Capa da publicação A banalização da reserva do possível e a necessidade de efetivação dos direitos sociais
Artigo Destaque dos editores

Da banalização da reserva do possível e a efetivação dos direitos sociais

Exibindo página 2 de 2
17/09/2018 às 16:00
Leia nesta página:

4 ANÁLISE DO CONTEXTO SÓCIOECONÔMICO: BRASIL E ALEMANHA

Após analisado o contexto jurídico do problema, a seguir, faremos breves relatos acerca das diferenças do contexto socioeconômico entre Brasil e Alemanha, que devem nortear o estudo do instituto da Reserva do Possível e justificar a adaptação no momento de aplicação pelo Poder Judiciário.

Enquanto a Alemanha ocupa o 5º lugar no Ranking do Índice de Desenvolvimento Humano[22] (IDH) 2013, com IDH de 0.92 e renda nacional bruta per capita de $ 35.431, o Brasil se encontra em 85º lugar, com IDH de 0.75 e renda nacional bruta per capita – $ 10.152.

Em questão de educação, a taxa de analfabetismo[23] na Alemanha é estimada em 1%, enquanto no Brasil, beira a 9%.

Não é que se defenda a não aplicação do instituto, ocorre que o contexto em que surgira condiz com a realidade daquele país, de forma que, ao trazê-la para a situação aqui existente, é justo que se faça adequações, pois um mero recorte não se encaixaria, uma vez que o Estado social brasileiro está muito aquém do Estado social alemão, como demonstram os dados acima.

Assim, deve-se moldar o instituto, porém, de forma coerente, pois na Alemanha, o Estado oferece tantos benefícios quantos possíveis e há alto grau de efetivação dos direitos sociais, enquanto no Brasil, não se dispõe sequer o mínimo essencial.

O mínimo essencial, em contraposição à reserva do possível, é um núcleo de direitos mínimos necessários a uma existência condigna. São prestações positivas por parte do Estado, consideradas substanciais para uma vida digna, com um mínimo de respeitabilidade e para que se possa exercer a liberdade, tais como alimentação, saúde, educação, moradia, etc.

Assim, não há que falar em utilização de Reserva do Possível em um Estado não oferece sequer o mínimo essencial ao cidadão que o mantém através da contribuição e outorga de poderes, e, para piorar, utiliza-se de tal instituto para se imiscuir de uma obrigação constitucional.

Toma-se, como exemplo, ainda, a Alemanha que, entre os países com maior grau de retorno tributário está na 14ª posição, enquanto o Brasil figura entre os piores[24] na relação arrecadação/retorno, pois muito arrecada e pouco devolve através de efetivação de direitos sociais. Atualmente, ocupa o 30º lugar[25].

Por isso, defende-se, neste trabalho, a ideia de que um Estado que gaste mais de 40% a dívida pública[26], não pode alegar falta de recursos quando, em comparação com os gastos com saúde, dispõe apenas 8,7%[27] de seu orçamento para a saúde.

“A taxa é inversamente proporcional à de muitos países ricos e de alguns emergentes, em que a maior parte dos investimentos na saúde é feita pelos governos, como é o caso da Noruega (86%), Luxemburgo (84%), Grã-Bretanha (83%) e Japão (80%), além de Turquia (75%), Colômbia (74%) e Uruguai (68%)”, diz Luís Guilherme Barrucho, colunista da BBC Brasil em São Paulo.

Veja-se parte de uma matéria sobre orçamentos na revista Último Segundo[28]:

O diretor do IPEA indica que em países desenvolvidos, especialmente na Europa, a média de investimento em saúde varia entre 6% e 7% do PIB, sendo a maior parte concentrada nos gastos públicos. No Brasil, a média global é de 6,8% do PIB, considerando que estados, municípios e União respondem por 3%. “O investimento privado aqui é maior e esse é o problema, porque a maior parte da população não pode pagar e isso gera desigualdade de acesso”, avalia.

Ainda em outro estudo[29]:

No exercício 2012/2013, orçamento federal foi cerca de R$ 2,276 tri, sendo que R$ 79 bi foram para a saúde e R$ 38 bi para educação, representando 6,9% e 3,3%, respectivamente, do total das despesas primárias (de R$ 1,1 tri).

Em Países com boa qualidade de educação e saúde esse percentual bate em 20% a 40%.

A Constituição federal determina que os investimentos mínimos em educação e saúde sejam de 25% e 12%, respectivamente. Mas, como vimos, gastamos 3,3% e 6,9% respectivamente.

