A pergunta no título não seria feita na Renascença, com luvas de pelica batendo ao rosto para um desafio de sabres ou floretes, ou no alto comissariado do coronelismo nacional com suas tocaias e chumbo grosso.
Porém, no Brasil do século respectivo a 2018, a “honra funcional” tem mais nobre custo do que a Liberdade, o princípio da inocência e a vida das pessoas. Veja-se, no detalhe, que se alega “honra funcional” – devido ao cargo ou função de determinada autoridade policial – e não exatamente de uma pessoa/autoridade em especial.
O fato gerador de toda essa história é uma investigação perpetrada pela polícia federal de Santa Catarina que, em busca de malfeitos realizados com dinheiro público, culminou no suicídio do reitor da Universidade Federal (UFSC). O próprio relatório da polícia federal, divulgado após o trágico e por demais ato simbólico, nada averiguou de irregular na “vida funcional” do reitor. Só que aí já estava morto. E morta seguiria a esperança de sairmos desse Estado Policial – o primo mais antigo foi conhecido no Estado Nazista.
O reitor, Luiz Carlos Cancellier, foi entregue à carceragem, despido, checado em todos os orifícios de seu corpo, e acabou em cela de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Como se sabe, o pior tipo de cela – que faz tremer até Fernandinho Beira-Mar. Pelo impacto provocado na dessocialização do indivíduo, ou seja, na perda acentuada de sua capacidade de interação e de sociabilidade, o indivíduo sente aflorar o sentimento de abandono, isolamento, perda da cognição e chega à loucura.
Alguns passam mais tempo nesse regime, e suportam melhor suas condições ou demoram mais tempo para manifestar seus efeitos. O referido Beira-Mar declarou sua insanidade crescente, “fábrica de fazer loucos”, em algumas reportagens. Pois bem, se Beira-Mar – que é um criminoso e assassino em série – sentiu os graves efeitos desse tipo de aprisionamento, imagine-se um professor, um intelectual, acostumado pela rotina de sua formação e trabalho às longas digressões e filosofias da vida e de seus significados.
Uma vez recolhido em prisão domiciliar, sem direito a receber ajuda ou visitas de amigos e familiares, o reitor Cancellier desenvolveu outros tantos males e estranhamentos sociais. A crise de depressão não encontrou fim diante da superexposição condenatória (sem autoria e nem materialidade) e, certo dia, em que pode sair de seu apartamento, jogou-se do sétimo andar de um shopping em Florianópolis.
Na sequência dos fatos, na comemoração fúnebre dos 57 anos da universidade (sic), em dezembro passado, professores foram entrevistados pela TV universitária e lamentaram a perda do colega e dirigente. Atrás deles, estudantes hastearam faixas e cartazes de repúdio à tal investigação e ao Estado Policial que ali revelava seus piores atores e efeitos. Os professores não se referiram diretamente às faixas de dita “calúnia funcional”.
De qualquer modo, esses professores e os atuais dirigentes da UFSC foram investigados e agora são denunciados – pelo Ministério Público Federal – por crime de “calúnia contra a honra funcional”. O motivo da investigação, todos já sabem, é o protesto dos alunos contra o Estado Policial que culminou na morte anunciada e trágica: “abuso de autoridade” no passado e no presente.
O que isto nos ensina? Muitas coisas. Mas, no dia de hoje, nos ensina que a honra funcional, seja lá o que queiram alegar sob essa capa-espada do Estado Policial, é mais notável do que a vida de um ser humano. Uma autoridade federal, notável professor do ensino superior, pode ter sua vida ceifada, depois de passar pelos piores tipos de humilhação e de execração pública, mas não se pode alertar para o nefasto perigo à vida pública, ora causado pelo clarividente abuso de poder.
Realmente, muitos não sabem que vivemos sob a ditadura. E o pior é descobrir quando for tarde demais. Como em muitas ocasiões, despeço-me da honra funcional e declaro publicamente minha infinita vergonha de ser brasileiro. Como em tantas outras ocasiões, também declaro meu arrependimento de ter ensinado direito, em Cursos de Direito.
Nunca ensinei em Santa Catarina, no entanto, é certo que muitos desses possíveis membros do Estado Policial estejam no Estado de São Paulo.
Por isso, lamento minha passagem de 15 anos no ensino do direito. Lamento mais ainda que a morte de Cancellier me lembre Herzog, o Caso Dreyfus, Amarildo, Marielle... e um artigo intitulado “Eu acuso!”.