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O decreto de Garantia de Lei e Ordem em Roraima e a afronta ao princípio da subsidiariedade

31/08/2018 às 11:00
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O Presidente Temer publicou, em 29.08.2018, Decreto de GLO autorizando o emprego das Forças Armadas nas fronteiras e rodovias de Roraima, para garantir a segurança de brasileiros e imigrantes venezuelanos na região. É realmente necessário?

Foi publicado no Diário Oficial da União, em 29.08.2018, decreto do Presidente da República que autoriza o mister da “Garantia da Lei e da ordem em Roraima”. O decreto autoriza o emprego das Forças Armadas, com poder de polícia, nas fronteiras e rodovias de Roraima. Em tese, tem por objetivo garantir a segurança de brasileiros e imigrantes venezuelanos na região, bem como atuar no fluxo migratório causado pela crise da Venezuela, que, segundo o Presidente da República, “ameaça a harmonia de todo o continente”.

Contextualizando, a cidade de Pacaraima, em Roraima, é o único ponto de entrada oficial entre o Brasil e a Venezuela, embora existam rotas ilegais. Estima-se que cerca de 500 (quinhentos) a 800 (oitocentos) venezuelanos entrem, por dia, pela fronteira do Estado.

A tensão ganhou destaque nos noticiários a partir de pontuais ocorrências: alguns moradores da cidade de Pacaraima alegam que os refugiados têm preferência no atendimento de serviços públicos e declaram o aumento da violência no município após a entrada dos venezuelanos no País. Ainda segundo noticiado, barracas de venezuelanos montadas em um acampamento em Pacaraima foram destruídas pela população, que, por sua vez, fez circular um carro de som pelas ruas da cidade pedindo a expulsão dos estrangeiros.

Segundo a ONU, aproximadamente 2,3 milhões de venezuelanos já fugiram do país e, de acordo com o Governo Federal, quase 128 mil venezuelanos entraram no Brasil por Pacaraima entre 2017 e junho de 2018, ainda que mais da metade tenha deixado o país por voltar para a Venezuela (31,5 mil) ou ir para outros países (37,4 mil).

Nessa conjuntura, em 28.08.2018, foi assinado pelo presidente Michel Temer um decreto, que dispõe, literalmente:

Art. 1º Fica autorizado o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, no período de 29 de agosto a 12 de setembro de 2018, nas seguintes áreas do Estado de Roraima:

I - faixa de fronteira Norte e Leste; e

II - rodovias federais.

§ 1º O emprego das Forças Armadas ficará limitado às competências federais nas áreas de atuação a que se referem os incisos I e II do caput.

§ 2º O Ministro de Estado da Defesa definirá a alocação dos meios disponíveis para o emprego a que se refere o caput.

A despeito da norma presidencial, em um evento ocorrido em 25.08.2018, o Presidente Michel temer afirmou que “as nossas fronteiras estão abertas”.

Quanto à denominada garantia da lei e da ordem, prevista no artigo 142, da Constituição Federal, a medida já foi empregada 29 (vinte e nove) vezes entre 2010 e 2017, servindo ao esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem.

Sobre as Forças Armadas, é a literalidade da redação do artigo 142, da Constituição Federal:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Imprescindível, assim, buscar-se um conceito da “lei e da ordem”, mencionados no dispositivo constitucional.

Antes, porém, convém colacionar a lição de Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, para os quais “o Presidente da República é, para todos os fins, o Comandante Supremo das Forças Armadas”. (Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 12. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2017. p. 843).

Extrai-se, assim, a premissa de que o Presidente da República é o competente para determinar que a Marinha, o Exército e a Aeronáutica garantam a Lei e a Ordem. Em outros termos, estas instituições podem atuar, excepcionalmente, na segurança interna do País.

No entanto, a atuação das Forças Armadas para a proteção da Lei e da Ordem deve ocorrer de maneira subsidiária. É, precisamente, o ensinamento de José Afonso da Silva:

"Só subsidiária e eventualmente lhes incumbe a defesa da lei e da ordem, porque essa defesa é de competência primária das forças de segurança pública, que compreendem a polícia federal e as policias civis e militar dos Estados e do Distrito Federal. Sua interferência na defesa da lei e da ordem depende, além do mais, de convocação dos legitimados representantes de qualquer dos poderes federais: Presidente da Mesa do Congresso Nacional, Presidente da República ou Presidente do Supremo Tribunal Federal." (SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed., São Paulo: Malheiros, 1992, p. 772).

