9. Da unicidade de controle externo dos consórcios públicos
Relativamente ao controle financeiro do consórcio público, fica expressamente consignado que "a execução das receitas e das despesas do consórcio deverá obedecer às normas de direito financeiro aplicáveis às entidades públicas" [78]. Esta norma é dirigida, a toda evidência, aos consórcios públicos constituídos sob a forma de pessoa jurídica de direito privado, pois aqueles criados sob a denominação de associação pública, por serem pessoas jurídicas de direito público, já estariam submetidos às aludidas regras de direito financeiro.
Em seguida, a Lei dos Consórcios Públicos adentra na importante questão do controle externo dos consórcios públicos, aprimorando a idéia trazida no projeto de lei, que apenas atribuía a responsabilidade das contas do consórcio ao seu representante legal, mas não determinava qual tribunal de contas ficaria com o encargo de fiscalização do consórcio, no caso de a gestão associada ser composta por mais de uma espécie de ente federativo.
Da forma como estava disciplinada esta situação no aludido projeto, surgia a peculiar possibilidade de um consórcio público ser fiscalizado simultaneamente por mais de um tribunal de contas, como referido no ensaio sobre o PL n.º 3.884/04 [79], significando violação ao princípio da economicidade.
Sanando esta insuficiência normativa, o legislador instituiu, através da Lei dos Consórcios, o que se poderia denominar de unicidade de controle externo dos consórcios públicos, ao disciplinar que "o consórcio público está sujeito à fiscalização contábil, operacional e patrimonial pelo Tribunal de Contas competente para apreciar as contas do Chefe do Poder Executivo representante legal do consórcio" [80].
Portanto, atendendo ao princípio da economicidade e, também, a uma desejável visão racional e sistêmica de controle externo, estabeleceu a norma em comento, com todo acerto, que as contas de um consórcio público, relativas a um determinado exercício, serão fiscalizadas por apenas um tribunal de contas, qual seja, aquele competente para apreciar as contas de seu representante legal no âmbito do ente consorciado.
Dessa forma, trazendo novamente o exemplo hipotético retratado no estudo do PL n.º 3.884/04, um consórcio formado pela União, Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro será fiscalizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) quando o seu representante legal for o Presidente da República; pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE/RJ), quando o responsável for o Governador daquele Estado; e pelo Tribunal de Contas do Município do Rio de janeiro (TCM/RJ), quando o gestor for o Prefeito daquela cidade.
Essa ação coordenada dos tribunais de contas envolvidos na fiscalização de consórcio público reforça o entendimento já referido de que urge "a criação de um sistema de controle externo nacional" [81] em que haja compartilhamento de dados, ações fiscalizatórias conjuntas e, sobretudo, padronização processual pelas 34 cortes de contas brasileiras a fim de que o rodízio da atribuição do controle externo, que incidirá em alguns consórcios públicos a partir de agora, signifique efetiva fiscalização, controle e conseqüente aprimoramento contábil, financeiro, orçamentário, operacional e patrimonial da entidade controlada. E isso somente se dará se os procedimentos de auditoria utilizados pelos órgãos fiscalizatórios envolvidos foram unívocos, utilizando a mesma metodologia e perseguindo metas idênticas de controle externo.
Sem o implemento dessa sistematização, pensa-se que o controle externo dos consórcios públicos, que alberguem entes federativos que estejam sujeitos à fiscalização de tribunais de contas diversos, será ineficaz, redundando em simulacros fiscalizatórios que em nada ou muito pouco contribuirão no combate à corrupção, à fraude e ao uso indevido do dinheiro público no âmbito dos consórcios públicos.
Por sua vez, a Norma Reguladora dos Consórcios Públicos também dedicou regra para o controle dos contratos de rateio, disciplinando que a fiscalização desses instrumentos ficará ao encargo dos controles externos respectivos [82]. Assim, retomando o exemplo hipotético, que considera um consórcio público estabelecido entre a União, Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro, a fiscalização do contrato de rateio celebrado por cada um dos entes consorciados será realizada simultaneamente, nas respectivas esferas de competência, pelo TCU, TCE/RS e TCM/RJ, por ocasião do exame das contas daqueles entes jurisdicionados.
