Síntese: Passada uma década de vigência da antecipação dos efeitos da tutela, ainda restam muitas questões por solucionar. O texto busca trazer um apanhado dos principais aspectos do instituto, que representou uma revolução na distribuição do ônus do tempo do processo, não olvidando a busca das raízes do estabelecimento do dogma da certeza jurídica como paradigma da tutela jurisdicional dos sistemas de origem romano-germânica, além de tratar de questões ainda controvertidas.
Sumário: 1- Introdução 2- A supremacia da cognição exauriente e o dogma da certeza jurídica: antecedentes. 3- O Estado Social e a crise da jurisdição.4- A antecipação de tutela. 5- Natureza e limitações genéricas da Antecipação de Tutela. 6- Pressupostos Positivos. 7- Pressuposto negativo e limitações específicas. 8-Questões Controvertidas. 8.1)Procedimentos Especiais e Antecipação de Tutela. 8.2) Antecipação nas Ações Possessórias. 8.3) Antecipação de Tutela e Ação Rescisória; 8.4)Processo Monitório e Antecipação. 8.5) A Antecipação de Tutela e o Segundo Grau. 8.6) Antecipação e Ação de Despejo. 8.7) Antecipação de Tutela e Juizados Especiais. 8.8) Ações Coletivas e Controle de Constitucionalidade Concentrado. 9-. Atual Momento
1- Introdução
Há dez anos, quando surgiu no ordenamento processual pátrio, a antecipação de tutela representou um enorme impacto, criando um novo horizonte de possibilidades para a técnica da cognição sumária e para a celerização do processo civil.
Passada uma década, ainda observamos práticas forense que denotam deficiências na assimilação do instituto. Na doutrina e na jurisprudência, remanescem questões pendentes de resolução.
O estudante tem a sua disposição manuais ou cursos de processo civil onde o tema normalmente não recebe a tratativa mais aprofundada que merece. As monografias, de seu turno, por sua extensão e aprofundamento, são dispensadas porque o estudante não pode dedicar-se com maior atenção a um único tema.
Com o presente texto, pretendo abordar o tema sem a profundidade de uma monografia, mas abrangendo boa parte das questões pertinente, invocando o magistério da mais abalizada doutrina e da jurisprudência. Não se há de olvidar, igualmente, os antecedentes históricos da sedimentação do dogma da certeza jurídica como condição para a execução, tratativa imprescindível para uma correta postura diante da antecipação dos efeitos da tutela.
De fato, não conseguiremos aplicar corretamente um instituto enquanto pensarmos com premissas que lhe são contrárias.
O texto pretende ser uma boa fonte de consulta para o estudante e para o profissional, sem pretensões ao esgotamento de qualquer temática.
Esta a meta.
2-A supremacia da cognição exauriente e o dogma da certeza jurídica: antecedentes
Significativa parcela do pensamento ocidental encontra forte influência na filosofia da consciência, que remonta a Aristóteles, e cujo postulado básico é que o homem conhece a verdade através da consciência.
Parte-se da premissa de verdades universais que podem ser descortinadas. A aplicação da razão e da consciência conduz à verdade e a certeza.
A respeito, leciona Lênio Streck, referindo-se a filosofia socrática: "Na tese apresentada por Sócrates no diálogo, exsurge a concepção platônica de uma ordem universal à qual o homem tem acesso, de forma incompleta, através da atividade inteligente (mundo das idéias)" [01]
Esta base do pensamento ocidental somente foi revista com a "viragem lingüistica da filosofia", ocorrida em nosso século e tem um longo curso. A propósito, afirma Lênio Streck que interessa notar que "antes da viragem lingüistica da filosofia ocorrida em nosso século (e das concepções que, ainda no século XX, forneceram combustível ao surgimento do linguistic turn) os pontos e contrapontos entre a metafísica ocidental - cujo pensamento pode ser caracterizado, correndo o risco da simplificação, pelo pensamento aristotélico, o platônico, o neoplatonismo (Santo Agostinho e São Tomaz de Aquino) Descartes, Spinoza, Leibniz, chegando até Kant, Fichte, Schlelling e Hegel, e as concepções que a ela se contrapuseram, consideradas por Habermas como antimetafísicas..." [02]
Neste processo evolutivo, encontramos o nominalismo de Hobbes e o conceitualismo de Locke, que apresentam singular importância na afirmação do dogma da criação do "mundo jurídico". A respeito, pertinente o magistério de Ovídio Baptista da Silva: "As raízes do conceitualismo moderno, responsável pela criação do chamado ‘mundo jurídico’ e pelo extraordinário divórcio entre as criações puramente normativas do Direito e o mundo social, a que depois Kant empestaria seu prestígio e autoridade - de que se fez arauto Savigny, no campo da doutrina jurídica (v. Hans Hattenhauer, Conceptos fondamentales del derecho civil, p. 202) - podem ser descobertas nas vertentes ideológicas presentes no pensamento filosófico do século XVII, particularmente em Hobbes e Leibniz" [03]
Mas qual a importância deste pensamento para a certeza jurídica enquanto dogma? Ora, a certeza jurídica e a separação dos poderes do Estado com a conseqüente neutralidade social do juiz, e a concepção de um mundo jurídico fruto do arbítrio humano, permitem que o Direito se dissocie da realidade e se transforme em uma estrutura burocrática, sem compromissos com a efetividade da jurisdição.