Ou seja, não estamos defendendo, aqui, a não aplicação da reserva do possível, ao contrário, deve-se, sim, aplicá-la, mas com cautela e intensa ponderação, para que este instituto que é deveras importante e, por que não dizer?, um avanço para a democracia, não seja banalizado, como tem ocorrido, pois nas mãos de um governo mau intencionado, torna-se um forte bloqueio para o cumprimento de suas obrigações, mas, nas mãos de um Poder Judiciário maduro e sábio, pode ser um bom instrumento de gestão orçamentária e boa uma forma de controle das exigências desproporcionais e desarrazoadas do cidadão e da própria sociedade.


5 CONCLUSÃO

Portanto, a aplicação inicial da reserva do possível não teve como finalidade servir de argumento para que o Estado negue a efetivação de direitos sociais dos cidadãos; e sim, numa rasa análise, evitar que seja obrigado a prover atividades ou serviços, de forma não razoável para cidadãos específicos, evitando tratamento desigual entre os administrados.

O que se pode perceber, no cenário jurídico atual, é um movimento de banalização na utilização do princípio. Muito embora existam julgados que se atenham a sua essência original, ainda é possível se vislumbrar um equívoco interpretativo por parte da doutrina pátria, o que acaba por desaguar numa jurisprudência que, por muitas vezes, permite ao Estado se furtar de sua obrigação de efetivar garantias constitucionais sob o véu da reserva do possível.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BARROSO, Luis Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo.

BARROSO, Vanessa Pinheiro da Silva. Direito à saúde e a posição dos tribunais quanto a argumentação da cláusula da reserva do possível. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 jun. 2012. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.37675&seo=1>. Acesso em: 10 Jul 2014,

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo : Editora Malheiros, 2006, p. 563.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2004, p. 481.

CLÈVE, Clemerson Mèrlin. Desafio da efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br.

FALSARELLA, Christiane, “A reserva do possível como aquilo que é razoável se exigir do Estado”.

FILHO, José Carneiro, “A reserva do financeiramente possível e seus paradigmas”; acessado em 09/05/2014.

FREIRE JR., Américo Dedê; “O controle judicial de políticas públicas no Brasil”.

JÚNIOR, Américo Bedê Freire, “O controle judicial de políticas públicas no Brasil”; FDV, Faculdades de Vitória, Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais, 2004.

KRELL, Andréas Joachin. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 13.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva. 2009.

MARINHO, Tiago de Lima, Direito à saúde e o Supremo Tribunal Federal: mudanças de posicionamento quanto ao fornecimento de medicamentos. Conteúdo Jurídico; Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13813#_ftn17. Acesso em: 11 jun. 2014.

OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de. CALIL, Mário Lúcio Garcez (2008), “RESERVA DO POSSÍVEL, NATUREZA JURÍDICA E MÍNIMO ESSENCIAL: PARADIGMAS PARA UMA DEFINIÇÃO”.

OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CALIL, Mário Lúcio Garcez; “RESERVA DO POSSÍVEL, NATUREZA JURÍDICA E MÍNIMO ESSENCIAL: PARADIGMAS PARA UMA DEFINIÇÃO”;

OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008.

REsp 169.876-SP, DJ 21/9/1998, e Ag no REsp 252.083-RJ, DJ 26/3/2001. Rel. Min. Franciulli Netto, julgado em 19/12/2003 apud FILHO, José Cláudio Carneiro, A reserva do financeiramente possível e seus paradigmas.

SARLET, Ingo W., Transcrição da audiência pública sobre fornecimento de medicamentos no Supremo Tribunal Federal Federal (STF). Discurso proferido pelo Prof. Ingo W. Sarlet. Dia 27 de abril de 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

Sarlet, Ingo Wolfgang., A eficácia dos direitos fundamentais. 2001. p. 49-50.

SARMENTO, Daniel. Ubiquidade Constitucional: Os dois lados da moeda. Revista de Direito do Estado - v.1, n. 2, abr./jun. 2006.

SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In Revista dos Tribunais, n. 798, 2002, p. 32.

STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 10/08/2018.

STJ. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp.>. Acesso em: 10/08/2018.


Notas

[1] Paulo Bonavides adota o termo ‘gerações’, já Pedro Lenza, prefere o termo ‘dimensões’.

[2] BVerfGE é a abreviação de Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts (decisões do Tribunal Constitucional Federal).

[3] No original: Artikel 12 [Berufsfreiheit] (1) Alle Deutschen haben das Recht, Beruf, Arbeitsplatz und Ausbildungs- stätte frei zu wählen. Die Berufsausübung kann durch Gesetz oder auf Grund eines Gesetzes geregelt werden.

