a conclusão lógica de que não há espaço para o exercício de um condenável protagonismo individual eivado de vaidades (ou mesmo de outros pecados da alma), - e, muito menos, de um solipsismo judicial congênito -, sendo certo, ainda, que as consequências (e os efeitos político-jurídicos) de uma decisão judicial devem ser sempre ponderadas, integrando-se, necessariamente, ao seu processo de elaboração conclusiva.
"As consequências de uma decisão judicial devem ser sempre consideradas e, portanto, fazer parte da construção de sua elaboração." (Denis Lerrer Rosenfield; Esculhambação Institucional, O Globo, 12/12/2016, p. 12)
Vale advertir, em tom sublime e conclusivo, que a missão primordial do Judiciário é a obtenção da paz social. Cumpre, portanto, ao Poder Judiciário, de forma cogente e insuperável, a resolução (administração) dos conflitos, com a consequente pacificação da sociedade, e não, de forma diametralmente oposta, como desejam (em seu atuar) alguns juízes, a exacerbação dos ânimos, em nome de uma utópica (e desautorizada) imposição de seus (subjetivos) postulados de justiça, muitas das vezes supostamente obtidos (e indevidamente incorporados ao patrimônio intelectual do magistrado) por intermédio de um suposto (porém, inexistente) direito alternativo.
"Em uma democracia os juízes hão de ser submissos às leis , sob risco de se transformar o Estado de Direito em um Estado de Juízes" (Eros Roberto Grau; Juízes que Fazem as suas Próprias Leis, O Globo, 11/12/2016, p. 15)
Outrossim, é sempre válido rememorar que o povo não é (em verdade) soberano, uma vez que soberanos são, em essência, os valores em que se fundam uma democracia e, por consequência lógica, uma sociedade autenticamente democrática. Estes valores se encontram, sempre e necessariamente, consagrados na Constituição (na qualidade de fruto do Poder Constituinte originário que formalizou os verdadeiros ideais de um povo, concebendo uma autêntica Nação), cabendo, em última análise, ao Poder Judiciário a extraordinária tarefa de defendê-los, inclusive ao eventual arrepio da oscilante vontade popular (momentaneamente majoritária).
Por fim, vale registrar que o Poder Judiciário representa, por meio de seus juízes, a última esperança de um povo sem esperança e, neste sentido, todos os olhos da sociedade encontram-se naturalmente voltados em torno da expectativa de uma correta, serena e equilibrada atuação de todos os membros da magistratura, sem qualquer exceção ou exclusão.