Lembra Ovídio Baptista da Silva que "como se sabe, a idéia da segurança ocupa ponto central na doutrina política de Hobbes, sendo, como diz Antonio de Genaro, a preservação da paz, para ele, a ‘norma ética suprema’, legitimadora da formação do Estado, como instituição política capaz de evitar a ‘guerra de todos contra todos’, que teria caracterizado o convívio social antes da existência do Estado" [04].
Salienta o mencionado autor, ainda, que: "A busca da segurança jurídica, na verdade, foi o ethos a caracterizar toda a filosofia política do século XVII (...) Aqui, como em outros pontos, é necessário considerar que o predomínio do valor da segurança, que constitui sem dúvida o elemento preponderante na formação do conceito moderno de direito, já estava presente, como a principal preocupação de legisladores dos séculos IV e V..." [05]
E conclui: "Estas premissas ideológicas - o Estado artificialmente criado pelo Homem, para preservá-lo da insegurança do ‘estado da natureza’, a lei como exclusiva medida da justiça; a demonstrabilidade das equações geométricas - foram decisivas para a preservação do conceito e limites da função jurisdicional moderno. Com efeito, o abandono das concepções clássicas, de vertente aristotélica, o menosprezo pela dialética, como ciência do convencimento e da retórica, em favor dos juízos lógicos com pretensão a verdades científicas absolutas, formam os pilares que sustentam o chamado Processo de Conhecimento, cuja natural conseqüência são os juízos pretensamente definitivos de certeza e o conseqüente repúdio aos juízos de verossimilhança." [06]
Para tanto, contribuiu a filosofia Kantiana, com a separação dos planos do "ser" e do "dever ser", vale dizer do mundo conceitual, jurídico, e da realidade.
Com o surgimento do racionalismo iluminista, este hiato agrava-se, pois o método das ciências exatas passa a ser aplicado ao Direito.
É significativa para esta perspectiva o pensamento de Leibniz, para quem "assim como na matemática, também as verdades da metafísica, da moral e da ‘ciência natural do direito’ podem ter a mesma clareza e poderão ser objeto de demonstração, com o mesmo rigor com que se demonstra um postulado matemático" [07].
A respeito, esclarece Ovídio Baptista da Silva: "Não considera Leibniz apenas demonstráveis as proposições jurídicas, tais como são demonstráveis as verdades geométricas, mas, além disso, lança os fundamentos para a subseqüente construção do ‘mundo jurídico’, depois consagrado pela filosofia de Kant, tornando o direito uma ciência generalizante, ciências das normas e das verdades eternas (Welzel, Introducción a la filosofia del derecho, cit. p. 159); em última análise, alimentando a tendência, a que já aludimos, de fuga do mundo empírico para o mundo normativo, que tão drasticamente acomete o pensamento jurídico moderno, particularmente o Processo Civil, que se haveria de supor o ramo do direito mais comprometido com os dramas e contingências humanas de nossa realidade cotidiana." [08]
Outro importante fator foi a construção da teoria geral do processo a partir de uma perspectiva centrada na lide e não na jurisdição. As implicações desta opção resultam em um processo civil voltado para uma visão privatista.
A lide classicamente foi construída como o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, conceito celebrizado por Carnelutti. O que está em jogo, portanto, em primeiro plano, é o interesse das partes, e não a atuação estatal.