No que tange aos agentes públicos incumbidos da gestão de consórcio, a Lei Federal n.º 11.107/05 estabelece que os mesmos não responderão pessoalmente pelas obrigações contraídas pelo consórcio. Dessa forma, não se poderá exigir a responsabilização civil ou administrativa de um representante legal de consórcio, se a obrigação contraída pela gestão associada defluiu de ato praticado em conformidade com a lei ou com o seu estatuto. Contudo, responderá o aludido agente público pelos atos praticados pelo consórcio que violarem normas legais ou estatutárias.
Este regramento impede, por exemplo, que eventuais divergências surgidas na relação consorcial possam resultar em demandas administrativas e judiciais, que visem à responsabilização de quem, dirigindo o consórcio dentro dos ditames normativos, contraiu obrigação que tenha conflitado com interesses de algum ente integrante, cujo voto tenha sido vencido na deliberação assemblear de determinada questão, pois o gestor consorcial, em tais circunstâncias, sempre poderá invocar em sua defesa o Parágrafo único do art. 10 da Lei Federal n.º 11.107/05 [83].
Trata-se de uma prerrogativa legal proporcionada ao representante de consórcio, visando a estabelecer as condições imprescindíveis de resguardo de seu patrimônio particular, a fim de que ele possa conduzir com destemor os negócios consorciais, pois de outra forma, seus bens pessoais estariam constantemente ameaçados pela irresignação dos demais componentes da assembléia geral ou, ainda, de terceiros, o que inviabilizaria a função diretiva de um consórcio público. Assim, as obrigações de um consórcio serão satisfeitas apenas com o patrimônio da entidade constituída para tal fim.
Ainda dentro do escopo fiscalizatório, o legislador, em consonância com as diretrizes da Lei de Responsabilidade Fiscal, estipulou a obrigação de o consórcio público fornecer as informações necessárias a fim de que os entes consorciados possam consolidar em suas respectivas contas "todas as despesas realizadas com os recursos entregues em virtude de contrato de rateio" [84], conferindo a necessária transparência de gestão às ações consorciais.
10. A presença da União em consórcio público e convênio
A Lei Federal n.º 11.107/05 estabeleceu que a União somente poderá participar de consórcio público em que haja municípios, se os Estados que compreenderem os territórios das municipalidades consorciadas também fizerem parte da gestão associada [85], confirmando a concepção proposta no projeto de lei. Vale ressaltar que a norma em comento também ratifica a idéia, posta no PL n.º 3.884/04, de possibilitar que a União celebre convênio diretamente com municípios, sem a necessidade de participação dos Estados respectivos [86], a fim de viabilizar a descentralização e a prestação de políticas públicas em escalas adequadas, o que anula, de certa forma, a condicionante de sua participação em consórcio público explicitada no § 2º do artigo 1º da Lei Consorcial [87], constituindo-se em arguta manobra legislativa da União com o fito de, sempre que for do seu interesse, atuar de forma associada com os municípios, independentemente da participação dos Estados-membros envolvidos.
11. Da licitação no consórcio público
Cabe ainda mencionar que os consórcios públicos foram contemplados com vantagens licitatórias consubstanciadas na alteração de quatro (23, 24, 26 e 112) dos cinco artigos (23, 24, 26, 89 e 112) da Lei Federal n.º 8.666/93, anteriormente mencionados pelo PL n.º 3.884/05.
Assim, vale destacar que o artigo 23 do Diploma Licitatório – que trata da determinação das modalidades de licitação a serem adotadas, em razão dos valores dos contratos a serem celebrados – foi agraciado com o § 8º que estabelece aumento dos limites de valores – sendo "o dobro dos valores mencionados no caput deste artigo quando formado por até 3 entes da Federação, e o triplo, quando formado por maior número" [88] – para determinação da modalidade licitatória (concorrência , tomada de preços ou convite) a ser implementada na contratação de compras, serviços e obras de engenharia por parte dos consórcios públicos.
A despeito de parecer ter havido equívoco do legislador ao redigir o acréscimo do artigo supracitado, pois, na verdade, os limites estão estabelecidos nas alíneas dos incisos I e II do referido artigo e não no seu caput como mencionou a Lei Consorcial, é realmente inequívoca a intenção legislativa de criar incentivos ao instituto consorcial.
Por exemplo, enquanto a Administração Pública em geral terá de observar o limite de R$ 80.000,00 para abertura de procedimento licitatório, na modalidade convite, visando à compra de determinado material, um consórcio público formado por quatro entes federativos terá esta margem alargada para R$ 240.000,00, representando significativa vantagem em relação aos demais entidades e órgãos subordinados ao regime licitatório.
