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O ECAD, o compositor e o chutador de chapéu

01/06/1999 às 00:00
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O polegar coçou sobre o controle remoto quando vi na telinha a figura grotesca que lembrava Mazzaropi chutando um chapéu de palha pelo palco. Logo percebi que se tratava de um velho quadro dos programas de auditório usado por vários "animadores" desde a fundação da TV brasileira: "você tiraria o chapéu para fulano ?". Fiquei curioso: afinal quem mereceria tamanho ódio? O animador, Sr. Raul Gil, chutava e berrava: "então, você tiraria o chapéu para esta gente ?" Quem teria que responder era uma dupla sertaneja. O rapaz que falava _ o outro só concordava, deve ser o vício da segunda voz _ não perdeu a chance e sugeriu invasão, tapas na cara, enfim mostrou valentia. Então mostraram o nome escrito no chapéu: ECAD !

Vou logo adiantando que a questão não é propriamente o jovem sertanejo. O rapaz talvez nem saiba o que significa a sigla, quanto mais a sua história. Mas o animador, o Sr. Raul Gil, este com certeza sabe. E muito bem ! Afinal seus patrões atuais, os donos da TV Record, estão no topo da lista dos grandes caloteiros do Direito Autoral: devem a bagatela de R$ 20 MILHÕES ao ECAD, isto é, ao compositor brasileiro. Não estão sózinhos: ao seu lado, graças à impunidade que reina no país, está a TV Manchete (R$ 11 MILHÕES), a CNT (R$ 9 MILHÕES) centenas de rádios, casas de espetáculos, clubes, cinemas (R$ 70 MILHÕES), prefeituras e, principalmente, a TV a cabo e por assinatura que estão há sete anos no Brasil e, inacreditávelmente não pagam um tostão sequer de Direito Autoral (devem aproximadamente R$ 100 MILHÕES), fato único na história desta nova tecnologia no mundo.

Mas o que é, afinal, o ECAD ?

Já ouvi a pergunta até mesmo de jornalistas especializados em música. O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) foi fundado em JANEIRO_ 1977, há 22 anos portanto. Sua criação se deve à luta heróica do compositor brasileiro pelos seus direitos em plena Ditadura Militar. A necessidade de um órgão único para arrecadar e distribuir o Direito Autoral vinha do caos que imperava nesta área, com as várias associações e sociedades competindo entre si, enfim, o caldo de cultura ideal para a proliferação da picaretagem, da corrupção e do calote. Os usuários de música, isto é, os donos de rádio, casas de shows, bares, teatros etc, se viam num verdadeiro tiroteio de fontes cobradoras e ninguém, ou muito poucos, queria pagar o pato, isto é, o compositor. A única saída para acabar com este caos era copiar o que acontece na quase totalidade dos países industrializados: criar um órgão que centralizasse toda arrecadação e distribuição do Direito Autoral. Surgiu assim o ECAD. Sua administração seria exercida pelas associações de compositores existentes (hoje em número de 10 !) cada uma com direito a determinado número de votos correspondentes à sua arrecadação. O ECAD, portanto, desde sua criação é um órgão civil, como são a CBF, a OAB, a CNBB etc. Não é autarquia nem fundação, não é um antro de marajás do serviço público e, principalmente, não é o patrão do compositor brasileiro: é um órgão técnico e sua única função é arrecadar e distribuir o dinheiro da execução de músicas. Também não é sua competência coletar a renda da venda de discos, função das gravadoras e editoras.

A coisa portanto é simples: todo mundo que usa comercialmente a música como atração principal ou secundária TEM QUE PAGAR AO ECAD por este uso. Só assim o compositor irá receber o que lhe pertence. Não há outro caminho legal. O vilão do Direito Autoral, não é portanto o ECAD como querem fazer crer os caloteiros, os mal intencionados e os compositores otários que fazem o jogo desta gente. O inimigo do compositor brasileiro nesta área é principalmente O GRANDE USUÁRIO DE MÚSICA que não quer pagar. Você sabia, caro leitor, que as mais famosas casas de shows do Rio e de São Paulo, o Canecão e o Olympia, NÃO PAGAM Direitos Autorais ? Você entende agora leitor, a quem interessa a desmoralização do ECAD ? E esta gente é criativa em seu intento, chutar chapéu é o de menos. Deputados donos de TV e rádios chegaram ao cúmulo de criarem uma "CPI" do ECAD" na tentativa de extinguirem o órgão a quem deviam para assim zerarem suas dívidas ! E agora surge mais uma novidade _ ficamos sabendo pelo Jornal da Tarde que em São Paulo um grupo afirma ter criado um outro Escritório único, uma espécie de "ECAD do B", o que parece piada mas é triste. E lá estão os eternos "compositores injustiçados" e seus insignes advogados ameaçando "invadir aquilo lá", como se estivéssemos em uma Serra Leoa e não num país que tem uma indústria cultural potente e uma música respeitada e admirada como das melhores do mundo. Há uma nova lei do Direito Autoral (nº 9.610/98) votada pelo Congresso Nacional depois de 8 anos de estudo e discussões, sancionada pelo Presidente Fernando Henrique e que está em vigor desde 20 de junho de 1998 e esta lei diz claramente que deve haver um só órgão arrecadador e distribuidor do Direito Autoral e estes cidadãos afirmam que este órgão não é o ECAD, com seus 22 anos de existência, mas sim o deles, recém "fundado". A intenção de confundir é tão evidente que salta aos olhos o baixíssimo conceito que esta gente tem do compositor brasileiro. Para eles somos de fato uns otários, uns alienados completos. O ECAD tem problemas _ e o maior deles é o calote dos grandes usuários de música _ mas sua solução não passa pela volta ao modelo de arrecadação anterior nem pela sistemática campanha difamatória empreendida por esses senhores.

A Justiça brasileira poderia dar um fim a este quadro lamentável que caracteriza o Direito Autoral no Brasil. Infelizmente não é o que acontece, como denunciou em artigo recente no Jornal do Brasil ("Socorro Justiça") o compositor Fernando Brant. As ações movidas pelo ECAD em nome dos compositores contra os caloteiros se arrastam, as sentenças são contraditórias, enfim, um quadro desesperador. Especialistas em Direito Autoral estão criando no Rio um dossie para ser encaminhado às autoridades comprovando esta realidade. Só quando um grande usuário de música _ como as TVs a cabo _ for obrigado a pagar o que deve sob o risco de punição exemplar entraremos num estágio mais avançado de civilização e cidadania.

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Pois é, caro leitor, quando aparecer na mídia um cidadão furibundo atacando "este tal de ECAD" e posando de defensor do pobre e explorado compositor brasileiro fique de olho. Procure saber quem é a figura e a quem serve. Ele pode estar fazendo o papel daquele sujeito que sai gritando ladrão, ladrão no meio da rua. O ladrão pode ser ele.

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Sobre o autor
Abel Silva

compositor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Abel. O ECAD, o compositor e o chutador de chapéu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 32, 1 jun. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/684. Acesso em: 24 nov. 2024.

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