Ou seja, apesar de o artigo 84, da Constituição Federal de 1988, expressamente prever a competência privativa do Presidente da República para “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”, além de para “exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos”, a Defesa da Lei e da Ordem pelas Forças Armadas deve ocorrer de modo acessório, auxiliar, secundário.

Isso porque a segurança pública é exercida, primariamente, por órgãos categoricamente colacionados na Constituição Federal: a polícia federal; a polícia rodoviária federal; a polícia ferroviária federal; as polícias civis; e as policiais militares e corpos de bombeiros militares.

Dentre as funções de todos esses órgãos, é possível destacar as seguintes: apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União, assim como outras infrações com repercussão internacional; exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; patrulhar ostensivamente as rodovias e ferrovias federais; apurar infrações penais comuns; o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública; a execução de atividades de defesa civil.

Aliás, nesse sentido é, igualmente, a Portaria Normativa Número 186, do Ministério da Defesa, que, em seu item 2.1.6, traz a seguinte redação:

2.1.6 Embora se assemelhe a ações de Garantia da Lei e da Ordem, a atuação das Forças Armadas, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em cooperação com órgãos do Poder Executivo, especificada pelo art. 16-A da LC 97/1999, é atribuição subsidiária.

Reforçando a ideia, é a dicção do artigo 15, parágrafo 2º, da Lei Complementar Número 97, de 09 de Junho de 1999, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas:

§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

Em relação à subsidiariedade da atuação das Forças Armadas na segurança pública interna do País, outros dispositivos da mesma Lei Complementar assim consignam:

Art. 1º. Parágrafo único. Sem comprometimento de sua destinação constitucional, cabe também às Forças Armadas o cumprimento das atribuições subsidiárias explicitadas nesta Lei Complementar. [...]. Art. 8º A Marinha, o Exército e a Aeronáutica dispõem de efetivos de pessoal militar e civil, fixados em lei, e dos meios orgânicos necessários ao cumprimento de sua destinação constitucional e atribuições subsidiárias. [...]. Art. 16. Cabe às Forças Armadas, como atribuição subsidiária geral, cooperar com o desenvolvimento nacional e a defesa civil, na forma determinada pelo Presidente da República. [...]. Art. 16-A. Cabe às Forças Armadas, além de outras ações pertinentes, também como atribuições subsidiárias, preservadas as competências exclusivas das polícias judiciárias, atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, independentemente da posse, da propriedade, da finalidade ou de qualquer gravame que sobre ela recaia, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de: I - patrulhamento; II - revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e: III - prisões em flagrante delito.

Em síntese, portanto, as missões de Garantia da Lei e da Ordem ocorrem nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem.

A medida, por exemplo, foi utilizada para a pacificação do Governo Estadual em diferentes comunidades do Rio de Janeiro, no “Rio + 20”, na visita do Papa Francisco ao Brasil, em 2013, na Copa do Mundo e nos Jogos Olímpicos.

Relativamente à subsidiariedade, ressalta Luís Roberto Barroso:

O procedimento estabelecido na Lei Complementar 97/99 é plenamente compatível com esse modelo cooperativo de federação, sem deixar, tampouco, de se informar pelo princípio da subsidiariedade. Aplicado à organização federativa, esse princípio leva à impossibilidade de o Governo da União se incumbir de tarefas que os governos estaduais possam realizar. Foi nesse sentido que a Constituição atribuiu aos Estados a competência em matéria de segurança pública. Mas, de acordo com o artigo 15, parágrafos 2º e 3º, da Lei Complementar 97/99, a atuação federal só se justifica quando o Estado-membro for incapaz de realizar sua tarefa, por terem se esgotado os meios de que dispõe. Além disso, mesmo nessa hipótese, o emprego das Forças Armadas será feito “de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado”, de acordo com o artigo 15, parágrafo 4º, da Lei complementar 97/99. Daí se depreende que a atuação federal não precisará se estender por todo o território do estado, podendo se restringir apenas a áreas específicas, em que a presença das Forças Armadas se mostre necessária doravante. Nessas áreas, “o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações” passará para a autoridade federal encarregada das operações, o que deverá se fazer por ato formal do Governo do Estado. (Disponível em <https://www.conjur.com.br/2008-jun-26/atuacao_forcas_armadas_excepcional?pagina=12>).