Também é pertinente destacar que a Norma Consorcial alterou o artigo 24 da Lei Federal n.º 8.666/93 – que versa sobre os casos de dispensa de licitação –, criando o inciso XXVI ao aludido artigo. Referido inciso estabelece dispensa de procedimento licitatório "na celebração de contrato de programa com ente da Federação ou com entidade de sua administração indireta, para a prestação de serviços públicos de forma associada nos termos do autorizado em contrato de consórcio público ou em convênio de cooperação" [89].
Ainda nesse escopo, o Diploma Consorcial também criou incentivo licitatório consubstanciado na inclusão do instituto do consórcio público no parágrafo único do artigo 24 da Lei das Licitações, que fixa percentual de dispensa licitatória de 20%, para as aquisições feitas pelos consórcios públicos, contra os 10% estabelecidos [90], em regra, para a Administração Pública. Dessa forma, o limite teto para dispensa licitatória na contratação de compra de bens e serviços (que não sejam de engenharia) por consórcio público, passa de oito para dezesseis mil reais.
Demais disso, em termos licitatórios, a Lei Federal n.º 11.107/05 adicionou o § 1º ao artigo 112 do Diploma Licitatório, estabelecendo competência para os consórcios públicos realizarem licitação da qual "decorram contratos administrativos celebrados por órgãos ou entidades dos entes da Federação consorciados" [91].
Finalizando o texto normativo em exame, o legislador fez constar duas considerações relevantes. A primeira estabeleceu que a Norma Consorcial não se aplicará aos "convênios de cooperação, contratos de programa para gestão associada de serviços públicos ou instrumentos congêneres que tenham sido celebrados anteriormente a sua vigência" [92]. Dessa forma, os consórcios públicos criados até 06/04/2005 estão dispensados de se adequarem aos regramentos da Lei Federal n.º 11.107/05, conforme previa a concepção original do PL n.º 3.884/04.
Por sua vez, a segunda consideração noticiou que o Poder Executivo da União regulamentará o disposto na Lei Consorcial, disciplinando, inclusive, "as normas gerais de contabilidade pública que serão observadas pelos consórcios públicos para que sua gestão financeira e orçamentária se realize na conformidade dos pressupostos da responsabilidade fiscal" [93]. Em outras palavras, o Governo Federal deverá editar decreto que, regulamentando em minúcias o instituto do consórcio público, consolidará definitivamente o regime jurídico dos consórcios públicos brasileiros.
12. Conclusões
Pelo exposto, constata-se que a Lei Federal n.º 11.107/05 trouxe em seu bojo normativo grande parte das concepções normativas idealizadas pelo Projeto de Lei n.º 3.884/04. A comparação realizada entre os textos de ambas as normas permite concluir que a legislação posta pela Norma Consorcial é mais concisa. Ao dispensar conceituações e detalhamentos demasiados do procedimento consorcial que existiam no projeto de lei, fixou apenas os conceitos indispensáveis ao entendimento do texto legal como, por exemplo, as definições de assembléia geral e contrato de programa. Tal constatação revela que o legislador atuou em conformidade com a doutrina e com a correta técnica legislativa, ao deixar de fora do texto normativo as definições não-essenciais ao regime consorcial, estabelecendo, dessa forma, de fato, regras gerais dos consórcios públicos.
Da mesma forma, a Lei Consorcial acertadamente deixou de abordar aspectos ligados ao detalhamento pormenorizado de procedimentos para instituição de consórcios públicos porque tal matéria, como referido no texto legal em comento, será objeto de norma superveniente a ser editada pelo Poder Executivo da União.
Por fim, ainda quanto ao exame da técnica legislativa empregada, verifica-se que se optou por delimitar os objetos do consórcio público através de conceito aberto constante no artigo 241 da Constituição Federal – gestão associada de serviços públicos – o que se mostrou mais adequado do que a proposta do projeto de lei, que elencava rol exaustivo de treze situações apenas, vez que restringia a atuação dos consórcios públicos a situações definidas legalmente, que com o decurso do tempo teriam de ser atualizadas. Portanto, este é outro aspecto elogiável da norma estudada, evidenciando o grau de requinte técnico do legislador.
