Cuidar da legalidade e constitucionalidade dos atos da Administração Pública é um dever. Não se pode administrar bens e serviços sem os olhos permanentemente voltados para a Constituição e as leis. Vivemos sob o império da lei. A atuação administrativa está definida pela lei. O administrador público só pode fazer aquilo que a lei permite. Nada mais. A vontade da Administração Pública é a vontade da lei. Não se pode fazer ou deixar de fazer alguma coisa fora dos limites traçados pela lei.
Celso Antonio Bandeira de Mello [01] sintetiza que o "princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis".
Reafirma que o direito administrativo "nasce com o Estado de Direito: é uma conseqüência dele. É o fruto da submissão do Estado à lei. É em suma: a consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é a atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei".
Infelizmente, na área da saúde, isso não tem sido respeitado pelos nossos administradores. Vivemos sob o enfoque de que a vontade do administrador pode ser maior ou menor do que a da lei. E isso é muito grave porque passamos a dissociar a vontade do legislador da vontade do administrador, sem punição. Atos abusivos, ilegais são cometidos e se perpetuam contra a vontade do legislativo. Os governantes tentam realizar administrações personalistas, sem respeito à representação popular. Citando novamente nosso ilustre professor Celso Antonio Bandeira de Mello: "Por isso se diz, na conformidade da máxima oriunda do direito inglês, que no Estado de Direito quer-se o governo das leis e não o dos homens".
Desde 1988, data em que o nosso país passou a reconhecer a saúde como um direito de todo o cidadão, a nossa sociedade luta contra atos da Administração Pública tendentes a mitigar esse direito. O cidadão, nesse campo, necessita, permanentemente, lutar contra os desmandos dos governantes.
Muitas foram as tentativas dos administradores públicos de frustrar esse legítimo direito social e individual, garantido nos arts. 6º e 196 da Constituição, desde 1988. Algumas dessas tentativas foram abortadas porque a saúde conta com inúmeros profissionais que, de forma incansável, lutam pela defesa do SUS; outras, infelizmente, consumaram-se, permanecendo até os dias de hoje, ao arrepio da lei ou da Constituição. E, na saúde, apenas para argumentar, não se poderia nem alegar que a ‘transgressão é positiva’ -- conforme menção feita por Maria Sylvia Zanella Di Pietro [02] ao criticar comentário ouvido na Escola Nacional de Administração Pública sobre o Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais –
"O máximo que se poderia dizer a favor dessa entidade, se ela alcança bons resultados – o que não se sabe --, é que ela enquadraria naquilo que foi referido pela Escola Nacional de Administração Pública como ‘transgressão positiva’ ao sistema jurídico vigente. Para o jurista, isto é inaceitável".
O pior, in casu, é que todas as transgressões abaixo citadas não são a favor do direito à saúde, mas sim para mitigá-lo, asfixiá-lo, pouco a pouco...
Puxando pela memória, podemos citar os seguintes fatos:
1.Vetos à lei orgânica da saúde de artigos que tratavam da transferência de recursos da União para Estados e Municípios e da participação da comunidade, ambas previstas constitucionalmente.
2.Tentativa de manutenção do modelo convenial para as transferências obrigatórias de recursos da União para Estados e Municípios, quando a lei determina repasse direto e automático (art. 3º da Lei n. 8.142/90 e art. 4º da Lei n. 8.689/93).
3.Protelação e relutância contra a extinção do INAMPS. A extinção somente ocorreu em 1993, cinco anos após a Constituição de 1988 ter criado o SUS e após intensa manifestação da sociedade. Ainda, assim, perduram até os dias de hoje institutos previdenciários estaduais ou municipais que mantém serviços de saúde para servidores públicos, com cobrança compulsória de contribuições.
4.Utilização das tabelas de procedimentos do INAMPS para transferências de recursos da União para Estados e Municípios quando deveria ser utilizada a forma de repasse direto e automático (modelo que perdura até os dias de hoje, ao arrepio do que rezam as Leis ns. 8.080/90 e. 8.142/90).