Neste passo, calha invocação o magistério de Cândido Rangel Dinamarco, verbis: "Apesar da revolucionária abertura favorável ao reconhecimento da natureza pública da relação processual, da ação e de todo o sistema processual enfim. Nos espíritos permaneceu a marca da idéias privatista. Os germânicos abandonaram as preocupações centrais com a ação (klagrecht), sem maior emprenho e desviando para o objeto do processo (Streitgegenstand) o centro metodológico do sistema processual. Mas os latinos, italianos à frente, permaneceram metodologicamente ligados à ação e às preocupações com ela e seu conceito e seus elementos suas condições; assim é, de modo superlativo, a orientação predominante entre os processualistas brasileiros, caracterizada na ‘Escola Processual de São Paulo’. Numa palavra, a ciência dos processualistas de formação latina apresenta a ação como pórtico de todo o sistema, traindo com isso a superada idéias (que conscientemente, costuma ser negada) do processo e da jurisdição voltados ao escopo de tutelar direitos subjetivos. A preocupação central com a ação é sinal da visão privatista do sistema processual, supostamente posto a serviço do autor e dos direitos, como se toda a pretensão deduzida em juízo fosse procedente e fosse uma verdade a invariável presença da lesão como requisito para o interesse de agir." [09]
Ingressamos no século XIX, assim, com uma ciência processual autônoma, porém comprometida com postulados próprios das ciências exatas e com uma visão privatista, que subtrai eficácia do processo como mecanismo de institucionalização dos conflitos e atuação pacificadora do Estado.
Um dos pontos mais evidentes desta mentalidade reside na supremacia da cognição exauriente sobre a execução, formando um binômio: cognição exauriente-execução forçada.
O quadro jurídico-filosófico próprio da época do surgimento da ciência processual como ramo autônomo propicia o entendimento de que "somente o procedimento ordinário é capaz de assegurar a neutralidade do juiz, obrigando-o a julgar somente depois de haver adquirido convencimento definitivo, através da análise exaustiva da prova. Essa ideologia é responsável pela irresistível tendência, a que estão expostos os processualistas, de privilegiar sempre as demandas plenárias, com supressão das formas sumárias de tutela processual, independentemente do elevado custo social que esta opção possa provocar." [10]
Na verdade o dogma da certeza jurídica, e seu corolário, o da supremacia da cognição exauriente, remonta do processo romano, onde paulatinamente a actio preponderou sobre o interdcitum.
A respeito, oportuna a menção a Ovídio Baptista da Silva: "Esta concepção estreita de jurisdição, como simples declaração de direitos estava fortemente consagrada em direito romano, como conseqüência da oposição entre conceitos de jurisdictio e imperium, de modo que a jurisdição acabou sendo limitada ao procedimento ordinário - procedimento do ordo judicium privatorum-(...)." [11]
Assim, verificamos que já no direito romano houve a paulatina erradicação dos poderes de imperium, exercidos através do interdictum, em detrimento da actio, a qual corresponde o ordo judicum privatorum, vale dizer a certeza jurídica, resultante da cognição exauriente (processo de conhecimento de rito ordinário), que passa a ser pressuposto para atos executivos.
E a conseqüência disso é que "a ordinarização do processo de conhecimento, repelindo-se, via de regra, as tutelas sumárias, que se baseavam em juízos de verossimilhança, prestigiando a certeza jurídica e fundamentando-se no binômio processo de conhecimento-execução forçada, trouxe como conseqüência mais grave a demora no desfecho dos processos." [12]
O pensamento ocidental, embasado na filosofia da consciência, no racionalismo iluminista e na aplicação do método científico das ciências, estabelece a dicotomia entre a realidade e o mundo jurídico, privando, ao mesmo tempo, os juristas de perceberem este hiato.
Constrói-se um processo voltado para o direito privado, que atende aos anseios da sociedade positivista do Estado Liberal e que se estrutura em um discurso estanque, que alimenta a si próprio, impedindo uma real evolução e adaptação do processo.
No Brasil, a questão é ainda mais grave, porquanto o processo europeu continental que nos serve de base apresenta dualidade de jurisdição, onde as questões relativas ao direito público são resolvidas em tribunais administrativos.
Chegamos, desta forma, a um processo moderno que não contemplava, como regra, execução sem a precedência da cognição exauriente.
3- O Estado Social e a crise da jurisdição
O processo contínuo de urbanização dos séculos XIX e XX, o incremento na difusão de informações, e a melhoria das condições educacionais produziram pressões sociais que, agravadas por eventos históricos (como a I Guerra Mundial), resultaram na eclosão do constitucionalismo social, trazendo ínsita uma mudança no paradigma de atuação do Estado referida por Cássio Scarpinella Bueno: "De uma posição neutra, onde o Estado (o então Estado liberal) deveria limitar-se a somente assegurar a liberdade de cada indivíduo (o direito subjetivo enquanto invocado por este ou aquele indivíduo), passou o Estado a ter de garantir certos direitos não somente aos indivíduos considerados como tais, mas à sociedade, a conjuntos de pessoas, que passaram a ser identificadas pelas características próprias desses mesmos grupos. Temos, aqui, pois um Estado intervencionista." [13]
Diante de novas demandas sociais e jurisdicionais patenteia-se a crise do paradigma hermenêutico vigente que se traduz, na prática, em uma crise da própria jurisdição.