Um aspecto, que mereceu crítica negativa no presente ensaio, foi o fato de a Lei Consorcial facultar a criação de consórcio público através de duas formas: ou através de pessoa jurídica de direito público (associação pública) ou por pessoa jurídica de direito privado (associação civil), criando, na segunda hipótese, indesejável dupla sujeição do consórcio público em termos de regime jurídico, pois, deverá obedecer tanto ao regime jurídico do direito privado quanto ao do direito público, sem que, efetivamente, haja razão plausível, de ordem prática, a justificar a excepcionalidade adotada. Nesse sentido, pensa-se que o PL n.º 3.884/04 havia concebido solução mais efetiva e consentânea ao sistema jurídico posto, na medida em que considerava que todos os consórcios seriam implementados através de pessoa jurídica de direito público.
Pensa-se que o legislador perdeu grande oportunidade para por fim ao hibridismo hoje existente que, a toda evidência, não acrescenta nada de positivo ao regime consorcial, ao contrário, lança-lhe mais dúvidas, como, por exemplo, o que venha a ser, como é estruturada e regulamentada uma associação pública – a mais nova pessoa jurídica de direito público interno – em nosso país. Esta, talvez, seja a falha mais grave da norma em comento: definir o instituto consorcial através da criação de outra figura nova, que também carece da imprescindível conceituação para ser plenamente compreendida e utilizada entre nós.
De outro lado, merece aplausos a Norma Consorcial por definir o instituto do consórcio público, dando-lhe a mesma natureza contratual que o pré-existente contrato de consórcio existente no direito privado, definido pela Lei das Sociedades Anônimas. Constata-se que o legislador atentou-se para a manutenção da sistematização de nosso ordenamento jurídico, restringindo-se a importar e adaptar para o direito público, conceito de consórcio que já existia no âmbito do direito privado. Neste tocante, a Norma Consorcial ofereceu solução mais efetiva que a originalmente proposta pelo PL n.º 3.884/04 que, sem dúvidas, falhou neste aspecto, ao conferir personalidade de direito público a uma modalidade de negócio jurídico – contrato de consórcio público –, destoando de formulações consagradas pela teoria geral do direito, confundindo conceitos de sujeito e relação jurídica.
Por fim, vale, ainda, destacar que a Lei dos Consórcios pacificou a questão relativa ao controle externo dos consórcios públicos, atribuindo-lhes unicidade de controle externo, ao definir que um consórcio público sujeita-se à fiscalização contábil, operacional e patrimonial do tribunal de contas competente para fiscalizar as contas de seu representante legal. Solução simples e inteligente, cuja eficácia, todavia, dependerá da criação de um sistema de controle externo nacional, a fim de que o rodízio da competência fiscalizatória dos tribunais de contas, que acontecerá em alguns casos, a partir do advento da lei em exame, represente o emprego de procedimentos de auditoria unívocos que utilizem a mesma metodologia e persigam as mesmas metas, independemente de qual seja a corte de contas fiscalizadora, assegurando resultados efetivos do controle externo, sobretudo, no combate à corrupção, à fraude e ao uso indevido do dinheiro público no âmbito dos consórcios públicos.
Como se percebe do estudo realizado, os acertos da Norma Consorcial em muito superam suas insuficiências. Assim, mais uma vez, festejando sua publicação, acredita-se que seu texto tenha condições efetivas de responder aos anseios dos entes federativos interessados na instituição de consórcios públicos. Agora, pode-se falar em segurança jurídica na implementação da gestão associada de serviços públicos. Igualmente, pode-se afirmar que existe um conjunto positivado de regras essenciais aos consórcios que, ainda que não esteja completamente aperfeiçoado, pode ser denominado de regime consorcial.
Assim, estima-se que a Lei Federal n.º 11.107/05 ensejará, a curto e médio prazo, a proliferação de consórcios públicos em todos os cantos do Brasil. A norma em comento, sem descuidar da imposição da necessária transparência fiscal aos atos consorciais, criou ambiente jurídico favorável ao estabelecimento, de agora em diante, de gestões associadas organizadas de tal forma a satisfazer, com eficiência e eficácia, às necessidades coletivas, através da prestação de serviços públicos com padrões de qualidade dignos, possibilitando a efetivação de políticas públicas fundamentais – como educação, saúde e saneamento – que ainda são teoria em muitos municípios brasileiros. Trata-se de ferramenta poderosa e indispensável à qual poderão lançar mão todos os municípios pequenos e de poucos recursos que em 1999 somavam 74,8% das municipalidades brasileiras. Portanto, tem-se que a União cumpriu seu papel regulamentador na questão dos consórcios públicos. Agora é a vez dos Estados, Distrito Federal e Municípios utilizarem a gestão associada na busca da efetivação de suas políticas públicas afetas à prestação de serviços públicos.