5. Transferências de recursos da União para Estados e Municípios pelo sistema de adesão a projetos e programas federais (101 formas, em 2004), o que tem o mesmo sentido da transferência convenial, uma vez que a adesão a projetos e programas obriga o aderente a observá-los na íntegra, mitigando a autonomia dos entes públicos na elaboração de plano de saúde, na forma do disposto no art. 36, § 1º, da Lei n. 8.080/90, afora o flagrante desrespeito aos critérios definidos nas Leis 8.080/90 e 8.142/90.
6.Descumprimento do art. 55 do ADCT que determinava, em 1988, que dos recursos do orçamento da seguridade social, no mínimo, 30% deveriam ser destinados ao setor saúde. Introdução, no orçamento da saúde de 1989, 1990, 1991, 1992 e 1993, de despesas que eram de outros setores, como os inativos da saúde (previdência social).
7.Não reajuste da tabela de procedimentos que deve, nos termos da lei, manter o equilíbrio econômico financeiro dos contratos e convênios firmados com o setor privado complementar (art. 26, § 1º, Lei n. 8.080/90).
8.Não repasse de recursos do orçamento da seguridade social para a área da saúde durante mais de cem dias em 1993, além de outros atrasos que se tornaram recorrentes até que, em 1998, pela EC 20/1998, foi vedada a utilização das receitas das contribuições sociais indicadas nos incisos I, "a" e II do art. 195 da CF para pagamento de despesas com a saúde e assistência social. (Uma forma velada de vinculação de recursos. Hoje, esses recursos só podem ser utilizados para pagamento de benefícios do regime geral de previdência social, o que deixou a saúde, desde aquela época, até a vinculação de recursos em 2000, pela EC 29, de pires na mão, afora o fato de a solidariedade de fontes para o financiamento da seguridade social ter sido rompido).
9.Não reajuste da tabela de procedimentos do Ministério da Saúde e de todos os demais valores referentes à saúde, como as transferências da União para Estados e Municípios, pelos índices utilizados para a fixação da unidade de reajuste de valores, URV do Plano Real. A saúde perdeu cerca de 9% na mudança da URV para o Real.
10.Alocação de despesas com atividades que não estão no campo de atuação da saúde, como bolsa-escola, bolsa-alimentação, combate à fome e a pobreza etc. no orçamento da saúde.
11.Interpretação jurídica da AGU [03] de que a base para o cálculo dos recursos da União a serem aplicados na saúde, a partir de 1999, deveria ser fixa e não móvel, ou seja, o valor-base seria sempre o valor de 1999 e não o valor total empenhado no ano anterior, corrigido pelo crescimento nominal do PIB do ano de elaboração do orçamento.
12.Forma de pagamento, denominada de "código 7", nos contratos firmados entre o Poder Público e o setor privado para a prestação de serviços de saúde. Essa modalidade de pagamento consiste no pagamento fracionado do contrato: uma parte é paga ao contratado e a outra ao médico indicado pelo contratado, diretamente em sua conta, sem que exista formalmente um vinculo contratual entre ele e o Poder Público, gerando vários problemas, como a incidência de encargos fiscais e tributários sobre esse pagamento do profissional autônomo e violação da Lei de Licitação e Contratos.
13.Cessão de crédito: assunção pelo Poder Público de débitos da entidade privada contratada para a prestação de serviços de saúde. A entidade contratada repassa ao Poder Público os débitos que mantém com empresas fornecedoras de insumos (órteses, próteses etc.), ficando o Poder Público obrigado quanto ao pagamento de um débito que ele não contratou nem licitou.
14.Cobrança por fora nos serviços públicos de saúde – fato introduzido em alguns hospitais públicos pelo artifício das fundações de apoio -- e que perdura até os dias de hoje, impunemente, sob o argumento de que as fundações de apoio, como entidades privadas que são, podem cobrar pelos serviços que o hospital público presta ao cidadão, em razão de convênios que uma mantém com a outra!
15.Convênios entre hospitais públicos e planos de saúde quando a lei garante a gratuidade nos serviços públicos de saúde e determina às operadoras o ressarcimento aos fundos de saúde pelos atendimentos prestados a seus beneficiários em serviços de saúde públicos (art. 32, da Lei n. 9.656/98). Ressarcir tem o sentido de indenizar, de compensar, de repor. A Lei fala em ressarcimento e não em pagamento de preço que poderia fazer supor a possibilidade de compra e venda de serviços de saúde. O ressarcimento guarda absoluta coerência com a gratuidade das ações e serviços públicos de saúde e com a vedação do enriquecimento sem causa pelas operadoras de planos privados de saúde.
16.Tentativa de criação de hospitais estratégicos para o SUS, com o intuito de obtenção do certificado de entidade beneficente de assistência social, tão somente. Isso garantiria aos hospitais privados considerados estratégicos pelo Ministério da Saúde, a isenção do pagamento à seguridade social, de contribuições sociais importantes, sem nenhuma contribuição relevante para o SUS.
17.Criação da farmácia popular para a venda de medicamentos para os pacientes do SUS. Aquilo que o paciente não encontra nos serviços de saúde gratuitamente, ele deve comprar a preços subsidiados, o que é uma forma de mitigar o direito à saúde pública.
18.Projeto de lei federal, em consulta pública, que cria diretrizes nacionais para a implantação de planos de cargos e salários de servidores da saúde pertencentes aos quadros dos Estados e Municípios. A União não tem competência (competência concorrente) para legislar sobre esse tema, editando normas gerais, principiológicas ou de diretrizes. Alias, esse tema mereceria um artigo à parte. A União (Ministério da Saúde) não tem competência para legislar exaustivamente sobre saúde, uma vez que a competência é das três esferas de governo (União, Estados e Municípios). Nesse caso, a União só pode legislar sobre normas gerais, principiológicas, de diretrizes nacionais, reservando-se ao Estado a competência para editar a legislação exaustiva, detalhada. O que temos visto? O MS legislando por portaria (o que já é questionável) de forma exaustiva, invadindo a competência dos Estados. São mais de duas mil portarias nos últimos 10 anos normatizando o SUS...
19.Requisição de bens, serviços e pessoas de Município. A própria constituição, em seu art. 5º, XXV, menciona que a requisição se dará sobre a propriedade particular. Da leitura do art. 15, XIII, da Lei n. 8.080/90, respaldado na Constituição, só se pode inferir que a intervenção ali mencionada é na propriedade privada, e sob justa indenização.
20.Cartilha editada pelo setor de auditoria do Ministério da Saúde, sob o título de Orientações Técnicas sobre Aplicação de Glosas. Ao invés de se editar cartilha que possa ser educativa, construtiva, informativa, opta-se por se reforçar aquilo que se quer evitar e nomeia-se o documento de Cartilha de Glosas! Além do mais, a Portaria Ministerial n. 2.047/2002 define como ações e serviços de saúde atividades administrativas vinculadas à área da saúde enquanto a Cartilha proíbe esse tipo de despesa e menciona a Decisão do TCU 600 que, em 2000, recomendou fossem criadas normas definindo o que são ações e serviços de saúde, objeto da Portaria acima mencionada. Lacuna não mais existente, conforme entendimento do TCU, na ocasião.
21.Ordens de recolhimentos de recursos da saúde, emitidas pelos auditores federais contra Estados e Municípios. Os auditores entendem que os recursos financeiros das transferências federais aplicados de forma irregular [04] devem ser repostos ao Fundo Nacional de Saúde quando o correto é exigir-se que o tesouro estadual ou municipal deposite no fundo de saúde correspondente os recursos mal aplicados, sob pena de se punir a população duas vezes. Os auditores federais ainda fazem exigência ilegal de recolhimento de recursos estaduais ou municipais ao Fundo Nacional de Saúde, nas situações de descumprimento do disposto no art. 4º da Lei n. 8.142/90, quando o seu parágrafo único preconiza que o não atendimento pelos Municípios, ou pelos Estados, dos requisitos estabelecidos no caput, implicará em que os recursos serão administrados, respectivamente, pelos Estados e pela União.
22.Contratação de servidores pelas entidades públicas da saúde, sob as mais variadas formas, sempre com o intuito de burlar o mandamento constitucional do concurso público, seja para cargo, função ou emprego público. Diversas são as formas encontradas e que não encontram respaldo constitucional: cooperativas de mão-de-obra; fundações de apoio; fornecimento de mão-de-obra por interposta pessoa jurídica; contratação de profissional autônomo etc.