Tratando do tema, escreve Lênio Streck: "Em nosso país, não há dúvida de que, sob a ótica do Estado Democrático de Direito - em que o Direito deve ser visto como instrumento de transformação social -, ocorre uma desfuncionalidade do Direito e das Instituições encarregadas de aplicar a lei. O direito brasileiro e a dogmática jurídica que o instrumentaliza está assentado em um paradigma liberal-individualista que sustenta essa desfuncionalidade, que paradoxalmente, vem a ser a sua própria funcionalidade." [14]
Mais adiante, acrescenta: "Assim, a partir disso, pode se dizer que, no Brasil, predomina/prevalece (ainda) o modo de produção do direito instituído/forjado para resolver disputas interindividuais, ou como se pode perceber nos manuais de Direito, disputas entre Caio e Tício ou onde Caio é o agente/autor e Tício (ou Mévio), o réu/vitima." [15]
Mas este problema que a passagem para a filosofia da linguagem permitiu perceber, afastando as verdades universais, é apenas um aspecto da questão. A faceta mais grave da crise de jurisdição se traduz na demora do processo pela ausência de medidas concretas de provimentos jurisdicionais que desbordem da necessidade de precedência da cognição exauriente sobre a execução.
Parte-se, aqui, da premissa de que "o tempo de duração do processo é, como já apontou prestigiosa doutrina, fonte de prejuízo, e interfere, sem dúvida, na funcionalidade da tutela jurisdicional como mecanismo de regulação social, principalmente no que se refere sua aceitação e institucionalização pela sociedade como tal." [16]
De fato, como bem pondera Luiz Guilherme Marinoni, "se o tempo é a dimensão fundamental da vida humana e se o bem perseguido no processo interfere na felicidade do litigante que o reivindica, é certo que a demora do processo gera, no mínimo, infelicidade pessoal e angústia e reduz as expectativas de uma vida mais feliz (ou menos infeliz). Não é possível desconsidera o que se passa na vida das partes que estão em juízo." [17]
A cegueira jurídico-filosófica permitiu que por décadas convivêssemos com esta falta enquanto a sociedade adquiria uma dinâmica nunca antes vista.
Se o processo privatista do Estado Liberal se satisfaz com a demora o processo, o mesmo não ocorre no âmbito de um processo que reflita os influxos do constitucionalismo social e que se coadune com o atual estágio de desenvolvimento tecnológico da sociedade. A propósito, pondera Cassio Scarpinella Bueno que: "Se houve um tempo em que o que se aguardava do Poder Judiciário era um processo moroso, onde todas as formas de prova possíveis fossem admitidas se produzidas sob o manto do contraditório, hoje, pelas necessidades da sociedade contemporânea, essa ‘demora’ natural do processo já não tem mais lugar ou, quando menos, é fator apto a gerar profundo e generalizado descontentamento dos ‘usuários’ da justiça." [18]
De fato, "especificamente no campo jurisdicional, a característica marcante do novo modelo de Estado, e que é o compromisso de tornar efetivos os direitos, transcendendo de uma perspectiva formal para uma concreta, material, faz-se sentir na tentativa de tornar a tutela jurisdicional efetiva, produzindo realmente a satisfação daqueles que têm às portas do judiciário. Trata-se de observar o fenômeno jurisdicional sob a ótica do consumidor da jurisdição. Para o Estado Social, não basta construir um sistema formalmente apto a corresponder às expectativas dos jurisdicionados." [19]
Neste passo, é de se observar que "as novas demandas jurisdicionais trouxeram como corolário o abandono de certos dogmas, erigidos à luz da tradição romano-canônica, que, fusionando a actio e a obligatio romanas ao racionalismo iluminista, fulcrado na busca de verdades universais e emulsionado pela atmosfera do capitalismo então em implantação, propiciaram a construção de uma concepção de jurisdição eminentemente declaratória e infensa a atividades executivas sem a necessária precedência da cognição exauriente e plenária." [20]
Restou, assim, aberto o caminho para a antecipação de tutela, que surgiu no âmbito das reformas processuais de meados dos anos noventa, objetivando exatamente reduzir o hiato entre o modelo de processo vigente e as necessidades da sociedade, ou seja, entre o "mundo ideal" e o "mundo jurídico", pois há a consciência, hoje, mais ou menos arraigada de que "todo o sistema processual tem como fator legitimante a sua compatibilidade com a carga de valores amparados pela ordem sócio-político-constitucional do país." [21]