Igualmente, quanto à atuação esporádica das Forças Armadas, enfatiza Uadi Lâmmego Bulos:

“Realmente, a missão precípua das Forças Armadas é a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, que harmônicos e independentes (art.2º), têm a sua fonte nas aspirações populares (art. 1º, parágrafo único). Esporadicamente, contudo, incumbe-lhes defender a lei e a ordem interna, atribuições típicas da Segurança Pública, exercidas através das polícias civil e militar dos Estados e do Distrito Federal. Nesse ínterim, é dado aos chefes de qualquer dos três Poderes do Estado o direito de convoca-las”. (BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. Forense, 2008. p. 1169).

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Destacada a imprescindibilidade de atuação subsidiária pelas Forças Armadas, convém registrar alguns conceitos legais que envolvem a “Ordem Pública”.

De acordo com o Decreto Número 88.777, de 30 de Setembro de 1883, o conceito de grave perturbação ou subversão da ordem é:

14) Grave Perturbação ou Subversão da Ordem - Corresponde a todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública, que por sua, natureza, origem, amplitude, potencial e vulto: a) superem a capacidade de condução das medidas preventivas e repressivas tomadas pelos Governos Estaduais; b) sejam de natureza tal que, a critério do Governo Federal, possam vir a comprometer a integridade nacional, o livre funcionamento de poderes constituídos, a lei, a ordem e a prática das instituições; c) impliquem na realização de operações militares.

De seu turno, é o significado de manutenção da ordem pública:

19) Manutenção da Ordem Pública - É o exercício dinâmico do poder de polícia, no campo da segurança pública, manifestado por atuações predominantemente ostensivas, visando a prevenir, dissuadir, coibir ou reprimir eventos que violem a ordem pública.

Por sua vez, ordem pública propriamente dita é, nos termos da legislação apontada:

21) Ordem Pública - Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum.

Fundamental, destarte, compreender as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. Cumprindo a tarefa, o Decreto Número 3.897, de 25 de Agosto de 2001, em seu artigo 3º, estabelece que:

Art. 3º Na hipótese de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição, lhes incumbirá, sempre que se faça necessário, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência, constitucional e legal, das Polícias Militares, observados os termos e limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico.

Parágrafo único. Consideram-se esgotados os meios previstos no art. 144 da Constituição, inclusive no que concerne às Polícias Militares, quando, em determinado momento, indisponíveis, inexistentes, ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.

A legislação continua, acerca do tema:

Art. 5º O emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, que deverá ser episódico, em área previamente definida e ter a menor duração possível, abrange, ademais da hipótese objeto dos arts. 3º e 4º, outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem, tais como as relativas a eventos oficiais ou públicos, particularmente os que contem com a participação de Chefe de Estado, ou de Governo, estrangeiro, e à realização de pleitos eleitorais, nesse caso quando solicitado. [...] Art. 8º Para o emprego das Forças Armadas nos termos dos arts. 34, 136 e 137 da Constituição, o Presidente da República editará diretrizes específicas.

Desse modo, percebe-se que a atuação das Forças Armadas somente pode ocorrer quando os órgãos de segurança pública, previstos no artigo 144, da Constituição Federal, estiverem indisponíveis, não existirem ou forem insuficientes à missão constitucional.

Especificamente quanto à proteção das fronteiras, um dos objetivos do decreto presidencial que recai sobre Roraima, destacam-se duas normas: A Lei Número 6.634, de 2 de Maio de 1979 e o Decreto Número 8.903, de 16 de Novembro de 2016.

A primeira dispõe, em seu artigo 9º, que:

Art. 9º. Toda vez que existir interesse para a Segurança Nacional, a união poderá concorrer com o custo, ou parte deste, para a construção de obras públicas a cargo dos Municípios total ou parcialmente abrangidos pela Faixa de Fronteira. § 2º. - Os recursos serão repassados diretamente às Prefeituras Municipais, mediante a apresentação de projetos específicos.

De outro lado, o Decreto Número 8.903, de 16 de Novembro de 2016, institui o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF) e dispõe o seguinte:

Art. 5º. Fica criado o Comitê-Executivo do Programa de Proteção Integrada de Fronteiras, composto por um representante titular e um representante suplente dos seguintes órgãos: I - Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; II - Agência Brasileira de Inteligência; III - Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, do Ministério da Defesa; IV - Secretaria da Receita Federal do Brasil, do Ministério da Fazenda; V - Departamento de Polícia Federal, do Ministério da Justiça e Cidadania; VI - Departamento de Polícia Rodoviária Federal, do Ministério da Justiça e Cidadania; VII - Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça e Cidadania; e: VIII - Secretaria-Geral do Ministério das Relações Exteriores. [...] Art. 6º Compete ao Comitê de que trata o art. 5º: I - formular e submeter à apreciação dos Ministros de Estado as propostas de elaboração e de modificação do PPIF afetas às suas áreas de competência; II - formular e submeter à apreciação dos Ministros de Estado propostas de políticas públicas relativas ao PPIF afetas às suas áreas de competência; III - formular e submeter à apreciação dos Ministros de Estado propostas de ações de articulação com o CDIF afetas às suas áreas de competência; IV - supervisionar o planejamento e a execução de ações conjuntas de órgãos e entidades que atuem no âmbito do PPIF e articular quanto aos aspectos orçamentários, respeitadas as competências de cada um deles; V - supervisionar as ações dos Gabinetes de Gestão Integrada de Fronteiras de que trata o art. 8º; VI - propor aos órgãos e às entidades competentes a expedição de atos relativos a ações conjuntas, inclusive quanto à programação orçamentária e financeira; VII - propor ao Ministério das Relações Exteriores iniciativas de articulação e integração internacional; VIII - solicitar a colaboração de outros Ministérios e entes federativos; e: IX - acompanhar e avaliar a execução do PPIF e encaminhar relatório anual de suas atividades, até 31 de julho do ano subsequente, para a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Conselho de Governo.

O que se constata é que, no que tange às fronteiras, existem inúmeras maneiras de protege-las, sendo dispensável a atuação das Forças Armadas no caso específico. A união, por exemplo, pode repassar recursos às Prefeituras Municipais, para a construção de obras públicas, total ou parcialmente abrangidas pela Faixa de Fronteira.

Ademais, o Comitê-Executivo do Programa de Proteção Integrada de Fronteiras tem competência para formular propostas de políticas públicas relativas ao PPIF, propor ao Ministério das Relações Exteriores iniciativas de articulação e integração internacional, bem como solicitar a colaboração de outros Ministérios e entes federativos.

O emprego da força nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem, além do mais, deve observar os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da legalidade. Questiona-se se os meios e os fins da medida são realmente compatíveis. Coloca-se em dúvida a correspondência entre a ação e a reação do oponente, sendo inviável afirmar que não haverá excesso por parte de integrantes das tropas empregas na operação. Por último, em razão da quantidade de normatizações acima elencadas, resta insegurança sobre a própria legalidade da medida, que, inclusive, pode resultar na prática de ato inválido e expor à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.

Nessa esteira, veja-se a atribuição de cada uma das instituições que compõem as Forças Armadas.

A Marinha tem atribuições subsidiárias particulares, como: orientar e controlar a Marinha Mercante e suas atividades correlatas, no que interessa à defesa nacional; prover a segurança da navegação aquaviária; contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao mar; implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas; cooperar com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional ou internacional, quanto ao uso do mar, águas interiores e de áreas portuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução.

O Exército, além de outras ações pertinentes, também possui atribuições subsidiárias particulares: contribuir para a formulação e condução de políticas nacionais que digam respeito ao Poder Militar Terrestre; cooperar com órgãos públicos federais, estaduais e municipais e, excepcionalmente, com empresas privadas, na execução de obras e serviços de engenharia, sendo os recursos advindos do órgão solicitante; cooperar com órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, no território nacional, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução.

Por derradeiro, cabe à Aeronáutica, como atribuições subsidiárias particulares: orientar, coordenar e controlar as atividades de Aviação Civil; prover a segurança da navegação aérea; contribuir para a formulação e condução da Política Aeroespacial Nacional; estabelecer, equipar e operar, diretamente ou mediante concessão, a infraestrutura aeroespacial, aeronáutica e aeroportuária; operar o Correio Aéreo Nacional; cooperar com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, quanto ao uso do espaço aéreo e de áreas aeroportuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução; preservadas as competências exclusivas das polícias judiciárias, atuar, de maneira contínua e permanente, por meio das ações de controle do espaço aéreo brasileiro, contra todos os tipos de tráfego aéreo ilícito, com ênfase nos envolvidos no tráfico de drogas, armas, munições e passageiros ilegais, agindo em operação combinada com organismos de fiscalização competentes, aos quais caberá a tarefa de agir após a aterragem das aeronaves envolvidas em tráfego aéreo ilícito, podendo, na ausência destes, revistar pessoas, veículos terrestres, embarcações e aeronaves, bem como efetuar prisões em flagrante delito.

Reitera-se que os órgãos próprios de segurança pública (previstos no artigo 144, da Constituição Federal) já possuem atribuições suficientes para a resolução do que atualmente ocorre no Estado de Roraima, especificamente no Município de Pacaraima.

Ora, aludidos órgãos apuram infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União, assim como outras infrações com repercussão internacional; exercem as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; patrulham ostensivamente as rodovias e ferrovias federais; apuram infrações penais comuns; efetuam o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública; e executam atividades de defesa civil.

Não há necessidade alguma de atuação das Forças Armadas no caso, sobretudo porque não estão esgotados os instrumentos previstos para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Sim, porque os órgãos de segurança pública existem no Estado de Roraima, estão disponíveis e são, sim, suficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional, a despeito da crise migratória experimentada pela população brasileira local e pelo povo venezuelano.

O decreto presidencial possui feições de decisão política publicitária, com aspecto de finalidade unicamente ligada à popularidade da determinação.

Como fora apontado, existem inúmeros outros meios de resolução da crise instalada entre a fronteira do Brasil e a Venezuela. Não há necessidade de uma “canetada”, determinando-se a atuação das Forças Armadas na região. A medida apenas contribui para o gasto desnecessário de recursos públicos.

Além disso, a crise migratória há muito é anunciada. Prevenções legais já poderiam ter sido utilizadas pelo Chefe do Poder Executivo Federal. No entanto, isso não obsta que medidas mais producentes e criativas sejam assentadas. Como dito, não faltam previsões legais para tanto, evitando-se a banalização do uso das Forças Armadas para quaisquer situações graves. Ora, no Brasil atual, todo conflito pode ser considerado grave.

Nesse ponto, a Lei número 13.445, de 24 de Maio de 2017, que instituiu a Lei de Migração, estabelece em seu artigo 3º:

Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:  I - universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; II - repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; III - não criminalização da migração; IV - não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional; V - promoção de entrada regular e de regularização documental; VI - acolhida humanitária; VII - desenvolvimento econômico, turístico, social, cultural, esportivo, científico e tecnológico do Brasil;  VIII - garantia do direito à reunião familiar;  IX - igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares; X - inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas; XI - acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social; XII - promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante; XIII - diálogo social na formulação, na execução e na avaliação de políticas migratórias e promoção da participação cidadã do migrante; XIV - fortalecimento da integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, mediante constituição de espaços de cidadania e de livre circulação de pessoas; XV - cooperação internacional com Estados de origem, de trânsito e de destino de movimentos migratórios, a fim de garantir efetiva proteção aos direitos humanos do migrante; XVI - integração e desenvolvimento das regiões de fronteira e articulação de políticas públicas regionais capazes de garantir efetividade aos direitos do residente fronteiriço; XVII - proteção integral e atenção ao superior interesse da criança e do adolescente migrante; XVIII - observância ao disposto em tratado; XIX - proteção ao brasileiro no exterior; XX - migração e desenvolvimento humano no local de origem, como direitos inalienáveis de todas as pessoas; XXI - promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício profissional no Brasil, nos termos da lei; e: XXII - repúdio a práticas de expulsão ou de deportação coletivas.

A Lei da Migração também esclarece que:

Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados: I - direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos; II - direito à liberdade de circulação em território nacional; III - direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes; IV - medidas de proteção a vítimas e testemunhas de crimes e de violações de direitos; V - direito de transferir recursos decorrentes de sua renda e economias pessoais a outro país, observada a legislação aplicável; VI - direito de reunião para fins pacíficos; VII - direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos; VIII - acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória; IX - amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; X - direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória; XI - garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória; XII - isenção das taxas de que trata esta Lei, mediante declaração de hipossuficiência econômica, na forma de regulamento; XIII - direito de acesso à informação e garantia de confidencialidade quanto aos dados pessoais do migrante, nos termos da Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011; XIV - direito a abertura de conta bancária; XV - direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, mesmo enquanto pendente pedido de autorização de residência, de prorrogação de estada ou de transformação de visto em autorização de residência; e: XVI - direito do imigrante de ser informado sobre as garantias que lhe são asseguradas para fins de regularização migratória. § 1º Os direitos e as garantias previstos nesta Lei serão exercidos em observância ao disposto na Constituição Federal, independentemente da situação migratória, observado o disposto no § 4º deste artigo, e não excluem outros decorrentes de tratado de que o Brasil seja parte.

A visão que se deve atribuir à crise na Venezuela é de crise humanitária. A utilização de Forças Armadas apenas reforça a ideia de que o Presidente da República compactua com aquelas singulares mensagens veiculadas por alguns, pugnando pela expulsão dos venezuelanos. Tal prática é repudiada pela Lei da Migração.

Por último, convém destacar a Lei Número 9.474, de 1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados. Segundo a lei, será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

É inquestionável estar a Venezuela passando por uma grave e generalizada violação de direitos humanos, que obriga seus cidadãos a deixar o país de nacionalidade para buscar refúgio no Brasil.

A atuação das Forças Armadas confronta a declaração do próprio Presidente da República, quando disse que as fronteiras do País estão abertas. Não cabe, em hipótese alguma, a deportação dos venezuelanos para a Venezuela, notadamente porque muitos deles estão com sua vida ou liberdade ameaçada.

O ingresso irregular no território nacional não pode constituir impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes, que deverão ouvir o venezuelano e preparar um termo de declaração, no qual conterá as circunstâncias relativas à entrada no Brasil e às razões que o fizeram deixar o país de origem.

Essas afirmações tornam incompreensível a publicação de um decreto presidencial – que só pode ser feito subsidiariamente – para que as forças armadas atuem. Há afronta a inúmeras leis e também à Constituição Federal.

Sobre o tema, valioso o ensinamento de Orlando Soares:

“Desde a antiguidade se apregoa o princípio da obediência e submissão das Forças Armadas ao poder civil, isto é, aos órgãos institucionais que compõem o Poder Público. Cícero proclamou: Cedant armae togae (cedam as armas à toga). No Brasil, diante das sucessivas revoltas e rebeliões militares, desde o início da República, Ruy Barbosa pregou a “submissão das Forças Armadas militares à magistratura constitucional da toga, da palavra e da lei”. (SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 531.).

Por tais razões, discorda-se do decreto presidencial que determina a atuação das Forças Armadas na fronteira entre o Brasil e a Venezuela.

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Sobre o autor
Hugo Campitelli Zuan Esteves

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná. Pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina: especialista em Direito Constitucional. Pós-graduado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Docente em Kroton Educacional. Docente em Anhanguera.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ESTEVES, Hugo Campitelli Zuan. O decreto de Garantia de Lei e Ordem em Roraima e a afronta ao princípio da subsidiariedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5539, 31 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68645. Acesso em: 22 nov. 2024.

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