23.Descumprimento pelos Estados da Emenda Constitucional n. 29/2000 que determina a vinculação de receitas públicas para a área da saúde. Pelo menos 17 Estados não cumpriram com esse dever, de acordo com dados do SIOPS/MS (Sistema de Orçamento Público da Saúde). A obrigatoriedade do Estado é de aplicar na saúde o mínimo de 12% de suas receitas.
24.Projeto de Lei n. 5.235/2005 que cria subvenção econômica para estabelecimentos farmacêuticos ao arrepio do disposto no art. 199, § 2º, da Constituição que veda a destinação de recursos públicos para auxílios e subvenções a instituições privadas com fins lucrativos.
E para finalizar, gostaríamos de abrir um parêntese e adentrar sucintamente em outro tema -- que pretendemos aprofundar em outro artigo que estamos a escrever -- apenas para lembrar, na oportunidade em que se comenta sobre desobediência à lei e à Constituição -- que muitos documentos técnicos, administrativos e políticos da saúde que dispõem sobre a regionalização -- modelo organizativo do SUS imposto pela Constituição -- não lograrão efeito se não estiverem respaldados por instrumentos jurídicos que lhes garantam eficácia.
É muito importante falar em solidariedade e cooperação. Alias, qualidades que permeiam toda a forma de organização do SUS. A regionalização e a hierarquização são formas de organização do SUS determinadas pela Constituição. Portanto, todos devem adotá-las. E quem explicitará como serão implementadas? Acordos, compromissos, protocolos de intenções? Fundamentalmente o Estado, mediante leis e decretos.
De nada adianta os entes federativos firmarem termo de compromisso, pacto, acordos, protocolos de intenções. Intenção não obriga ninguém [05]. E acordos administrativos, pactos poderão ser rompidos sem grandes conseqüências. Há necessidade de se dar efetividade à regionalização, explicitando os compromissos dos dirigentes da saúde, seus limites, a divisão das atribuições, os recursos financeiros, as punições pelo descumprimento de responsabilidades etc.
E por se falar em regionalização -- a esfera de governo que deverá, em coerência com o próprio termo ‘regionalização’, discipliná-la é o Estado, cabendo à União apenas editar diretrizes gerais que darão uniformidade às normas específicas editadas pelo Estado. A União não tem competência constitucional para estabelecer normas minuciosas sobre saúde. Somente pode legislar sobre normas gerais, principiológicas, de diretrizes nacionais.
Firmar pactos ou intenções poderá, no final, ser frustrante se os mesmos não estiverem consubstanciados em instrumentos jurídicos adequados que lhes dêem efetividade.
Para finalizar é importante repetir que a Administração Pública não tem vontade própria; a sua vontade é a da lei. Assim, precisamos criar a cultura de que o agente público é responsável pela execução da lei, devendo responder pelos seus atos que desbordem dos limites da lei. Cumprir a Constituição e as leis é dever de todo agente público.
NOTAS
01 Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 5º ed., Ed. Malheiros.
02 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Parcerias na Administração Pública, editora Atlas, 3ª. Edição.
03 Advocacia Geral da União
04 Aqui não vamos discutir o que vem a ser essas irregularidades. A auditoria do Ministério da Saúde nem sempre mantém o entendimento de que recursos federais transferidos para Estados e Municípios, depositados nos fundos de saúde e aplicados, de fato, na saúde, foram regularmente aplicados. O tratamento conferido é o convenial. Só podem ser aplicados em determinados programas, não bastando que tenham sido aplicados em ações e serviços de saúde previstos nos planos de saúde aprovados pelos conselhos respectivos.
05 Lembremos que a Administração Pública deve obedecer, nos termos do art. 37, da CF, os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. E eficiência implica em economicidade. Precisamos ser eficientes e racionais em reuniões, discussões na Administração Pública, porque a demora na efetivação de direitos é também uma forma de desrespeitá-los, podendo muitas vezes, ser um modo de protelação.