[4] Decisão consultada em Schwabe, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Organização e introdução por Leonardo Martins. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 656-667. Para conferir no idioma original, v.http://www.servat.unibe.ch/dfr/bv033303.html.

[5] Schwabe, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, p. 663. No original: “(...) stehen sie doch unter dem Vorbehalt des Möglichen im Sinne dessen, was der Einzelne vernünftigerweise von der Gesellschaft beanspruchen kann”.

[6] Aqui serão empregados indistintamente os termos razoavelmente e racionalmente, sem nos atermos ao conceito técnico de razoabilidade como “compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como à aferição da legitimidade dos fins”. SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In Revista dos Tribunais, n. 798, 2002, p. 32.

[7] Schwabe, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, p. 664 apud FALSARELLA, Christiane, “A reserva do possível como aquilo que é razoável se exigir do Estado”.

[8] Schwabe, Jürgen. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, p. 666. Sobre proporcionalidade, v. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. Acerca da distinção entre razoabilidade e proporcionalidade, consultar SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável, p. 23 a 50 apud FALSARELLA, Christiane, “A reserva do possível como aquilo que é razoável se exigir do Estado”.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

[9] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[10] Oliveira, Rafael Sérgio Lima de. Calil, Mário Lúcio Garcez (2008), “Reserva do possível, natureza jurídica e mínimo essencial: paradigmas para uma definição”. Pesquisado em 02/02/2014 <www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/11_369.pdf>.

[11] OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008.

[12] Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2001. p. 49-50.

[13] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[14] JÚNIOR, américo Bedê Freire, “o controle judicial de políticas públicas no Brasil”; FDV, Faculdades de Vitória, Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais, 2004.

[15] OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008.

[16] OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008.

[17] ARE 639337 AgR/SP. AG.REG. no Recurso Extraordinário com Agravo.

Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento: 23/08/2011, AGTE.: município de São Paulo, AGDO.: Ministério Público do Estado de São Paulo.

[18] RE 271286 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/09/2000, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJ 24-11-2000 PP-00101 EMENT VOL-02013-07 PP-01409

[19] REsp Nº 1.185.474 – SC, Relator Ministro Humberto Martins.

[20] Apud MARINHO, Tiago de Lima, Direito à saúde e o Supremo Tribunal Federal: mudanças de posicionamento quanto ao fornecimento de medicamentos. Conteúdo Jurídico; Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13813#_ftn17. Acesso em: 11 jun. 2014.

[21] Apud Filho, José Cláudio Carneiro, A reserva do financeiramente possível e seus paradigmas.

[22] ESTADÃO DADOS. Disponível em: <http://blog.estadaodados.com/ranking-do-indice-de-desenvolvimento-humano-idh-2013/>. Acesso em 13 de agosto de 2014.

[23] SUA PESQUISA. Disponível em <http://www.suapesquisa.com/paises/alemanha/>. Acesso em 13 de agosto de 2014.

[24] CENÁRIO MT. Disponível em <http://www.cenariomt.com.br/noticia/317028/brasil-tem-a-12a-maior-carga-tributaria-do-mundo-e-o-pior-retorno-a-populacao.html> Acesso em 13 de ago de 2014.

[25] O POVO. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/politica/2012/01/24/noticiaspoliticas,2772726/entre-30-paises-com-maior-carga-tributaria-do-mundo-brasil-da-menor-retorno-a-populacao.shtml Acesso em 13 de ago de 2014.

[26] IHU. Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/513556-orcamento-federal-de-2013-42-vai-para-a-divida-publica-entrevista-especial-com-maria-lucia-fattorelli> Acesso em 13 de ago de 2014.

[27] BBC. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/04/130402_saude_gastos_publicos_lgb.shtml Acesso em 13 de ago de 2014.

[28] ULTIMO SEGUNDO. Disponível em <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2012-09-06/saude-executa-apenas-50-orcamento-de-2012.html> Acesso em 13 de ago de 2014.

[29] CASA DO BRINCAR. Disponível em < http://www.casadobrincar.com.br/site/como-sao-os-gastos-do-governo-federal-com-a-copa-saude-e-educacao-no-brasil/> Acesso em 13 de ago de 2014

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Dannielle Oliveira

Advogada autônoma, amante do direito, da música e da literatura. Atualmente na Europa em busca de melhorar o inglês e acrescentar o francês ao seu currículo. Pretende se especializar em Direito Internacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Dannielle. Da banalização da reserva do possível e a efetivação dos direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5556, 17 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68576. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado ao Departamento de Pós-Graduação e Extensão da Anhanguera Uniderp, como requisito parcial à obtenção do grau de especialista em direito constitucional.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos